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domingo, 1 de maio de 2016

CANUDOS: Os Astros da Degola

Ao concluir a leitura dessa bem escrita reportagem da revista Veja de setembro de 1997, em 5 capítulos sequenciais, mais ainda fica registrado em minha mente, o trabalho da elite brasileira com sua imprensa, que distorce os fatos para auxiliar no combate aos direitos dos trabalhadores pobres em viverem dignamente. Foi assim desde os primórdios quando da fundação dela no final do século XIX. 

Deu-se assim sempre e até hoje estamos vendo isso. Sorte nossa que hoje temos os blogs e redes sociais para desfazer as notícias inverídicas e caluniosas dessa imprensa voltada não às notícias, mas a tentar convencer os cidadãos pelo que escrevem.

Que mal fazia esse grupo de pessoas perdidas no alto sertão, Vivendo seus afazeres domésticos e prol de uns dos outros? 

Tem razão o jornalista que compôs essa série de artigos: "Canudos é, entre outras coisas, um fenômeno de imprensa." Sim, insuflaram com notícias tendenciosas os que estavam distantes dos fatos e não tinha como avaliarem a situação. "Custa crer" que se levasse a sério que o arraial miserável do Conselheiro, situado um pouco para lá do fim do mundo. representasse tal ameaça à pátria. E, no entanto, pelo que se lia nas páginas arrebatadas dos jornais, frementes de patriotismo, levava-se crer que sim.

Continua a a grande imprensa a aliar-se com aqueles que não admitem ver uma sociedade mais justa. Estamos vendo isso hoje, nesses últimos governos trabalhistas, voltados para amenizar as mazelas dos pobres. Eles, a elite, não querem isso.

Leiam e tirem suas conclusões; essa é a minha.

O corpo do Conselheiro depois de desenterrado - Foto abaixo: Conselheiro, o marechal Bittencourt e "Matadeira" convivem em paz na praça Monte Santo
No dia 18 de julho de 1897. o jornal O País do Rio de Janeiro — um dos principais da então capital federal, dirigido pelo eminente Quintino Bocaiúva —, publicou um artigo em que se lia, sob o título "O monstro de Canudos": "O monstro, ao longe, nas profundezas do sertão misterioso, escancara as guelras insaciáveis, pedindo mais gente, mais pasto de corações republicanos, um farnel mais opulento de heróis..." 

A frase é longa, façamos uma pausa. Canudos é, entre outras coisas, um fenômeno de imprensa. Os principais jornais do Rio, de São Paulo e de Salvador enviaram correspondentes à guerra, especialmente depois do trauma da derrota da expedição Moreira César. Pela primeira vez, fazia-se no Brasil a cobertura maciça, diária e direta de um determinado evento. Euclides da Cunha foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo e isso possibilitou-lhe o início da coleta do material para o livro que publicaria cinco anos depois. Outros jornalistas de primeira linha foram enviados à frente. O telégrafo, conquista recente no país, estendido até Monte Santo para as necessidades da ocasião, fornecia o suporte técnico ao empreendimento. 

Continuemos a frase: "...e a fera ir-se-á abastecendo e devorando até que num assomo de raiva, ao sentir a falta de ucharia, desse abastecimento de corpos, desgrenhe a juba e com um arranque de sua pata monstruosa queira esmagar a pátria, em crepe pela morte dos seus filhos mais amados, pelo massacre do seu exército glorioso!" 
Casa do arraial: Euclideshorrorizou-se com a "urbe monstruosa"


Trata-se de um animal fantástico, como observa a professora Walnice Galvão, autora de No Calor da Hora, livro que reúne as coberturas de imprensa da guerra. Tem guelras de peixe e juba de leão. Custa crer que se levasse a sério que o arraial miserável do Conselheiro, situado um pouco para lá do fim do mundo. representasse tal ameaça à pátria. E, no entanto, pelo que se lia nas páginas arrebatadas dos jornais. frementes de patriotismo, levava-se sim. Uma grande mobilização nacional seguiu-se à derrocada da terceira expedição. A quarta haveria de ser muito maior e mais equipada. e de não ter piedade dos lesas-pátrias do sertão, incapazes de compreender as excelências do regime republicano.

Para comandá-la foi escolhido o general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Ao aceitar a missão, Artur Oscar declarava: "Todas as grandes idéias têm os seus mártires: nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração futura uma República honrada firme e respeitada". 

