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sexta-feira, 29 de abril de 2016

CANUDOS: De boca em boca

Temos a continuação da reportagem da revista Veja 3 de setembro de 1997 onde o primeiro episódio está nesse artigo  O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado.  Temos também aqui o episódio e terceira parte O Fim do Treme-Terra, e agora passamos aos amigos o quarto episódio da série de cinco reportagens feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo, onde nos mostra que a história de Canudos corre de boca em boca. 

.Igreja Velha - pouco antes de ser destruída e o cruzeiro,ocupados pelos  vencedores 

João de Regis em sua casa
Numa casinha solitária nas Umburanas, a poucos metros do local onde foi abandonado o corpo do coronel Moreira César, vive "seu" João de Régis, 90 anos completados no dia 12 de junho. João de Régis é um sertanejo magrinho e miúdo, meigo e humilde. É filho de conselheiristas. O pai, Reginaldo José de Matos, e a mãe, Joana Batista de Jesus, viveram no arraial do Conselheiro. Foi lá que eles se casaram, sendo celebrante das núpcias o padre Sabino, famoso vigário do Cumbe que, amigo de Antônio Conselheiro costumava visitar Canudos, ali rezar missas e ministrar os sacramentos. E seus pais gostavam do Conselheiro, "seu" João de Régis? "Ave Maria, gostavam demais", ele responde. João de Régis recupera-se de uma pneumonia. Ainda tosse, mas se diz melhor. A cabeça continua boa, a memória, precisa. 

João de Régis mostra um documento. É um salvo-conduto emitido pelo Comitê Patriótico da Bahia, datado de 12 de janeiro de 1898 e assinado por Lélis Piedade, em favor da avó de João de Régis. Josepha Maria de Jesus, e suas filhas Joana (que viria a ser a mãe dele), Maria e Antônia. Pede-se ali às "autoridades do Centro do Estado" fazerem o obséquio de "protegerem-nas. em qualquer emergência". O documento, atente-se, data de três meses depois do fim da guerra. A avó, a mãe e as tias de João de Régis encontravam-se em Salvador. Para lá tinham sido enviadas muitas mulheres de maridos que foram mortos em combate ou executados, bem como suas crianças. Elas se tornariam empregadas domésticas ou prostitutas, em Salvador e em outros lugares. 


No caso, a avó e a mãe de João de Régis queriam voltar porque sabiam que os homens da família estavam vivos. Daí terem pedido ajuda ao Comitê Patriótico, uma entidade beneficente criada para prestar assistência aos sobreviventes da guerra, dirigida pelo jornalista Lélis Piedade. O documento que João de Régis tem em casa é um salvo-conduto para a volta a Canudos. E como elas sabiam que os homens da família — o avó materno e o pai de João de Régis — estavam vivos? Porque eles se encontravam fora do arraial, quando do assalto final, explica João de Régis. Um dia, eles saíram pela Estrada de Uauá, para apanhar farinha Quando estavam fora, a estrada foi fechada pelo Exército. Não puderam voltar. 

Por essa Estrada de Uauá, acrescente-se, fugiram muitos conselheiristas. nos últimos dias. Sobreviventes contaram que. das trincheiras, os soldados gritavam avisando que a estrada estava aberta e que quem quisesse fugir ainda era tempo. O pai de João de Régis era de Pombal, ao sul de Canudos, e tinha vinte e poucos anos quando o Conselheiro passou por lá. "Ele achou bonito aquele jeito do Conselheiro, aquela amizade, aquela vivência", conta João de Régis. Então resolveu acompanhá-lo. 

A mãe era da região de Canudos e aderiu ao Conselheiro junto com os pais e as irmãs. E como viviam seus pais, em Canudos? O pai trabalhava de carapina diz seu João de Régis — isto é, de carpinteiro. fazendo as casinhas do arraial. A mãe fiava algodão e fazia rede. João de Régis explica que quando alguém queria casar, a primeira coisa a fazer em comprar uma rede. 

"O Conselheiro vivia em comunidade, rezando, dando conselho", conta João de Régis. Quando a família se reencontrou, depois da volta das mulheres de Salvador, veio viver aqui. nesta mesma terra onde nos encontramos, nas Umburanas. Viviam "de roça-. de "tropinha de animais", e assim a vida continuou — e continua até hoje. e continuará sempre. O episódio de Canudos foi um espasmo sangrento e tumultuado. e depois o sertão voltou ao sossego de sua eternidade. Aqui, o tempo não se mexe. 

João de Régis nasceu neste recanto do fim do mundo e neste recanto do fim do mundo morrerá. Quem vaga pelo sertão terá sempre a persegui-lo um duplo acompanhamento sonoro: o chocalho das cabras e a Rede Globo de Televisão. O chocalho das cabras está lá desde sempre. A Rede Globo, que se ouve nos restaurantes, nos bares abertos para a rua, nas pousadas e nas casas, deu o ar de sua graça mais recentemente. Quem diz que o tempo não se mexe aqui? Na cidade de Euclides da Cunha a antiga Cumbe, 80 quilômetros ao sul de Canudos, tem seu Ioiô da Professora. 

Seu loiô, se fosse um espetáculo, não um ser humano, seria do tipo que os críticos classificam de "imperdível". Ele conta a história de Canudos tal qual a ouviu do pai, ou do sogro. ou de outras pessoas, quando jovem. Conta o que se dizia na região quando se soube que Moreira César estava chegando: — Vamos arretirar!!! Vem aí um Treme-Terra que não arrespeita sertanejo!!! 

loiô da Professora, ou José Siqueira Santos, seu nome de registro. "da Professora" porque é filho de uma professora primária, tem 89 anos, pele branca, farta cabeleira branca, é magrinho e usa óculos de grossas lentes. Seu sogro era o maior fazendeiro do Cumbe, o "coronel" José Américo Camelo de Souza Velho, inimigo figadal do Conselheiro, mas nada da antiga fortuna, ou prestígio, sobrou para os descendentes. loiô vive de um botequim que ocupa a parte da frente de sua modesta casa, onde basicamente vende cachaça para os bêbados do lugar. 

