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segunda-feira, 23 de maio de 2016

O BEATO DA CRUZ NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO

BEATOS E CANGACEIROS 

Esse livro editado no ano de 1920 de autoria de Xavier de Oliveira, nos relata as estórias de beatos e cangaceiros, como história real e observação pessoal do autor, que desde o ano de 1909,  em sala de aula do Colégio São José, na cidade do Crato, Ceará, ter sido dado um trabalho escolar aos alunos, para desenvolverem o tema O Cangaço no Cariry. Nesse artigo, trago a atenção para um beato que viveu na cidade do Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero Romão Batista, a partir do ano de 1894, quando ali chegou para pagar penitências, como um romeiro qualquer. Trazia marcado em sua alma um crime, como a estória abaixo lhe dirá qual foi, e a Síndrome de Jerusalém que trata-se de um grupo de transtornos mentais, envolvendo a ideia obsessiva de temáticas religiosas, delírios e ideias psicóticas, que surgem após uma visita à cidade de Jerusalém, e que em artigo EVENTOS MARCANTES DO CARIRI CANGAÇO 2015 – Edição de Luxo, faço menção, quando digo que tal síndrome é o nome dado a um grupo de fenômenos mentais envolvendo a presença de ideias obsessivas de temática religiosa, delírios ou outras experiências de cunho psicótico que são desencadeadas por alguns que visitam a cidade. Na Jerusalém Brasileira, o Juazeiro do "Padim Ciço" cidade onde respira-se religiosidade, não poderia ser diferente, especialistas da área acreditam que esta síndrome trata-se de um transtorno dissociativo histérico, no qual indivíduos geram outra personalidade, em decorrência da sobrecarga do tema religioso que paira no ar e digo eu, por pesquisas sobre o tema, quando uma pessoa tem uma alta carga de culpa, ao aderir à religião, torna-se um fanático.

Não é exclusiva de uma única religião, porém acomete mais frequentemente judeus e cristãos de diferentes formações sócio-econômicas. O primeiro a identificar esta síndrome foi o Dr. Yair Bar-El, ex-diretor do hospital psiquiátrico Kfar Shaul da cidade de Jerusalém. Este médico examinou 470 turistas e considerou-os temporariamente insanos, entre os anos de 1979 e 1993. Desse total, 66% eram judeus, 33% eram cristãos e 1% não tinha religião definida.

Mas vamos à estória do Beato da Cruz, que deixo ipsis litteris assim como encontrei nesse livro. Uma narrativa bonita e marcante de um homem arrependido que incorporou a Sídrome do Juazeiro dos santos e beatos:

Que é um beato lá no meio religioso de Joazeiro do Padre Cicero? É um sujeito celibatário, que faz votos de castidade (real ou apparentemente), que não tem profissão, porque deixou de trabalhar, e que vive da caridade dos bons e das explorações aos crentes. Passa o dia a rezar nas egrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os mortos, a ensinar orações aos crédulos, tudo de occôrdo com os preceitos do catecismo! Veste á maneira de um frade: uma batina de algodão tinto de preto, uma cruz ás costas, um cordão de São Francisco amarrado á cintura, uma dezena de rosados. uma centena de bentinhos de São Bento, uns saquinhos com breves religiosos e com orações poderosas, tudo pendurado do pescoço. 

São geralmente individuos vagabundos, hypocritas, delirantes religiosos, ou bandidos! Não cabe aqui a historia dos beatos do Joazeiro, visto que, além do Beato da Cruz, apenas dois deles, porque incluidos no numero dos famosos cangaceiros do Nordeste, merecem descriptos: o Beato Vicente e o Beato Ricardo. 

O Beato da Cruz não era um cangaceiro. Não andava de arma longa, nem de arma curta, nem mesmo de facão, e apenas, trazia um punhal occulto na sua batina azul (excepção entre os de sua classe. sua batina era azul, em vez de preta) de modo a não ser percebido por ninguem. 

O Beato da Cruz não era, propriamente um cangaceiro! Apenas, dizem os romeiros que o conheciam do Rio Grande do Norte, sua ferra natal, quando era ahi pelos seos vinte annos, assassinou seu pae. Não sei, ninguem sabe as razões que o levaram ao parricidio. E por isso, mais dificio se torna fazer um juizo approximado a respeito da molestia que lhe deve ter perturbado o mente, desde então. 

De uma feita, os guarda-locaes Pedro Araujo, Zé de Binda e Zé Biá, a mando de um famoso João Bento, por esse tempo delegado da então povoação do Joazeiro, quizeram desinferrufar os seos facões em suas costas. Mas se arrependeram da empreza. O beato arrancou de debaixo da sua batina azul o seo língua de peba (um punhal de dois gumes, estreito e longo) e com a cruz numa mão, e com o punhal na outra, fez debandar a tropa que o queria surrar. 

— Uai... Uai... Uai... meo Pae, perdoae-lhes que não sabem o que fazem — disse, embainhando a arma terrivel, e em pranto, marchou, corcunda, a cruz ás costas, pelo beco da Velha Chica do Sobrado acima.