Euclides da Cunha, que nos seus despachos de repórter seguira a sanha patrioteira em voga, mas que no seu livro "vingador", como diria, adotou uma postura crítica, escreve, em Os Sertões: "A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia". 

Mais de 5.000 homens foram mobilizados para a nova ofensiva. Reuniram-se batalhões do Rio Grande do Sul ao Amazonas, e as forças dessa vez foram divididas em duas colunas. A primeira, como as duas anteriores, se concentraria em Monte Santo. A segunda — esta era a grande novidade — partiria de Aracaju para Canudos, comandada pelo general Cláu-dio Savaget. 

Todos os recursos do Exército foram mobilizados. A primeira coluna, com a qual viajava o general Artur Oscar, contava com uma arma assombrosa: um canhão Withworth de 32 milímetros, que seria apelidado de "Matadeira" pelos sertanejos. Tratava-se de um trambolho de 1700 quilos, que precisava de vinte juntas de boi para ser arrastado. 

A Withworth entupia os caminhos e retardava a marcha, mas, como escreveu Euclides. "era preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço". Hoje. a "Matadeira" repousa pacificamente nos jardins da praça de Monte Santo. Ou melhor o que resta dela, pois o canhão espantoso terminaria por sofrer quase tantos estragos, pela imperícia com que era manejado, quantos causou, ao longo da campanha. 

No jardim de Monte Santo, tem como vizinhos uma escultura em madeira do Conselheiro e um busto em bronze do ministro da Guerra à época do conflito, marechal Carlos Machado Bittencourt. Sob o busto do marechal, uma inscrição datada de 22 de março de 1973 — época do regime militar — informa que Bittencourt "esteve neste local, berço da Intendência. prevendo e provendo".

Sim, foi necessária a presença do próprio ministro, para prever e prover. Pois a força avassaladora reunida para vencer os sertanejos, mais de 5.000 homens, duas colunas. Matadeira e tudo, acabou. uma vez em Canudos, atrapalhada e impotente como as expedições anteriores. A primeira coluna, apanhada numa armadilha no Morro da Favela, foi salva por pouco ao conseguir a junção com a segunda. Depois de um mês de combate a tropa parecia, segundo Euclides, "uma aglomeração de fugitivos". Dos 5.000 soldados, 900 estavam fora de combate — mortos ou feridos. A fome grassava. Por conta própria. e ao risco de cair nas numerosas armadilhas dos sertanejos — como de fato muitos caíram —, os soldados organizavam grupos para caçar bodes ou o que houvesse para comer. E, para culminar, do arraial lá embaixo produzia-se aquele sortilégio que dava mais medo ainda:

"Ao cair da noite de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados em ondulações sonoras, que vagarosamente se alargavam pela quietude dos ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas montanhas longínquas, o toque da Ave Maria..."

A situação crítica resultou em nova promoção à guerra do sertão. A primeira expedição havia sido comandada por um tenente, a segunda por um major, a terceira por um coronel e a quarta começara com um general. Agora era a vez de um marechal, e Bittencourt desembarcou em Monte Santo ao mesmo tempo que para lá afluíam reforços que montaram a 3.000 homens suplementares. Não era no aumento das tropas, porém, nem nos grandes movimentos estratégicos. que ele fixaria sua atenção. O ministro da Guerra decidiu Que sua funcão seria comprar burros mansos e organizar comboios, para levar comida aos combatentes. 

E foi então que se deu a virada. Regularizado o abastecimento da tropa, graças ao desvelo do marechal, que chegava a cuidar pessoalmente da partida dos burros com suas cargas. o relógio na mão, para apressá-los, o Exército começou a ganhar a guerra. "Mil burros mansos valiam na emergência por dez mil heróis", escreveu Euclides. 

Contra a pata infame do monstro descrito no artigo de O País, mobilizava-se a pata vulgar do muar de carga. E veio o cerco, o bombardeio impiedoso, o massacre, o incêndio do arraial. Tomaram-se célebres as degolas praticadas em Canudos — as "gravatas vermelhas" aplicadas no pescoço dos conselheiristas. Os soldados exigiam que os prisioneiros gritassem "Viva a República", mas muitos gritavam "Viva o Conselheiro". Sabiam que iam morrer, com um grito ou outro. "Aquilo não era uma campanha. era uma charqueada", escreveu Euclides.

Mesmo porque quem praticava as atrocidades tinha a certeza da impunidade — não havia a temer nem o castigo dos chefes nem o juízo do futuro. "A História não iria até ali", escreveu Euclides, num dos trechos mais inspirados de seu livro. "O sertão é o homizio." E ainda: "Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava".