São muitas, compridas, cheias de detalhes e vivas descrições, as histórias de seu loiô. Ele conta que Pajeú, o guerrilheiro tão temido do Conselheiro, incendiou duas fazendas do coronel Zé Américo. Numa delas, só ficou um quarto onde havia imagens de santos, acomodadas em nichos. "Não sou inimigo de santo", disse Neli, segundo loiô. "Aqui tem santo. Não pode destruir." E loiô acrescenta: "Esse povo do Conselheiro respeitava muito esse movimento de igreja, de santo".

Os bispos estavam contra o Conselheiro, explica Ioiô. Por que motivo? — As rezas dele atrapalhavam a religião. Mas havia outros também insatisfeitos: — O povo não queria mais obedecer os coronéis. Até para emprego era com o Conselheiro. Ioiô explica de diferentes maneiras, a crueldade e os maus bofes de Moreira César: — Era um terrível!!! Pior que Lampião!!! — Não matava mulher, mas homem era uma desgraça. — Era um ateu terrível!!! Dizia: "Não quero saber de santo". loiô senta, levanta, gesticula. Interpreta, exclama dá um acento de voz a cada situação. Preenche os claros das histórias com contribuições próprias. do tipo: "Então ele se sentou": "Tirou o chapéu"; "A ordem de Moreira César foi seca". 

Ioiô conta que Moreira César foi vitima de uma maldição. Uma vez ele mandou fuzilar um médico. A viúva. de nome Olímpia, estava entre as pessoas que assistiram ao embarque de Moreira César, em Salvador, em direção a Canudos. Ela disse. naquele momento: — Vai, bandido sanguinário... Vais a Canudos, mas não voltas.

Não, não cabe dizer "se fosse um espetáculo"... Seu loiô da Professora é um espetáculo. 

A via-sacra de Monte Santo é tão sacra quanto descuidada e suja. As capelinhas pelo caminho encontram-se em estado lamentável. Mas a maior decepção está lá em cima, na Igreja de Santa Cruz, ponto final da escalada. A direita do altar, entre uma coleção de muletas e cruzes que os devotos trazem na subida e ali abandonam, em sinal de reconhecimento por graças recebidas, encontram-se, além de muita poeira. garrafas plásticas de refrigerante vazias. Do outro lado, à esquerda do altar, os ex-votos deixados pelos fiéis, na forma de braços, pernas e cabeças de madeira, empilham-se sem nenhuma ordem. 

Do lado de fora, nos fundos da igreja, outra cena deprimente: mais ex-votos, muito mais cabeças, braços e pernas de madeira, lembram a vala comum onde foram depositados os restos dos combatentes de alguma guerra no fim do mundo. Ou isso, ou o lixão de uma favela. Na casa paroquial, o jovem Expedito, única pessoa presente, informa que havia três padres em Monte Santo, mas hoje não há nenhum. Um foi embora da cidade. Dos outros dois, um foi para Salvador e outro para São Paulo, e talvez não voltem. É sexta-feira, dia de maior afluência de fiéis, mas não há padres para recebe-los. Se o sertanejo continua presente. em sua fé. o mesmo não se pode dizer dos agentes da igreja. Em Euclides da Cunha o padre, procurado reiteradas vezes pelo autor desta reportagem, nunca estava, e a igreja permanecia sempre fechada. 

Em contrapartida, o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua Major Antonino, estava sempre aberto. Esse singelo pormenor pode ser um bom começo para quem quer entender o avanço evangélico sobre as hostes católicas. 

A história da maldição da viúva contada por Ioiô da Professora corrobora a antiga tese de que Moreira César não foi morto pelos sertanejos, mas por um de seus próprios soldados. Segundo uma versão, o soldado que atirou, ao ver o coronel avançar em seu cavalo em direção ao arraial, fez isso porque estava cansado dos maus-tratos a que o coronel submetia a tropa. Segundo outra, a vingança teria sido por conta de ações praticadas por Moreira César na campanha de Santa Catarina. A família de dois irmãos mortos pelo coronel nessa ocasião teria contratado um soldado para vingá-la. Esses irmãos — acrescenta-se, para fechar a história — seriam ninguém menos que o pai e o tio do poeta modernista Ronald de Carvalho.


loiô da Professora, João de Régis, quer dizer: João, filho de Régis, assim como loiô da Professora quer dizer foi filho da professora. Entre o povo do sertão. em vez de sobrenome, usa-se a forma ancestral de identificar as pessoas pelo pai ou pela mãe. Outros exemplos: Joana de Manuel Eliseu. Maria de Sidrônio. Há casos em que um "de" não basta e então usam-se dois: Maria de Totonho de Silvano. Qual seja: Maria, filha de Totonho, filho de Silvano.

O município de Canudos tem 15.000 habitantes, cerca de 60% dos quais na zona rural. O progresso que o engenheiro Peixoto previa para a cidade, na década de 50, com a construção do açude que, em vez de poesia, ofereceria água e alimento à população, ainda não chegou. Luiz Paulo Neiva, que. como coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Uni-versidade Estadual da Bahia, dirige um trabalho de levantamento da situação no município, com vista a um plano de desenvolvimento, desfia alguns dados: 65.4% dos chefes de família recebem menos de um salário mínimo por mês; 25.6% recebem de um a três salários mínimos; 52% da população acima dos 15 anos são analfabetos; 22% das crianças até 6 meses sofrem de desnutrição. 