Que eu saiba, foi essa a sua segunda façanha, e a unica que praticou durante sua longa permanencia em Cariry. Não devia, pois, figurar neste livro, que trato apenas, dos famosos guerrilheiros que conheci nos sertões nordestinos. Em verdade. fui busca-lo no material que possúo para a — JERUSALEM BRASILEIRA (Jaozeiro Padre Cicero), ora em estudos. E só o fiz, para o fim de, com a sua interessante figura de beato penitente, dar uma idéa exata e per- feita ao leitor, do que vem a ser essa entidade exotica e singular, propria do meio religioso, que é o Joazeiro do Padre Cicero. Voltemos ao beato. 

Ahi pelo anno de 1894, um rico fazendeiro norte-rio-grandense, de nome José da Cruz, como tantos outros milhares de sertanejos, veio em romaria a Joazeiro, pagar uma promessa que fizera a Nossa Senhora das Dores. padroeira do santo logar, e ao Padre Cicero. Empolgado o seo espirito fraco pelo sentimento de religiosidade que ali observou nos romeiros residentes, encontrou, assim, o campo onde logo puderam medrar com exuberancia as idéas delirantes de que já se achava possuido. Tanto chegou e, para logo, se tornou o que se vê da sua figura macabra de beato penitente. 

Assim, vestido á frade, e cruz ao ombro, a rezar nas egrejas, a ler a biblia e as historias dos santos, começou por querer imitar o Santo João Baptista, sem dispensar, nem mesmo o seo cordeirinho manso, o animal sagrado dos israelitas. Era para se penitenciar dos seos peccados mortaes. Homem de côr branca, de grandes olhos azues, sem nenhum estygma physico apparente de degenerescencia, de quando o conheço (e foi desde que me entendo) até dois annos, quando felecêo, sua vida foi sempre a mesma: rezar nas egrejas e occupar-se das coisas de Deus. Humor triste, facies abatida, olhar piedoso de perfeito visionario, em constante anciedade, era sua preoccupação unica salvar sua alma das penas eter-nas ! Era para isso que passava a vida inteira a fazer penitencia! Não sei se confessava sempre, o que não é provavel; mas é certo que levava o dia inteiro a ir de uma para outra egreja, a postar-se de joelhos, contricto, deante do altar do Senhor Morto, a orar em extase, a se lastimar, a chorar, a dizer-se culpado de estar ali crucificado o Filho de Maria, o meigo Nazareno de Belém e rei de Judá. - Uai... uai... uai... meo Pai, fazia o beato, prostrado aos pés da cruz, numa anciedade indescriptivel, offegante, a fazer caretas, banhado em lagrimas e coberto de suor. 

Na mesa do Revd. Padre Luiz Maranhão de Lacerda, vigario de Milagres, num dia de 1910 eu estava, quando, com sorpreza para mim, portas a dentro, entrou elle cantando, em voz sonora, e em som de cantochão, o seo bemdicto predilecto:
Na quinta-feira maior, 
O Deus Jesus Christo previa, 
Que na sexta-feira santa,
Ás tres horas elle morria. 

Uai... Uai . . . Uai . . meo Pai!

As ultimas palavras de sua toada plangente, desfez-se em pranto o beato. Ainda era o mesmo. Havia, seguramente, seis annos não o via. Fizera progresso nos habitos de religioso, pois já então, estava com a sua cruz de penitente cheia de milagres que obrara para os fieis que tinham fé em sua santidade, em seo prestigio junto a todos os santos do céo e junto ao proprio Deus !... 
— Uai. . . Uai... Uai. . . meo Pai! disse em prantos, banhado em lagrimas. cahindo de joelhos aos pés do sacerdote e beijando-lhe a batina. 
— Sente-se ahi, José, deixe-se de choro e vamos comer, disse para elle o bom do parocho, apon-tando-lhe uma cadeira á mesa. 

E o beato fez-nos companhia no agape. Puxei então de conversação com elle, e durante todo o almoço. falámos de Juazeiro. Disse-lhe o mêdo que me causava quando menino, o via aos pés da cruz, ou deante do Senhor Morto, ao meio dia em ponto, a chorar, a gemer dolorosamente... Uai... Uai... Uai... meo Pai! .. e que mais me parecia o uivo lastimoso de um cão soffredor do que os lamentos de um beato penitente. Uai... Meo Padre, eu sou peor que um cão, bradou lamentoso o beato, quando o padre: — Ora, José, não faça assim deante do major... O major, na ironia christã do ilustre Revdo. era eu então, um segundannista de gymnasio... — Sim meo Padre, - e terminou o beato dizendo-me de referencia ao Revd. Maranhão: ele é muito bomzinho para mim. Consolado, continuou o comer. 

Depois da refeição, dando graças a Deus e ao sacerdote que lhe dera o pão daquele dia, rezou muitas orações, fez uma centena de — em nome do Padre - os grandes olhos vermelhos do pranto er-guidos aos céos, piedosos, despedia-se de nós e sahio, a cruz ás costas, com o seo manso cordeiri-nho pelas ruas de Milagres, a cantar em voz cava e sumida, numa toada plangente, o seo bemdicto predilecto: 

Na quinta-feira maior,
O Deus Jesus-Christo previa, 
Que na sexta-feira santa, 
Ás tres horas, elle morria. 