Um estudante de medicina de Salvador que esteve na guerra com o corpo médico, Alvim Martins Horcades, descreveu num livro publicado antes de Os Sertões (Descrição de uma Viagem a Canudos), e com uma crueza a que Euclides não chegaria, a degola dos prisioneiros. "Belo exemplo de civismo e progredimento social!", escreveu Horcades com indignação. "Levar-se homens de braços atados para trás, como criminosos de lesa-majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora a de uma ave, e cortar-lhes com o assassino ferro o pescoço, deixando cair a cabeça sobre o solo — é o cúmulo do — é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio, como se fora uma ação nobilitante!" Escreveu ainda: Acontecia certas ocasiões estarem muitos daqueles miseráveis dormin
do e serem acordados para se lhes dar a morte. Depois de feita a chamada, organizava-se aquele batalhão de mártires, de braços atados, arrochados um ao outro, tendo cada qual dois guardas e seguiam... seguiam para ainda uma vez provar cabalmente a sua coragem intimorata.

Caminhavam um pequeno pedaço de terra e lá ia
sendo assassinado um após outro. Eram encarregados desse serviço, dois cabos e um soldado, a mando do sanguinário alferes Maranhão, os quais, peritos na arte, já traziam os seus sabres convenientemente amolados, de maneira que, ao tocarem a carótida, o sangue começava a extravasar-se, sendo então decepada toda aquela região de modo a produzir um jorro de sangue, tendo pouco mais ou menos 25 centímetros de espessura, em circunferencia".

Horcades conta que a princípio as execuções eram feitas à noite, mas depois se tomaram "cousa naturalíssima", e "eram eles supliciados mesmo ao clarão dourado dos raios solares, e as turmas duplicaram, triplicaram e quadruplicaram".

Em 6 de outubro de 1897, dia seguinte à tomada de Canudos, descobriu-se o local onde tinha sido enterrado Antônio Conselheiro. Foi desenterrado. Fotografaram o cadáver. Então. com uma faca afiada, mais uma vez praticaram aquele ato tão repetido — deceparam-no. A cabeça foi levada a Salvador. para ser examinada pelo professor Nina Rodrigues, que acreditava, com seu mestre Lombroso que os loucos, os criminosos e os perturbados de toda espécie apresentavam traços de seus desvios medonhos já a partir da conformação do crânio.

Sessenta anos depois, o sertão era visitado pelo cachorrinho Samba. O cachorrinho Samba é um personagem da escritora de livros infantis Maria José Dupré. Em O Cachorrinho Samba na Bahia, um dos volumes da série, publicado em 1957, o cachorrinho paulista visita Canudos. Ele aprende então que os sertanejos. "sendo pessoas atrasadas, mal sabendo ler ou sem instrução alguma, acreditavam em tudo que dizia o Conselheiro". 

Muitos dos habitantes de Canudos não trabalhavam — "viviam tocando viola de papo pro ar". Quando faltavam alimentos, "saíam aí pelo sertão, roubavam bois, mantimentos, tudo o que podiam". E depois chegavam a Canudos "com cara de inocentes e iam rezar na igreja". A visão da senhora Dupré, autora também do conhecido Éramos Seis, é da Guerra de Canudos como "um ato de delinquência", como nota Clímaco Dias, pesquisador da Universidade Estadual da Bahia que, num artigo, foi desencavar a
reveladora peça.

Por mais que se a queime ou afogue, Canudos sempre ressurge, porque há Canudos para todos os gostos. Para Maria José Dupré. "o Conselheiro era ignorante, não sabia nem interpretar a religião, fazia tudo à moda dele". Para os padres da Teologia da Libertação, um dos quais, o padre Enoque de Monte Santo — hoje ex-padre —, costumava agitar a região até há poucas anos, organizando os camponeses sob a égide de António Conselheiro, este saia um revolucionário, um Che Guevara do Morro da Favela assim como o outro era de Sierra Maestra. Ou então, saia um apóstolo dos sem-terra, e Canudos um antecessor do Pontal do Paranapanema. Para outros ainda, se trataria de um fenômeno puramente religioso — messianismo, milenarismo ou qualquer outro nome erudito que se lhe dê. 