Canudos, onde se cria bode, pesca-se no lago e poucas coisas mais, é um dos municípios mais pobres da Bahia. Quer dizer, do Brasil. 


O Cruzeiro que se ver na foto acima, na sala que fica guardado

Não é bem que a atual Canudos não tenha nada que lembre o Conselheiro, como se afirmou páginas atrás. Tem. Mas é preciso procurar bem, porque está escondido. Vai-se à casa onde fica um "centro de convivência" da Igreja Católica, um local para reuniões e festinhas. Procura-se pela irmã Cirila, que veio do Rio Grande do Sul. Pede-se para abrir a sala na qual ela guarda os livros sobre a guerra, alguns objetos do período e pronto, lá está: a cruz de Antônio Conselheiro. Sim, aquele cruzeiro que se encontrava em frente da igreja velha e que foi transportado para esta nova Canudos quando a velha foi afogada. A cruz está deitada no chão. A madeira, escura e cheia de fendas, necessita cuidados, para não apodrecer. É a mais importante relíquia que se tem do arraial. Ao lado da cruz repousa uma lápide, onde se lê: "Edificado em 1893 por A.M.M.C.". 
As iniciais referem-se a Antônio Mendes Maciel Conselheiro e a lápide costumava ficar ao pé do cruzeiro. Irmã Cirila guardará a preciosa relíquia em sua sala quase secreta enquanto não se construir um local adequado para exibi-la. 

Fonte: Revista Veja 3 de setembro de 1997






terça-feira, 26 de abril de 2016

CANUDOS: O Fim do Treme-Terra

Temos a continuação da reportagem O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado, e agora a terceira parte O FIM DO TREME-TERRA, de uma série de cinco episódios, feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja 3 de setembro de 1997. 


Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças. o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans: 

Moreira César foi ao céu 
Com Tamarindo ao seu lado 
Sdo Pedro falou assim: 
A que cara de malvado! 

Antônio Moreira César era o seu nome,  coronel a sua patente. O oficial talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano. 

Euclides da Cunha o descreve: 

"O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses —, era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo". E no entanto, quanto respeito — e quanto medo — impunha à sua volta. Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime florianista — a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. 

Em Santa Catarina para onde foi enviado com plenos poderes, para apagar os últimos fogos da Revolução Federalista distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão. 

"Na Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra." 

O elenco da epopeia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo de Moreira César, cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se tomar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o "comandante da rua", como era conhecido — "rua" no sentido de "arraial", de "cidade", de "área urbana" e comandante porque era o chefe militar supremo: Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e entrevado: "Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar". 

A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial. Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. 

A Guerra de Canudos é tão rica de personagens quanto a — releve-se a insistência na comparação — de Troia e de personagens que igualmente foram se credenciando à mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes atribuem. 

Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Hollywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general Custer e Touro Sentado. 

Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos — estamos em novembro de 1896 — uma expedição punitiva. 

Tinha 104 homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo — uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância — velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr.
Terminava aquela que passou para a História como a primeira expedição. 

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho — 550 homens — e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes.

Monte Santo, 100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Sena de Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de majestoso pano de fundo — um monte sulcado por um caminho que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". 

Lá no alto, no fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam as passos da Paixão. Foi construída no século XVIII. 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 km, é penosa. O caminho é não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e descortina-se um panorama deslumbrante da região.

O Monte Santo de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus — na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém —, é o mais eloquente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência de severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados.

Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo. Welcome. Bienvenido. Monte Santo. Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. 

O caminho de pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo evoca tanto a religião como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos. 

No tempo de suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial. Antônio Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou. com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da montanha. 

Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade antes de se pôr a caminho. E então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial insurreto.

A humilhação era demasiada. O irredentismo dos fanáticos" sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão frequentemente caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um "comunista" no outro como "neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação monarquista. 

Lembre-se de que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que sem dúvida se ramificava pais afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe tinha até apoio do exterior. 

Para debelá-la. só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1.300 homens que formariam na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe. apontarão ao visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos — um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. 

Em Queimadas, Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do mesmo nome há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo: "Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março de 1897, o cadáver do coronel Moreira César..."

O marco, mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último, centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-las. 

À medida que se aproximava, o otimismo aumentara: "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César rinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro — ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques durante a campanha de Canudos. Além disso. apresentava um temperamento instável e impulsivo. 
Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. 

Conselheirista preso entre seus captores
Em Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa. sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas — o que, além de facilitar a movimentação do adversá-rio familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia que não podia disparar sob pena de atingir os próprias companheiros. 

A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta. mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.

Atingido no ventre por uma bala, vergou-se. largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões". 

Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si". 

Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho. para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. 

No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem. 

Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquia o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia. 

Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre as últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte: 

Coronel Moreira César 
Olho de cana caiana. 
Tomou chumbo em Canudos 
Foi morrer nas Umburanas. 













segunda-feira, 25 de abril de 2016

CANUDOS: Duas vezes morto, duas ressuscitado

A obra de Travessa no Alto Alegre: conjuntos de igreja, museu, salão, cruz e estátua do Conselheiro
Cigarro não ofende? Não, não ofende, e então Manuel Alves. mais conhecido por "Manuel Travessa". de 57 anos mas aparentando mais, pele morena e estorricada de sertanejo, chapéu de couro, dentes ruins, acende o cigarrinho que é seu companheiro inseparável. Estamos no carro que conduz o autor desta reportagem e o fotógrafo de VEJA do lugar chamado Bendegó, dentro do município de Canudos, à beira da estrada, antes de chegar à cidade propriamente dita, ao lugar chamado Alto Alegre, uma elevação à margem do lago no fundo do qual se encontram as ruínas da antiga Canudos. 