Quem o poderia saber? Era, talvez, o remorso do beato, por haver morto seu pae, possivelmente, numa sexta-feira tambem, que explodia naquellas palavras que dizia cantando, em voz penosa e sombria, e numa musica funebre de cantochão... Só de tempos em tempos ia o Beato da Cruz a Joazeiro, donde fora obrigado a sahir, em vista da rixa que se creou entre elle e os guarda-locaes da cidade que, de outra feita, o pegarem de geito, e lhe deram uma grande sova. Mas, ainda que distante de Centro... quando apparecia era um successo. Empanava o prestigio santo de todos os seos collegas de classe, á excepção apenas, do beato Manoel Antonio da taba furada, bebedor de kerozene e fallador da vida alheia, como elle proprio se dizia.

Este, que passava a vida a escrever ás centenas, aos milhares, as orações: 

Oh! Maria Concebida sem peccado,
Rogue por nós que recorremos o Vós

e a distribui-las gratuitamente aos romeiros, como aos demais beatos, levava na troça o proprio Beato da Cruz, a quem para melindra-lo, chamava-o em tom de brincadeira: MANCEBADO 
— Uai... meo Pai, perdoae-lhe... fazia o beato, e sabia rua fora a chorar emquanto o seu collega e rival, Manoel Antonio de taba furada, ria á bandeira despregada, do effeito da sua pilheria. 

Eis ahi está o beato da Cruz, com o seo cordeirinho santo, á porta da egreja de Nossa Senhora do Perpetuo Soccorro, em cuja nave, num carneiro a um canto, á direita de quem entra pela porta principal, está o sepulchro da celebre beata Maria de Araujo.

Além, por traz do beato vë-se um paredão. É o muro do cemiterio do Joazeiro. Foi lá que em 1914 baixou ao tumulo o corpo do celebre beato e grande cangaceiro Ricardo: e foi lá tambem que ha dois annos teve sepultura o corpo innanimado do santo Beato da Cruz, que apenas matou seo pae, e, com sua cruz numa mão e com seo punhal na outra, fez debandar, em Joazeiro. um bando de guarda-locaes. O seo cordeirinho, certamente já foi comido pelos famintos da grande metropole sertaneja. Mas a sua memoria e as suas virtudes jamais deixarão de ser veneradas, enquanto houver um romeiro credulo na JERUSALEM BRAZILEIRA. 

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sábado, 23 de abril de 2016

CANUDOS: O Legado do Conselheiro

Essa matéria da Revista Veja, traz a nós a questão mal resolvida do massacre de Canudos depois de mais de 100 anos. As feridas ainda estão abertas e podemos dizer que trata-se de um emblema do Brasil pois assim como a ditadura militar/civil de 1964, que ainda projeta suas sombras que ainda pairam sobre a sociedade que até hoje ainda está buscando resolver essa situação mais recente da história brasileira, fica sendo procrastinada. Diferentemente da ditadura que existem vivos que a combateram, temos outros conflitos onde o Estado usou a violência de forma pesada. No caso de Canudos, não existe mais ninguém vivo, assim como em outros massacres que se deram no passado.


Canudos em chamas, numa foto da época: calcula-se que 15 000 pessoas morreram 
Antonio Conselheiro vestia um camisolão azul, sem cintura. Tinha cabelos longos como Jesus e barbas longas. Nos pés calçava sandálias para enfrentar o pó das estradas e a cabeça, protegia-a do sol inclemente com um chapelão de abas largas. Nas mãos levava um cajado como os profetas, os santos, os guiadores de gente, os escolhidos, os que sabem o caminho do céu. 

Saudava as pessoas dizendo "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo". Respondiam-lhe dizendo "Para sempre seja louvado". Chamava os outros "meu irmão". Os outros chamavam-no "meu pai". Foi conhecido como Antônio dos Mares, uma certa época, e também como Irmão Antônio. Os mais devotos o intitulavam "Bom Jesus", Santo Antônio". 

De batismo, era Antônio Vicente Mendes Maciel. Quando fixou sua fama, era Antônio Conselheiro, nome com o qual conquistou os sertões e além. O mais célebre cronista de suas aventuras, Euclides da Cunha, escreveu em Os Sertões que poderia tanto ir para a História como para o hospício. Maldade considerá-lo caso de hospício. Foi para a História, e nela cravou um marco profundo — um ferimento. 

Transformou-se num dos personagens mais perturbadores da História do Brasil, figura central de um dos episódios mais extravagantes. equivocados e trágicos da nacionalidade, e também dos mais fascinantes, em que o Brasil defronta o Brasil, estranha o Brasil e choca-se frontalmente com o Brasil.