A controvérsia se desdobra na maneira de encarar a comunidade do Conselheiro. Para alguns, seria uma sociedade erigida em bases comunistas e igualitárias. Outros notam a existência em Canudos, de comerciantes, como António Vilanova e
Joaquim Macambira. que não só detinham poder econômico, como status privilegiado junto ao Conselheiro. Canudos é um caso sério, porque mexe ao mesmo tempo com dois valores humanos
dos mais pertubadores, a fé e a utopia.

Canudos ressurge a todo momento também no sentido de que representa em sua versão mais sangrenta, o estranhamento dos brasileiros urbanos e privilegiados com relação aos compatriotas pobres.

Euclides, em seu livro tão belo quanto contraditório, em que tanto desqualifica, com invectivas racistas, as práticas dos brasileiros despossuídos, quanto lhes estende o socorro da denúncia e da compaixão, horroriza-se com a arquitetura e o urbanismo do arraial, que chama de "urbs monstruosa" e "civitas sinistra do erro". Ora nota o sociólogo Duglas Teixeira Monteiro, o padrão de construção das casas que tanto escandalizou Euclides é "nada mais, nada menos" que "a habitação comum do sertanejo pobre". 


Casa atual de sertanejo: Queimam, afogam e Canudos ressurge
A estranheza entre brasileiros, no extremo, conduz a massacres como o de Vigário Geral, do Carandiru ou da Candelária, assim como a batidas policiais como as de Diadema e Cidade de Deus. Vige ainda a suposição de que nesses lugares não se peca. Para usar a linda fórmula de Euclides, neles a História não chega. Canudos, nesse sentido, é aqui, agora.

Há uma passagem em Os Serões em que uma criança do arraial cai prisioneira dos soldados. O menino fumava, "com a bonomia satisfeita de velho viciado", enquanto discorria, com perfeito conhecimento de causa, sobre as armas que, guerreiro precoce, manejava. "Aquela criança era certo, um aleijão estupendo", escreveu Euclides. Um 'bandido feito" despontava "sobre os ombros pequeninos". E Euclides prossegue:
"Decididamente, era indispensável que a campanha dc Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro se não se aproveitassem os caminhos abertos pela artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários".

Hoje não se falaria em propaganda como remédio, e "a rudes compatriotas retardatários" seriam chamados de outra coisa — "excluídos", é a moda — mas a questão da existência de um mar de brasileiros deserdados da sorte persiste.

O professor Nina Rodrigues não encontrou no crânio do Conselheiro traço de insânia. Ou sua ciência o traía, ou aquele irredento Maciel, não contente, oferecia aos brasileiros cultos e racionais mais uma de suas tantas surpresas. O crânio ficou guardado na Faculdade de Medicina da Bahia até que em 1905, o prédio foi tomado por um incêndio. Perdeu-se então aquele pedaço do Conselheiro, junto com outras peças da coleção de Nina Rodrigues, como o crânio de um famoso bandido, o Lucas da Feira.

O caso do Conselheiro é apenas um entre muitos na História do Brasil em que se adota a prática de cortar cabeças. Zumbi dos Palmares teve a cabeça cortada, depois de morto. assim como Tiradentes e o líder da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, Gumercindo Saraiva. Idem o cangaceiro Lampião, idem os crentes da comunidade do Caldeirão, um fenômeno parecido com o de Canudos, ocorrido no Ceará nos anos 30 deste século. De certa forma. a galeria dos vencedores da História do Brasil confunde-se com uma galeria de astros da degola.











terça-feira, 26 de abril de 2016

CANUDOS: O Fim do Treme-Terra

Temos a continuação da reportagem O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado, e agora a terceira parte O FIM DO TREME-TERRA, de uma série de cinco episódios, feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja 3 de setembro de 1997. 


Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças. o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans: 

Moreira César foi ao céu 
Com Tamarindo ao seu lado 
Sdo Pedro falou assim: 
A que cara de malvado! 

Antônio Moreira César era o seu nome,  coronel a sua patente. O oficial talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano. 

Euclides da Cunha o descreve: 

"O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses —, era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo". E no entanto, quanto respeito — e quanto medo — impunha à sua volta. Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime florianista — a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. 

Em Santa Catarina para onde foi enviado com plenos poderes, para apagar os últimos fogos da Revolução Federalista distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão. 

"Na Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra." 

O elenco da epopeia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo de Moreira César, cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se tomar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o "comandante da rua", como era conhecido — "rua" no sentido de "arraial", de "cidade", de "área urbana" e comandante porque era o chefe militar supremo: Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e entrevado: "Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar". 

A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial. Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. 