Quem foi Antônio Conselheiro para Manuel Travessa? — No meu pensamento, ele era igualmente que um crente, hoje. Há 100 anos, não existia crente. Eu sempre penso que pode ter existido um ciúme da Igreja Católica pelo Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha escreveu em Os Sertões que a cidade de Queimadas, para onde as tropas iam de trem, desde Salvador, antes de enfrentar os caminhos poeirentos do sertão, assinalava uma fronteira: "Salta-se do trem: transpõem-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas: e topa-se para logo, à fímbria da praça — o sertão" Está-se no ponto de encontro de duas sociedades alheias uma à outra segundo Euclides, "O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam vertiginosamente os patrícios do litoral, que o não conhecem." Entre um e outro há uma "discordância absoluta", segundo o autor, o que acaba por desequilibrar "o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo" e "perturba deploravelmente a unidade nacional". Os soldados vindos de outras partes do país, chega a escrever Euclides, tinham a sensação de seguir para uma guerra externa. "Sentiam-se fora do Brasil." Há exagero nisso, certamente. Já havia exagero há 100  anos,  e haverá ainda mais hoje, em considerar o sertão um mundo à parte do resto do Brasil. Mas, por mais que hoje em dia se esteja familiarizado com a região, por mais romance regionalista que se tenha lido, filme do cinema novo que se tenha visto, por mais música e novela de TV que se tenha digerido, o forasteiro será tomado pela sensação de um mundo meio encantado, a começar pela língua que ali se pratica. Dá vontade de reproduzir, tal e qual, a fala de Manuel Travessa. — Ele não foi um destruidor (o Conselheiro). Não foi que nem Lampião. Ninguém diz que ele matou alguém. 
Vista do arraial primitivo
Era igual que Assembléia de Deus, Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa... essa como se diz... essa religião. Manuel Travessa não é um qualquer. Pode ser qualificado como um empresário do sertão. Um empresário quase miserável, que vive numa casa que Antonio Ermírio de Moraes não imagina possa preencher as necessidades de um ser humano. come um tipo de comida que Abílio Diniz não comeu nem quando foi sequestrado e veste uma roupa que Moreira Ferreira estranharia muito num companheiro da Fiesp, mas um empresário — um farejador de oportunidades, campeão da iniciativa. Ele já tinha um bar naquele lugar chamado Bendegó e agora que o asfalto está chegando à região, antevendo uma ampliação do mercado, abriu outro. 

Mais significativas são suas realizações no Alto Alegre. um lugar batizado por ele próprio ao chegar à região. cm 1971 depois das muitas perambulações pelo sertão, a partir de sua Monte Santo natal. Só havia três casas no local, e a elas ele acrescentou a sua. Começou a notar então que frequentemente aparecia gente interessada em Canudos, querendo informações e em busca de vestígios da guerra. Para tentar satisfazer essa demanda, Manuel Travessa iniciou, em 1975. uma coleção de relíquias — espingardas, balas, capacetes de soldado. Objetos que achava pelas redondezas ou comprava dos vizinhos. Hoje essa coleção está reunida numa casinha que construiu para abrigá-la, composta de um só cômodo, de não mais que 2 por 2 metros, a que, de maneira sem dúvida pretensiosa, chama de "museu". Ao lado de uma tralha que realmente tem a ver com a guerra. o museu de Travessa exibe máquinas de costura velhas e até um buda de porcelana.

Ao lado do museu, Manuel Travessa levantou uma capela e ao lado da capela, um salão de dança. Assim, pode-se rezar pelo Conselheiro no local ou alternativamente, convocar um forró. O conjunto de museu-igreja-salão completa-se com uma escultura do Conselheiro em madeira e um canhão também em madeira, além de duas cruzes, para compor o que poderia ser chamado de praça monumental do Alto Alegre, se monumental fosse, ou mesmo se praça fosse — na verdade é um conjunto de toscas construções erigidas na terra dura de um descampado. De qualquer forma é o que se tem. Quem vai ao povoado que hoje ostenta o nome de Canudos não encontrará recordação do Conselheiro. O Alto Alegre, a 10 quilômetros de distância, por iniciativa do empresário sertanejo Manuel Travessa, preenche essa lacuna. 


Contam-se três Canudos, ao longo da História. A primeira, do Conselheiro, depois de arrasada, ficou no seguinte estado de acordo com o depoimento de um ex-conselheirista, Manuel Ciríaco, ao jornalista Odorico Tavares, em 1947, quando a guerra completava cinqüenta anos: "Era de fazer medo. A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a gente via correndo pelos cadáveres e urubu fazia nu-vem. Tudo abandonado, ninguém ficou enterrado. Foi quando Ângelo dos Reis, por sua própria caridade, trouxe uns homens e enterrou ali mesmo a jagunçada morta Todas essas colinas que o senhor vê estão cheias de ossos de jagunços. Acabou-se Canudos, e durante uns dez anos, só se vinha aqui de passagem". O Ângelo dos Reis citado era um fazendeiro da região. Dez anos decorridos, durante os quais o simples nome de Canudos fazia medo na região — era sinônimo de atrocidade, perseguição, constrangimento —. o local começou a se repovoar. 

Alguns eram antigos habitantes que voltavam. Nascia uma segunda Canudos, sobre os escombros da primeira. Na década de 50 foi projetado um açude que represando as águas do Rio Vaza-Barris, acabaria por inundar o povoado. Será que a represa precisaria ser justamente ali, fazendo submergir um lugar histórico como aquele? A pergunta foi feita pelo escritor Paulo Dantas, em 1958, ao engenheiro que chefiava as obras. José Femandes Peixoto. "Isso é conversa de poetas" respondeu o engenheiro. "O que esta região precisa é de água. A tradição é muito bonita, mas não mata a sede nem a fome de ninguém".