Onde ficava Canudos, hoje um açude no lugar do arraial e ao fundo os morros do Mário e da Favela
A Guerra de Canudos, na qual, calcula-se, morreram 15.000 pessoas, fez 100 anos em 1997. No dia 5 de outubro de 1897 depois de quatro expedições militares, um ano de lutas intermitentes e uma resistência feroz por parte de seus defensores, o arraial erigido pelo Conselheiro nos ermos do Nordeste da Bahia foi finalmente tomado pelo Exército. 

Quase nada sobrava daquele santuário-cidadela, um povoado que sonhou ser a Jerusalém dos confins do mundo e acabou uma Pompéia sem Vesúvio, reduzida a escombros, cadáveres, sangue e cinzas. 

Escreveu Euclides da Cunha: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados." 

Dias antes, em 22 de setembro, morrera o Conselheiro — de disenteria, segundo alguns, talvez das complicações de um ferimento leve, segundo outra versão, talvez da desolação e da tristeza que cresciam a seu redor naqueles derradeiros momentos. 

Cem anos passados, programam-se seminários, houve cerimônias na Bahia e em outras partes, e continua a pairar sobre o país a enormidade do mistério de Canudos. Mistério, ou misterioso, são palavras usadas muitas vezes por Euclides da Cunha para qualificar o local que descreve, o ambiente e a coligação de jagunços e beatos que se opunha à ordem representada pelo governo da República e o Exército nacional — ou talvez o bando de jagunços feitos beatos, ou beatos feitos jagunços.

Imagine-se a seguinte cena. Depois de um dia inteiro de combates ferozes, tiros, mortos e feridos de lado a lado, correria e cansaço infinitos, caía a noite, depunham-se as armas e fazia-se silêncio no vale onde se situava o arraial e nas montanhas ao redor. De repente. um rumor começava a insinuar-se na escuridão. Aos poucos, percebia-se que era um coro de vozes humanas, com predominância das vozes femininas, num arrastado entoar de ladainhas. 

Euclides da Cunha explica: "O inimigo, embaixo, no arraial invisível — rezava". O mistério, a sensação de intercâmbio com o sobrenatural, de parte com o Absoluto, baixava sobre as desolações do sertão. 


Canudos não existe mais. A vila do Conselheiro, não bastasse ter sido destruída na guerra, encontra-se submersa. afogada que foi, em 1969. pelas águas do Açude de Cocorobó. A cidadezinha que hoje toma o nome de Canudos fica a 10 km da original. Em volta do açude qual sentinelas de uma história que insiste em não morrer, vigiam os morros tornados nacionalmente conhecidos, à época da campanha como locais de onde o Exército disparava seus canhões contra o arraial insurgente, e onde os rebeldes arriscavam suas escaramuças contra as tropas regulares — o Morro da Favela, o Morro do Mário. 

O Morro da Favela tomou-se tão famoso que veio a nomear um morro similar no Rio de Janeiro — por causa dos casebres parecidos com os de Canudos que nele vieram a erigir, segundo uma versão, ou porque nele se aboletaram os soldados veteranos da campanha. segundo outra. E a partir daí a palavra "favela" passou a ter um significado tão simbólico do Brasil quanto as cores verde e amarela.

Uma multidão de casas de taipa. ordenadas, ou melhor, desordenadas em volta de uma praça: eis o que era o arraial. O Exército calculou em 25.000 os seus habitantes, o que o tornaria a segunda cidade da Bahia na época, só inferior a Salvador.

Considera-se hoje o cálculo exagerado. Na praça central havia duas igrejas, uma em frente da outra — as chamadas "igreja velha" a menor, e "igreja nova" esta uma ambiciosa obra empreendida pelos conselheiristas, nunca terminada. 

Aquela guerra singular tão brasileira quanto a Guerra de Troia foi grega, e tão reveladora de mitos, artimanhas e desencontros da nacionalidade, travou-se em tomo da praça das igrejas. Mais particularmente, da igreja nova em cujas torres incompletas e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para alvejar os inimigos e que por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do canhoneiro dos soldados. 

Quando caiu enfim a igreja nova no finzinho da guerra, houve grandes manifestações de júbilo entre os soldados e segundo o relatório de um dos comandantes militares, "uma entusiástica e violenta vaia na jagunçada". 

Aproximava-se do desfecho a bizarra peleja que teve por centro uma igreja. Hoje, sobe-se ao Morro da Favela ou ao Alto do Mário e não se ouvem rezas. O amplo espaço em tomo é vazio e silencioso. Abaixo, vêem-se as águas do açude — apenas um plácido lago, às vezes cruzado por botes simples de pescadores, que num dia de sorte terminarão sua jornada fornidos de tucunarés, carpas ou tilápias. É um lago como outro qualquer, consideraria o observador, até mais feio, porque cercado de árida paisagem. Mas, se se tem consciência das ruínas que ele encobre, dos muitos cadáveres e da cidade duplamente fantasma, destruída pelo fogo e afogada nas águas, um frêmito pode percorrer o observador. 

O mistério continua, António Vicente Mendes Maciel, nascido em Quixeramobim, no Ceará em 1830 foi professor primário, comerciante e advogado prático — rábula é a palavra — antes de se tomar beato. Não era de família pobre, mas remediada. Não era um ignorante, mas tinha suas letras. Alguns atribuem a guinada que deu na vida a uma desilusão amorosa — o abandono da mulher, Brasilina. Ele ainda se uniria a uma segunda mulher, uma fazedora de imagens conhecida pelo luminoso nome de Joana Imaginária, antes de renunciar aos amores. 

Em 1874 aos 44 anos, já estava avançado na nova senda. É de quando data a primeira notícia sobre suas atividades, um registro do jornal O Rabudo, da cidade de Estância, Sergipe, dando conta de um certo Antônio dos Mares que, em andanças pelo sertão, vinha atraindo um "número espantoso" de pessoas.

Seu modesto mundo circunscrevia-se a lugares perdidos como Natuba, Cumbe, Masseté, Uauá, Jeremoabo, Itapicuru — basicamente o sertão da Bahia, com uma ou outra incursão a Sergipe. 

Ele andava, andava. Rezava e vivia de esmolas e ajudava os necessitados, acompanhado de um séquito cada vez maior. Quando parava em uma cidade, oferecia-se para recuperar ou quando não houvesse, construir uma igreja ou então os muros do cemitério. Maciel tinha mania de fazer igrejas e arrumar cemitérios. 

Algumas de suas obras subsistem. A cidade que hoje leva o nome de Crisópolis, fundada por ele próprio. na década de 1880, com o nome de Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seguidores, tem em sua praça central uma igreja de sua lavra. A igreja. que Euclides da Cunha considerou "belíssima" está pintada de novo e bem conservada. 

Do séquito do Conselheiro faziam parte pelo menos dois mestres-de-obras, Manuel Faustino e Manuel Feitosa. 


Igreja de Crisópolis, feita pelo Conselheiro. "Só Deus é Grande"
A igreja de Crisópolis obedece a um desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa das paredes internas, pendura-se um medalhão com a inscrição "Só Deus é grande", o dístico favorito do Conselheiro. A praça que se estende à frente da igreja, 
remodelada recentemente. chama-se "Antônio Conselheiro". A cotação de Maciel nunca andou tão alta, no sertão e fora dele. Euclides, entre muitos outros epítetos depreciativos, chamou-o de "messias de feira" e "bufão arrebatado numa visão do Apocalipse". 

Considerava-o o "grande desventurado", e, Canudos, a objetivação daquela "insânia imensa". A cotação do Conselheiro, hoje. variará de herói — para aqueles que vêem nele um certo tipo de bravura e resistência — a um bom homem, que não queria senão a salvação eterna, para si e os adeptos. 

Como se informar sobre esse cearense que procurava a paz de Deus mas acabou joguete dessa obra do Demo que são as guerras fratricidas? Durante décadas, a fonte capital — e sagrada — foi o livro de Euclides da Cunha. Hoje, impossível introduzir-se no assunto sem passar por José Calazans. 


José Calazans:
a história reconstruida a partir do relato dos sertanejos
O octogenário à época, Calazans era o decano dos canudistas da Bahia, um grupo de estudiosos voltado à pesquisa das aventuras do Conselheiro, seu arraial e a guerra. Calazans tinha saído a campo, principalmente, em busca da chamada história oral de Canudos — a história recomposta a partir do depoimento dos sertanejos. 

Como começou a trabalhar na década de 40, ainda alcançou vários sobreviventes do arraial do Conselheiro. Por exemplo: Honório Vilanova, irmão do dono da principal loja de Canudos. Antônio Vilanova, um dos homens mais próximos do Conselheiro. Honório Vilanova, com o irmão e as respectivas mulheres, escapou de Canudos nos últimos dias da guerra, como vários outros conselheiristas. Veio a morrer com mais de 100 anos. Uma vez, contou a Calazans que quando conheceu Maciel em Assaré no Ceará — Honório também era cearense — este era beato. Anos mais tarde, ao reencontrá-lo na Bahia já era conselheiro. "E há diferença?" perguntou Calazans. Honório explicou então que o beato tira rezas, pede esmolas e ajuda os pobres. O conselheiro vai além: dá conselhos.
Qual seja, prega. Na hierarquia informal do sertão, a hierarquia para-eclesiástica do misticismo sertanejo, o conselheiro situa-se acima do beato. 

Essas figuras de guias espirituais surgiam no interior do Nordeste muito em função da ausência de padres, explica o professor Cândido da Costa e Silva, da cadeira de História das Religiões da Universidade Federal da Bahia, autor de Roteiro da Vida e da Morte, um estudo sobre o catolicismo sertanejo. "Portanto, não existiam para contestar a Igreja ofi-cial mas para suplementá-la." O sertão não tinha padres como nas aldeias francesas, que davam assistência permanente às famílias e acompanhavam-nas ao cemitério, inclusive, levando seus mortos, prossegue o professor. Daí, os tiradores de reza e as incelências — eram figuras e fórmulas que supriam a falta de pessoal e de liturgia oficial. 