Em 1969, depois de sucessivos atrasos, a represa finalmente inundou Canudos. A população a essa altura já tinha sido transferida para o povoado chamado Cocorobó — mesmo nome do açude —, mais tarde rebatizado de Canudos. Esta é a Canudos atual, a terceira. Em junho último, foi inaugurado o Parque Estadual de Canudos. Estendendo-se ao sul do açude, compreende uma área de 18 km quadrados, em que se encontram sítios familiares a quem conhece a história da guerra: o Alto do Mário, o ponto mais elevado, de onde hoje se descortinam o açude e as montanhas ao redor, a Fazenda Velha — ruínas de uma antiga sede de fazenda na qual os Conselheristas fixaram um posto avançado que resistiu até os dias finais; o Morro da Favela. Próximo ao Alto do Mário, situa-se uma grande vala comum, possivelmente vizinha do hospital de campanha dos militares, onde eram enterrados os soldados. É o chamado "Vale da Morte". 

O Parque foi uma ideia do professor Renato Ferraz um dos mais ativos lutadores pela memória de Canudos — pesquisador, organizador de seminários e eventos sobre o assunto. Ferraz sabe tudo o que é possível saber de Canudos. Só falta escrever um livro a respeito, algo que promete vagamente para o futuro. 

A parte visível do Parque Estadual de Canudos. que é administrado pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, consiste, por enquanto, num portal de entrada e em placas de localização dos sítios históricos. No decreto de sua criação. pelo governo do Estado, estatue-se que deverão funcionar no local "museu, laboratório de arqueologia, estação experimental de meteorologia, escolas experimentais e outras instituições". 

Um trabalho de exploração arqueológica está em curso, a cargo do arqueólogo paulista Paulo Zanatini. Trata-se de uma arqueologia histórica. basicamente — procuram-se trincheiras, barricadas, armas ou restos  de armas, balas, objetos de uso cotidiano dos soldados ou sertanejos, ossadas, sepulcros. Uma das últimas descobertas de Zanatini foi que as ruínas até agora consideradas da Fazenda Velha são de uma casa mais recente, do início do século. A Fazenda Velha verdadeira, da época da guerra está soterrada embaixo dessas ruínas. 

No Alto Alegre uma trinca de garotos de 11 ou 12 anos cerca-nos e se dispõe a levar-nos a um passeio de bote pelo lago. Um dos meninos, Gilmar, conta que o "painho" uma vez achou uma canela no chão. Ou seja, um osso da perna, ou o que ele supôs fosse um osso da perna. Não se pode ficar com esses achados, explica Gilmar. O pai então deu para um alemão. Um alemão? Não, ele não sabe direito se era alemão. Mas sabe que era uma pessoa que "não fala igual que a gente. não". 

No bote, passeando pelo lago. percebem-se. quase à superfície, encobertos somente por um palmo de água, as guarnições laterais de uma antiga ponte. Essa ponte fazia parte da estrada que cortava a segunda Canudos. Há também uma ruína que aponta para fora do lago. Trata-se da parte superior do portal de um cemitério, também da segunda Canudos. Da Canudos do Conselheiro, a única construção que sobrou de pé, ao fim da guara, foi um cruzeiro que se erguia à frente da igreja velha. Às vésperas da inundação da área, o cruzeiro, de madeira, foi transportado para o povoado de Cocorobó, para onde estava sendo transferida a população. Ficou o pedestal de cimento em que ele se incrustava. No ano passado. o nível do açude baixou sensivelmente, e o pedestal, ou o que resta dele. emergiu das águas. Um pouco do Conselheiro voltava à tona. Ferraz, aquele que sabe tudo de Canudos e teve a ideia de instituir o parque, serviu de guia ao peruano Mario Vargas Llosa em 1979, quando este realizava as pesquisas para seu romance sobre a Guerra de Canudos, A Guerra do Fim do Mundo

Um dia, Vargas Llosa e Renato Ferraz fizeram uma escala na cidade sergipana de Simão Dias. No hotel onde se hospedaram, rústico como todos na região, foram recebidos por um funcionário homossexual — sim, há disso também no sertão. Logo depois, invade o quarto uma senhora que sem dúvida guiada pelas informações do funcionário, queria conhecer o atraente estrangeiro. Ela se ouriça: "Argentino!, argentino!", exclamava, como uma fã de galã de televisão. Era a dona do hotel, dona Raimunda. Quando se preparavam para partir da cidade. dona Raimunda pediu uma carona até Lagarto. Atenderam-lhe ao pedido. e ela viajou no banco de trás. Quando chegaram a Lagarto. dona Raimunda foi saindo devagar do carro, esgueirando-se, no difícil movimento de deixar o banco de trás de um Fusca... e então deu o bote. Numa manobra fulminante, prendeu-se ao pescoço de Vargas Llosa e pespegou-lhe um beijo na boca. 
Manuel Travessa entre as peças de seu museu; um homem de iniciativa
Manuel Travessa diz que ouviu uma vez do avó que Canudos seria destruída três vezes. — A primeira vez pelo fogo, a segunda pela água e a terceira pelo pó. Pelo fogo foi a guerra. Pela água. a represa. Só falta pelo pó. Esse avô de Travessa era o materno, de nome Mundu, um criador de cabras. Ele explica que a mãe teve treze filhos antes dele. Depois, "me conseguiu". E o pai? Do pai, Manuel Travessa não sabe: "Sou filho de mulher particular". Manuel Travessa subiu na vida e hoje, além de empresário, é político — elegeu-se vereador, em Canudos. 