A pessoa ascendia à condição de beato ou conselheiro, ainda segundo Costa e Silva, de forma natural, pelo destaque que haviam obtido na sociedade, em virtude de sua liderança, capacidade de expressão, piedade e outras qualidades. Maciel jamais ousou ir além do que permitia sua condição. Nunca se aventurou a ministrar sacramentos. Tampouco podia ser acusado de desvios de doutrina, pois não pregava senão a teologia conservadora daqueles rincões e não aconselhava senão práticas de longa tradição sertaneja, como o jejum, quanto mais jejum melhor, caminhadas longas, até se esfalfar, e carregar pedras, para pagar os pecados. 

Mesmo assim a hierarquia da Igreja lhe era crescentemente hostil. Em 1887 o arcebispo de Salvador, dom Luís Antônio dos Santos cobrou providencias ao governo do Estado que por sua vez pediu socorro ao governo do Império. A idéia era internar Maciel no Hospício Dom Pedro II no Rio de Janeiro. A autoridade imperial consultada respondeu, no entanto, que não havia vaga no referido hospício.

Em seu ímpeto repressor, na verdade, a autoridade eclesiástica aliava-se à aflição dos coronéis do sertão, que se viam ameaçados duplamente no poder econômico e no poder político. 

Estudiosos contemporâneos, como o brasilianista americano Ralph Della Cava, demonstraram como o Conselheiro, e também o padre Cícero, no Ceará, na mesma época, drenavam a mão-de-obra das fazendas, ao mesmo tempo que retiravam da influência dos chefetes os votos de cabresto que lhe garantiam o controle dos instrumentos do Estado. 

Acresce que, quando o movimento do Conselheiro aproximava-se de seu auge, ocorreu a mudança de regime no país, de Monarquia para República, e o Conselheiro, tradicionalista como era, recusa-se a aceitar o novo regime. A República era o Anti-cristo, era a ordem de Satanás. Ousara separar a Igreja do Estado. E, entre outras disposições odiosas, instituíra o casamento civil, roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Uma mulher casada no civil, segundo o professor Costa e Silva ouviu de um sertanejo. em época bem mais recente, seria uma "p... testemunhada". 

O novo regime também delegara aos municípios a faculdade de instituir impostos. Certa vez, o Conselheiro encontrou os habitantes de Natuba inconformados com os impostos anunciados em editais no centro do povoado e incentivou-os a destruí-los. Foi seu primeiro gesto de desobediência civil. Em conseqüência, uma tropa policial saiu-lhe ao encalço. Depois de um choque violento, na localidade de Masseté, que resultou em três mortos de cada lado, a tropa retirou-se, mas para o Conselheiro ficou um sinal de alerta. 

O clima crescentemente desfavorável pedia uma decisão. Chegara a hora de mudar de vida. Depois de vinte anos de andanças, ele se estabeleceria com sua gente num lugar onde pudesse rezar em paz, aconselhar em paz e viver em paz, ao abrigo dos agentes do insano governo dos incréus, ou dos bispos que faziam o jogo do Diabo. Nascia Canudos. 

O fotógrafo Flávio de Barros (foto ao lado, abaixo) tinha um estúdio, em Salvador, e isso é quase tudo o que se sabe dele. Nas últimas semanas da guerra, seguiu para Canudos, comissionado pelos militares, para cobrir a Quarta Expedição. A foto ao lado é uma de suas mais famosas — a foto conhecida como das "prisioneiras”, embora, olhando bem, perceba-se que nela há homens também, no fundo. As mulheres prisioneiras foram, uma vez destruído o arraial, transportadas para Salvador. Os homens foram executados. Ao longo desta reportagem, estão estampadas mais fotos de Flávio de Barros, (que prepararei e postarei em outros artigos). Foram selecionadas principalmente as que mostram aspectos do arraial do Conselheiro — uma minoria, dentro de um conjunto em que a ênfase do fotógrafo foi nos militares. Se constituem um documento precioso, dos mais importantes da história da fotografia no Brasil, as fotos de Flávio de Barros apresentam também uma das mais lamentadas lacunas dessa mesma história: por força da censura, ou das obrigações que o prendiam ao Exército, ou ambas as coisas, ele deixou de documentar a selvageria e as atrocidades que caracterizaram o fim do conflito.

Pesquisa do Texto em base da reportagem de Roberto Pompeu de Toledo 
Fonte: Revista Veja 3 de setembro 1997



sexta-feira, 22 de abril de 2016

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

O Brasil entre beatos, cangaceiros e coronéis

Em ‘O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro’ Glauber Rocha capta as fissuras da sociedade brasileira. Retratando a violência e a crueza das relações sociais no sertão nordestino, constrói a ‘estética da fome’



Eu andei por esse mundo gente, e conheci a desgraça dos outros... e aprendi uma verdade que estava na Sagrada Bíblia: É olho por olho e dente por dente!
Cangaceiro Coirana, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. 
Dir. Glauber Rocha. Brasil, França, 1969