Como seria essa terceira destruição da cidade de que falava seu avó? 

— O que espero é que a barragem estoure e essa lama se torre no pó. Aí ninguém vai escapar desse pó. Isso é o que eu penso.  

Fonte: Revista Veja de 3 de setembro de 1997
Reportagem Roberto Pompeu de Toledo

sábado, 23 de abril de 2016

CANUDOS: O Legado do Conselheiro

Essa matéria da Revista Veja, traz a nós a questão mal resolvida do massacre de Canudos depois de mais de 100 anos. As feridas ainda estão abertas e podemos dizer que trata-se de um emblema do Brasil pois assim como a ditadura militar/civil de 1964, que ainda projeta suas sombras que ainda pairam sobre a sociedade que até hoje ainda está buscando resolver essa situação mais recente da história brasileira, fica sendo procrastinada. Diferentemente da ditadura que existem vivos que a combateram, temos outros conflitos onde o Estado usou a violência de forma pesada. No caso de Canudos, não existe mais ninguém vivo, assim como em outros massacres que se deram no passado.


Canudos em chamas, numa foto da época: calcula-se que 15 000 pessoas morreram 
Antonio Conselheiro vestia um camisolão azul, sem cintura. Tinha cabelos longos como Jesus e barbas longas. Nos pés calçava sandálias para enfrentar o pó das estradas e a cabeça, protegia-a do sol inclemente com um chapelão de abas largas. Nas mãos levava um cajado como os profetas, os santos, os guiadores de gente, os escolhidos, os que sabem o caminho do céu. 

Saudava as pessoas dizendo "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo". Respondiam-lhe dizendo "Para sempre seja louvado". Chamava os outros "meu irmão". Os outros chamavam-no "meu pai". Foi conhecido como Antônio dos Mares, uma certa época, e também como Irmão Antônio. Os mais devotos o intitulavam "Bom Jesus", Santo Antônio". 

De batismo, era Antônio Vicente Mendes Maciel. Quando fixou sua fama, era Antônio Conselheiro, nome com o qual conquistou os sertões e além. O mais célebre cronista de suas aventuras, Euclides da Cunha, escreveu em Os Sertões que poderia tanto ir para a História como para o hospício. Maldade considerá-lo caso de hospício. Foi para a História, e nela cravou um marco profundo — um ferimento. 

Transformou-se num dos personagens mais perturbadores da História do Brasil, figura central de um dos episódios mais extravagantes. equivocados e trágicos da nacionalidade, e também dos mais fascinantes, em que o Brasil defronta o Brasil, estranha o Brasil e choca-se frontalmente com o Brasil.

Onde ficava Canudos, hoje um açude no lugar do arraial e ao fundo os morros do Mário e da Favela
A Guerra de Canudos, na qual, calcula-se, morreram 15.000 pessoas, fez 100 anos em 1997. No dia 5 de outubro de 1897 depois de quatro expedições militares, um ano de lutas intermitentes e uma resistência feroz por parte de seus defensores, o arraial erigido pelo Conselheiro nos ermos do Nordeste da Bahia foi finalmente tomado pelo Exército. 

Quase nada sobrava daquele santuário-cidadela, um povoado que sonhou ser a Jerusalém dos confins do mundo e acabou uma Pompéia sem Vesúvio, reduzida a escombros, cadáveres, sangue e cinzas. 

Escreveu Euclides da Cunha: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados." 

Dias antes, em 22 de setembro, morrera o Conselheiro — de disenteria, segundo alguns, talvez das complicações de um ferimento leve, segundo outra versão, talvez da desolação e da tristeza que cresciam a seu redor naqueles derradeiros momentos. 

Cem anos passados, programam-se seminários, houve cerimônias na Bahia e em outras partes, e continua a pairar sobre o país a enormidade do mistério de Canudos. Mistério, ou misterioso, são palavras usadas muitas vezes por Euclides da Cunha para qualificar o local que descreve, o ambiente e a coligação de jagunços e beatos que se opunha à ordem representada pelo governo da República e o Exército nacional — ou talvez o bando de jagunços feitos beatos, ou beatos feitos jagunços.

Imagine-se a seguinte cena. Depois de um dia inteiro de combates ferozes, tiros, mortos e feridos de lado a lado, correria e cansaço infinitos, caía a noite, depunham-se as armas e fazia-se silêncio no vale onde se situava o arraial e nas montanhas ao redor. De repente. um rumor começava a insinuar-se na escuridão. Aos poucos, percebia-se que era um coro de vozes humanas, com predominância das vozes femininas, num arrastado entoar de ladainhas. 

Euclides da Cunha explica: "O inimigo, embaixo, no arraial invisível — rezava". O mistério, a sensação de intercâmbio com o sobrenatural, de parte com o Absoluto, baixava sobre as desolações do sertão. 


Canudos não existe mais. A vila do Conselheiro, não bastasse ter sido destruída na guerra, encontra-se submersa. afogada que foi, em 1969. pelas águas do Açude de Cocorobó. A cidadezinha que hoje toma o nome de Canudos fica a 10 km da original. Em volta do açude qual sentinelas de uma história que insiste em não morrer, vigiam os morros tornados nacionalmente conhecidos, à época da campanha como locais de onde o Exército disparava seus canhões contra o arraial insurgente, e onde os rebeldes arriscavam suas escaramuças contra as tropas regulares — o Morro da Favela, o Morro do Mário. 

O Morro da Favela tomou-se tão famoso que veio a nomear um morro similar no Rio de Janeiro — por causa dos casebres parecidos com os de Canudos que nele vieram a erigir, segundo uma versão, ou porque nele se aboletaram os soldados veteranos da campanha. segundo outra. E a partir daí a palavra "favela" passou a ter um significado tão simbólico do Brasil quanto as cores verde e amarela.

Uma multidão de casas de taipa. ordenadas, ou melhor, desordenadas em volta de uma praça: eis o que era o arraial. O Exército calculou em 25.000 os seus habitantes, o que o tornaria a segunda cidade da Bahia na época, só inferior a Salvador.

Considera-se hoje o cálculo exagerado. Na praça central havia duas igrejas, uma em frente da outra — as chamadas "igreja velha" a menor, e "igreja nova" esta uma ambiciosa obra empreendida pelos conselheiristas, nunca terminada. 

Aquela guerra singular tão brasileira quanto a Guerra de Troia foi grega, e tão reveladora de mitos, artimanhas e desencontros da nacionalidade, travou-se em tomo da praça das igrejas. Mais particularmente, da igreja nova em cujas torres incompletas e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para alvejar os inimigos e que por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do canhoneiro dos soldados. 

Quando caiu enfim a igreja nova no finzinho da guerra, houve grandes manifestações de júbilo entre os soldados e segundo o relatório de um dos comandantes militares, "uma entusiástica e violenta vaia na jagunçada". 

Aproximava-se do desfecho a bizarra peleja que teve por centro uma igreja. Hoje, sobe-se ao Morro da Favela ou ao Alto do Mário e não se ouvem rezas. O amplo espaço em tomo é vazio e silencioso. Abaixo, vêem-se as águas do açude — apenas um plácido lago, às vezes cruzado por botes simples de pescadores, que num dia de sorte terminarão sua jornada fornidos de tucunarés, carpas ou tilápias. É um lago como outro qualquer, consideraria o observador, até mais feio, porque cercado de árida paisagem. Mas, se se tem consciência das ruínas que ele encobre, dos muitos cadáveres e da cidade duplamente fantasma, destruída pelo fogo e afogada nas águas, um frêmito pode percorrer o observador. 

O mistério continua, António Vicente Mendes Maciel, nascido em Quixeramobim, no Ceará em 1830 foi professor primário, comerciante e advogado prático — rábula é a palavra — antes de se tomar beato. Não era de família pobre, mas remediada. Não era um ignorante, mas tinha suas letras. Alguns atribuem a guinada que deu na vida a uma desilusão amorosa — o abandono da mulher, Brasilina. Ele ainda se uniria a uma segunda mulher, uma fazedora de imagens conhecida pelo luminoso nome de Joana Imaginária, antes de renunciar aos amores. 

Em 1874 aos 44 anos, já estava avançado na nova senda. É de quando data a primeira notícia sobre suas atividades, um registro do jornal O Rabudo, da cidade de Estância, Sergipe, dando conta de um certo Antônio dos Mares que, em andanças pelo sertão, vinha atraindo um "número espantoso" de pessoas.

Seu modesto mundo circunscrevia-se a lugares perdidos como Natuba, Cumbe, Masseté, Uauá, Jeremoabo, Itapicuru — basicamente o sertão da Bahia, com uma ou outra incursão a Sergipe. 

Ele andava, andava. Rezava e vivia de esmolas e ajudava os necessitados, acompanhado de um séquito cada vez maior. Quando parava em uma cidade, oferecia-se para recuperar ou quando não houvesse, construir uma igreja ou então os muros do cemitério. Maciel tinha mania de fazer igrejas e arrumar cemitérios. 

Algumas de suas obras subsistem. A cidade que hoje leva o nome de Crisópolis, fundada por ele próprio. na década de 1880, com o nome de Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seguidores, tem em sua praça central uma igreja de sua lavra. A igreja. que Euclides da Cunha considerou "belíssima" está pintada de novo e bem conservada. 

Do séquito do Conselheiro faziam parte pelo menos dois mestres-de-obras, Manuel Faustino e Manuel Feitosa. 


Igreja de Crisópolis, feita pelo Conselheiro. "Só Deus é Grande"
A igreja de Crisópolis obedece a um desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa das paredes internas, pendura-se um medalhão com a inscrição "Só Deus é grande", o dístico favorito do Conselheiro. A praça que se estende à frente da igreja, 
remodelada recentemente. chama-se "Antônio Conselheiro". A cotação de Maciel nunca andou tão alta, no sertão e fora dele. Euclides, entre muitos outros epítetos depreciativos, chamou-o de "messias de feira" e "bufão arrebatado numa visão do Apocalipse". 

Considerava-o o "grande desventurado", e, Canudos, a objetivação daquela "insânia imensa". A cotação do Conselheiro, hoje. variará de herói — para aqueles que vêem nele um certo tipo de bravura e resistência — a um bom homem, que não queria senão a salvação eterna, para si e os adeptos. 

Como se informar sobre esse cearense que procurava a paz de Deus mas acabou joguete dessa obra do Demo que são as guerras fratricidas? Durante décadas, a fonte capital — e sagrada — foi o livro de Euclides da Cunha. Hoje, impossível introduzir-se no assunto sem passar por José Calazans. 


José Calazans:
a história reconstruida a partir do relato dos sertanejos
O octogenário à época, Calazans era o decano dos canudistas da Bahia, um grupo de estudiosos voltado à pesquisa das aventuras do Conselheiro, seu arraial e a guerra. Calazans tinha saído a campo, principalmente, em busca da chamada história oral de Canudos — a história recomposta a partir do depoimento dos sertanejos. 