Durante o século XX, amadureceu no seio da intelectualidade brasileira o desejo de identificar os traços mais característicos do ethos nacional. Sociólogos, antropólogos, historiadores e artistas se perguntavam no que, de fato, se constituiria o Brasil, e o que o impediria de transformar-se num país plenamente realizado nos planos socioeconômico e político. Nomes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda publicariam obras-chave na tentativa de encontrar um significado para a existência nacional. No campo das artes plásticas, Cândido Portinari retrataria a existência sofrida do sertanejo, e na poesia e dramaturgia Oswald de Andrade ergueria a bandeira do antropofagismo cultural, como resposta e atestado do processo de realização artística no país.
Foi unindo diversas dessas teses, além de criando suas próprias, que Glauber Rocha definiu uma narrativa da história brasileira, expressa em obras como Terra em Transe (1967); e plenamente desenvolvida emO Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Neste longa-metragem, continuação de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), acompanhamos o destino melancólico de Antônio das Mortes, personagem vivido por Maurício do Valle, jagunço e matador de cangaceiros, contratado para realizar um último serviço.

A apresentação reforça o sentido de disparidade estilística e narrativa em relação a Deus e o Diabo na Terra do Sol, que se passa no final da década de 1930. Ocorrendo em um momento relativamente atemporal, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro retrata um Nordeste em franco processo de modernização capitalista, no qual crescem as cidades, constroem-se estradas e postos de gasolina, e já se considera inevitável o advento da industrialização e da reforma agrária.Logo nos créditos iniciais, o filme apresenta um rápido sumário em francês, que Glauber – além de diretor, também roteirista do filme – julgou necessário para a compreensão dos eventos e do recorte histórico que queria construir (fruto de uma coprodução franco-brasileira, o prefácio quer explicar a um público estrangeiro os eventos históricos que considera mais relevantes para a compreensão do filme): “Chamam-se – ‘Jagunços’ assassinos de aluguel; ‘Coronel’ grandes proprietários de terras; ‘Beatos’ comunidade de camponeses miseráveis e místicos; ‘Santo’ pessoa que dirige espiritualmente essas comunidades”. Junto ao glossário se encontra uma rápida descrição dos cangaceiros enquanto “bandidos místicos que desapareceram do Nordeste do Brasil em 1940”, tendo sido Lampião o “mais célebre de todos”.