Como começou a trabalhar na década de 40, ainda alcançou vários sobreviventes do arraial do Conselheiro. Por exemplo: Honório Vilanova, irmão do dono da principal loja de Canudos. Antônio Vilanova, um dos homens mais próximos do Conselheiro. Honório Vilanova, com o irmão e as respectivas mulheres, escapou de Canudos nos últimos dias da guerra, como vários outros conselheiristas. Veio a morrer com mais de 100 anos. Uma vez, contou a Calazans que quando conheceu Maciel em Assaré no Ceará — Honório também era cearense — este era beato. Anos mais tarde, ao reencontrá-lo na Bahia já era conselheiro. "E há diferença?" perguntou Calazans. Honório explicou então que o beato tira rezas, pede esmolas e ajuda os pobres. O conselheiro vai além: dá conselhos.
Qual seja, prega. Na hierarquia informal do sertão, a hierarquia para-eclesiástica do misticismo sertanejo, o conselheiro situa-se acima do beato. 

Essas figuras de guias espirituais surgiam no interior do Nordeste muito em função da ausência de padres, explica o professor Cândido da Costa e Silva, da cadeira de História das Religiões da Universidade Federal da Bahia, autor de Roteiro da Vida e da Morte, um estudo sobre o catolicismo sertanejo. "Portanto, não existiam para contestar a Igreja ofi-cial mas para suplementá-la." O sertão não tinha padres como nas aldeias francesas, que davam assistência permanente às famílias e acompanhavam-nas ao cemitério, inclusive, levando seus mortos, prossegue o professor. Daí, os tiradores de reza e as incelências — eram figuras e fórmulas que supriam a falta de pessoal e de liturgia oficial. 

A pessoa ascendia à condição de beato ou conselheiro, ainda segundo Costa e Silva, de forma natural, pelo destaque que haviam obtido na sociedade, em virtude de sua liderança, capacidade de expressão, piedade e outras qualidades. Maciel jamais ousou ir além do que permitia sua condição. Nunca se aventurou a ministrar sacramentos. Tampouco podia ser acusado de desvios de doutrina, pois não pregava senão a teologia conservadora daqueles rincões e não aconselhava senão práticas de longa tradição sertaneja, como o jejum, quanto mais jejum melhor, caminhadas longas, até se esfalfar, e carregar pedras, para pagar os pecados. 

Mesmo assim a hierarquia da Igreja lhe era crescentemente hostil. Em 1887 o arcebispo de Salvador, dom Luís Antônio dos Santos cobrou providencias ao governo do Estado que por sua vez pediu socorro ao governo do Império. A idéia era internar Maciel no Hospício Dom Pedro II no Rio de Janeiro. A autoridade imperial consultada respondeu, no entanto, que não havia vaga no referido hospício.

Em seu ímpeto repressor, na verdade, a autoridade eclesiástica aliava-se à aflição dos coronéis do sertão, que se viam ameaçados duplamente no poder econômico e no poder político. 

Estudiosos contemporâneos, como o brasilianista americano Ralph Della Cava, demonstraram como o Conselheiro, e também o padre Cícero, no Ceará, na mesma época, drenavam a mão-de-obra das fazendas, ao mesmo tempo que retiravam da influência dos chefetes os votos de cabresto que lhe garantiam o controle dos instrumentos do Estado. 

Acresce que, quando o movimento do Conselheiro aproximava-se de seu auge, ocorreu a mudança de regime no país, de Monarquia para República, e o Conselheiro, tradicionalista como era, recusa-se a aceitar o novo regime. A República era o Anti-cristo, era a ordem de Satanás. Ousara separar a Igreja do Estado. E, entre outras disposições odiosas, instituíra o casamento civil, roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Uma mulher casada no civil, segundo o professor Costa e Silva ouviu de um sertanejo. em época bem mais recente, seria uma "p... testemunhada". 

O novo regime também delegara aos municípios a faculdade de instituir impostos. Certa vez, o Conselheiro encontrou os habitantes de Natuba inconformados com os impostos anunciados em editais no centro do povoado e incentivou-os a destruí-los. Foi seu primeiro gesto de desobediência civil. Em conseqüência, uma tropa policial saiu-lhe ao encalço. Depois de um choque violento, na localidade de Masseté, que resultou em três mortos de cada lado, a tropa retirou-se, mas para o Conselheiro ficou um sinal de alerta. 

O clima crescentemente desfavorável pedia uma decisão. Chegara a hora de mudar de vida. Depois de vinte anos de andanças, ele se estabeleceria com sua gente num lugar onde pudesse rezar em paz, aconselhar em paz e viver em paz, ao abrigo dos agentes do insano governo dos incréus, ou dos bispos que faziam o jogo do Diabo. Nascia Canudos. 

O fotógrafo Flávio de Barros (foto ao lado, abaixo) tinha um estúdio, em Salvador, e isso é quase tudo o que se sabe dele. Nas últimas semanas da guerra, seguiu para Canudos, comissionado pelos militares, para cobrir a Quarta Expedição. A foto ao lado é uma de suas mais famosas — a foto conhecida como das "prisioneiras”, embora, olhando bem, perceba-se que nela há homens também, no fundo. As mulheres prisioneiras foram, uma vez destruído o arraial, transportadas para Salvador. Os homens foram executados. Ao longo desta reportagem, estão estampadas mais fotos de Flávio de Barros, (que prepararei e postarei em outros artigos). Foram selecionadas principalmente as que mostram aspectos do arraial do Conselheiro — uma minoria, dentro de um conjunto em que a ênfase do fotógrafo foi nos militares. Se constituem um documento precioso, dos mais importantes da história da fotografia no Brasil, as fotos de Flávio de Barros apresentam também uma das mais lamentadas lacunas dessa mesma história: por força da censura, ou das obrigações que o prendiam ao Exército, ou ambas as coisas, ele deixou de documentar a selvageria e as atrocidades que caracterizaram o fim do conflito.

Pesquisa do Texto em base da reportagem de Roberto Pompeu de Toledo 
Fonte: Revista Veja 3 de setembro 1997