O sertão de Glauber
 É em meio a esse cenário de abandono forçado de estruturas arcaicas, que um bando de cangaceiros e beatos, liderado pelo bandoleiro Coirana, ataca um pequeno povoado da caatinga, despertando pavor nas pessoas da região, que são forçadas a implorar pela ajuda de Antônio das Mortes – um jagunço aposentado.
Chegando à cidade, um oficial da lei esclarece ao pistoleiro que, diferente do tempo das intensas volantes (expedições militares que partiam à caça dos bandos de Lampião, Corisco, e tantos outros), ele espera que tudo seja resolvido de forma rápida. Percebe-se que o perigo real de rompimento da ordem mantida pelo Estado no Nordeste simplesmente inexiste no que concerne ao bando de Coirana. Eles representam uma mera surpresa inconveniente, já que as condições para o surgimento dos cangaceiros por aquelas paragens já haviam, há muito, desaparecido.
O fato pode ser observado quando ocorre a segunda invasão do povoado pelos cangaceiros, retratada por Glauber em uma interminável panorâmica (como se chama a tomada em que a câmera gira sobre seu próprio eixo), na qual o bando, vestido com roupas tradicionais do sertão nordestino e indumentárias próprias de cultos afro-brasileiros, em vez de disparar suas armas contra o inimigo, dança e canta anarquicamente uma gira de louvor a São Cosme e Damião e ao orixá Xangô. O ataque, neste caso, é alegórico, representando a invasão de todo um legado cultural, popular e mestiço, que as elites brasileiras teriam sempre buscado frear.
E é sob esse aspecto que triunfam as pretensões estilísticas do filme de Glauber Rocha. Ao criar um grupo de cangaceiros extemporâneos, o cineasta retrata uma espécie de vingança histórica, segundo a qual uma segunda vinda do Cangaço tenderia a se justificar pela necessidade de punição simbólica da estrutura agrária brasileira, responsável primeiramente pela opressão secular sofrida pelos sertanejos. O chefe local, coronel Horácio (interpretado por Jofre Soares), longe de representar o perigo dos outrora onipotentes donos de terra do Norte, não passa de um velho cego, cuja vida se resume a divagar sobre uma realidade que ele jamais consegue apreender completamente. O velho é também desprovido do respeito do delegado Mattos (personagem de Hugo Carvana) e de sua própria mulher Laura, interpretada por Odete Lara, cujo caso amoroso é conhecido por todos os personagens.
À ausência da necessidade material de uma rebelião (em vista do processo de modernização do sertão nordestino), corresponderia o imperativo de uma justiça simbólica capaz de punir os poderosos pelos crimes que haveriam cometido em tempos já remotos. É a percepção disso que faz Antônio das Mortes arrepender-se do assassinato de Coirana, a quem fere com uma peixeira, e decidir proteger os beatos. Estes são então chacinados por outro exército de jagunços, convocado pelo coronel Horácio.
Em uma cidade já fantasma, resta a Antônio das Mortes, Antão (comandante negro dos beatos, encarnado pelo ator Mário Gusmão) e ao professor de história do vilarejo, interpretado por Othon Bastos, concluírem a vingança iniciada por Coirana, eliminando o coronel e seus matadores. Ao cabo da trama, porém, não há uma multidão jubilosa tomando as ruas da cidade, ou uma sequência explicativa que mostre a celebração dos sertanejos. A justiça histórica retratada por Glauber Rocha é crua e desprovida de consequências práticas: o processo de modernização do Nordeste seguirá inexoravelmente, deixando cair por terra as arcaicas relações de trabalho e poder da região, repostas por outras, mais adequadas a um mundo em contínua transformação. Resta a Antônio das Mortes, o pistoleiro redimido, simplesmente marchar sem rumo por uma rodovia empoeirada, tomada por grandes caminhões de carga e ladeada por um posto de gasolina da Shell, símbolos do novo mundo que invade o Sertão e altera sua paisagem.
A estética da fome
A protoanarrativa histórica de Glauber acaba assim por ecoar aquela delineada por Euclides da Cunha, cuja obra Os Sertões, caracteriza a relação entre o Brasil capitalista e modernizante do litoral, e o interior antigo e isolado, como sendo marcada pelo signo da violência. Violência que permeia os laços entre senhores e camponeses – mediada por jagunços – e a violência dos grandes centros urbanos, que desde o final do século XIX buscam sufocar, progressivamente, qualquer experiência ou modelo social que se interponha à marcha do “progresso”. Em 1965, o próprio Glauber ressaltaria o traço brasileiro da violência e a necessidade desta existir como nervo central do projeto artístico do Cinema Novo (representando ainda um relevante instrumento de transformação política) em seu manifesto “Uma estética da fome”, publicado na Revista Civilização Brasileira.
Nele, o cineasta defende que “somente uma cultura da fome, mirando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. (...) Pelo cinema novo: o comportamento exato de um faminto é a violência e a violência de um faminto não é primitivismo”. Esta se veria traduzida de maneira ritualizada nas alegóricas cenas de assassinato de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, primeiro filme colorido do diretor: a paleta de cores de cada plano e cada sequência remete quase sempre ao vermelho, a tons terrosos, à sujeira e ao sangue.
O imenso impacto estilístico e narrativo do Cinema Novo (com destaque para as obras de Glauber Rocha) rondaria fantasmagoricamente a história do cinema nacional, ecoando até os dias de hoje. Como se pode atestar em produções recentes, caso de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, escolhido para ser o candidato brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2014.
Na trama, seguimos diversos grupos de personagens, de distintos níveis econômicos, habitantes da mesma rua ocupada por um condomínio de luxo, em Recife. Os prédios, que compõem o conjunto habitacional da narrativa, acabam por se tornar o espaço de realização de tensões sociais e históricas, ecoantes do Brasil colonial, tal qual descrito por Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala: “Na zona agrária (brasileira) desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas-grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.
Na nova realidade de um Brasil que se urbaniza, o antigo senhor de engenho, representado em O som ao redor pelo personagem Francisco, torna-se investidor imobiliário, não se furtando em considerar a vizinhança em que habita como sua propriedade pessoal. O papel antes reservado aos escravos passa a ser exercido pelas empregadas domésticas, que muitas vezes, quando jovens, são “pegas para criar” por seus patrões, os quais afirmam, por vezes, considera-las “da família” – materializando relações profissionais que estão muito distantes do que se esperaria de uma lógica de trabalho livre. As senzalas transformam-se nas famigeradas “áreas de serviço” e “quartos de empregada”, recintos de dimensões reduzidas e altas temperaturas, por vezes dominados pelo mofo e pela umidade – reservados a uma força de trabalho que, no condomínio, considera-se estar apenas de passagem.
 E quanto aos outrora folclóricos jagunços, estes se transmutam nos sempre presentes vigias de rua – representados no filme pelo personagem Clodoaldo, interpretado por Irandir Santos, e seus comandados. Estes deixam de lado o gibão e o chapéu de couro, a peixeira, e a garrucha, para vestirem o já habitual colete preto, sem mangas, marcado nas costas com palavras como SEGURANÇA ou CONTENÇÃO. Longe de visarem cangaceiros e beatos, buscam agora os chamados intrusos, pivetes e trombadinhas, nos quais preferem aplicar seus “cala-boca” ou “sossega-leão”, do que apelar para a lei de um Estado racionalista, sustentado por instituições, ao menos oficialmente, não-patriarcais. E talvez seja neste aspecto que O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro tenha se tornado, infelizmente, defasado. O Brasil arcaico que tanto Glauber Rocha quanto a época em que viveu consideravam moribundo e superado, parece continuar vivo nas entranhas do Brasil moderno.
Alexandre Leitão 21/11/2013  - Revista da Históri

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