A Guerra de Canudos é tão rica de personagens quanto a — releve-se a insistência na comparação — de Troia e de personagens que igualmente foram se credenciando à mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes atribuem. 

Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Hollywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general Custer e Touro Sentado. 

Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos — estamos em novembro de 1896 — uma expedição punitiva. 

Tinha 104 homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo — uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância — velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr.
Terminava aquela que passou para a História como a primeira expedição. 

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho — 550 homens — e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes.

Monte Santo, 100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Sena de Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de majestoso pano de fundo — um monte sulcado por um caminho que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". 

Lá no alto, no fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam as passos da Paixão. Foi construída no século XVIII. 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 km, é penosa. O caminho é não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e descortina-se um panorama deslumbrante da região.

O Monte Santo de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus — na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém —, é o mais eloquente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência de severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados.

Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo. Welcome. Bienvenido. Monte Santo. Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. 

O caminho de pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo evoca tanto a religião como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos. 

No tempo de suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial. Antônio Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou. com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da montanha. 

Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade antes de se pôr a caminho. E então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial insurreto.

A humilhação era demasiada. O irredentismo dos fanáticos" sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão frequentemente caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um "comunista" no outro como "neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação monarquista. 

Lembre-se de que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que sem dúvida se ramificava pais afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe tinha até apoio do exterior. 

Para debelá-la. só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1.300 homens que formariam na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe. apontarão ao visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos — um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. 

Em Queimadas, Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do mesmo nome há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo: "Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março de 1897, o cadáver do coronel Moreira César..."

O marco, mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último, centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-las. 

À medida que se aproximava, o otimismo aumentara: "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César rinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro — ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques durante a campanha de Canudos. Além disso. apresentava um temperamento instável e impulsivo. 
Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. 

Conselheirista preso entre seus captores
Em Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa. sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas — o que, além de facilitar a movimentação do adversá-rio familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia que não podia disparar sob pena de atingir os próprias companheiros. 

A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta. mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.

Atingido no ventre por uma bala, vergou-se. largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões". 

Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si". 

Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho. para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. 

No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem. 

Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquia o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia. 

Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre as últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte: 

Coronel Moreira César 
Olho de cana caiana. 
Tomou chumbo em Canudos 
Foi morrer nas Umburanas. 













segunda-feira, 25 de abril de 2016

CANUDOS: Duas vezes morto, duas ressuscitado

A obra de Travessa no Alto Alegre: conjuntos de igreja, museu, salão, cruz e estátua do Conselheiro
Cigarro não ofende? Não, não ofende, e então Manuel Alves. mais conhecido por "Manuel Travessa". de 57 anos mas aparentando mais, pele morena e estorricada de sertanejo, chapéu de couro, dentes ruins, acende o cigarrinho que é seu companheiro inseparável. Estamos no carro que conduz o autor desta reportagem e o fotógrafo de VEJA do lugar chamado Bendegó, dentro do município de Canudos, à beira da estrada, antes de chegar à cidade propriamente dita, ao lugar chamado Alto Alegre, uma elevação à margem do lago no fundo do qual se encontram as ruínas da antiga Canudos. 

Quem foi Antônio Conselheiro para Manuel Travessa? — No meu pensamento, ele era igualmente que um crente, hoje. Há 100 anos, não existia crente. Eu sempre penso que pode ter existido um ciúme da Igreja Católica pelo Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha escreveu em Os Sertões que a cidade de Queimadas, para onde as tropas iam de trem, desde Salvador, antes de enfrentar os caminhos poeirentos do sertão, assinalava uma fronteira: "Salta-se do trem: transpõem-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas: e topa-se para logo, à fímbria da praça — o sertão" Está-se no ponto de encontro de duas sociedades alheias uma à outra segundo Euclides, "O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam vertiginosamente os patrícios do litoral, que o não conhecem." Entre um e outro há uma "discordância absoluta", segundo o autor, o que acaba por desequilibrar "o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo" e "perturba deploravelmente a unidade nacional". Os soldados vindos de outras partes do país, chega a escrever Euclides, tinham a sensação de seguir para uma guerra externa. "Sentiam-se fora do Brasil." Há exagero nisso, certamente. Já havia exagero há 100  anos,  e haverá ainda mais hoje, em considerar o sertão um mundo à parte do resto do Brasil. Mas, por mais que hoje em dia se esteja familiarizado com a região, por mais romance regionalista que se tenha lido, filme do cinema novo que se tenha visto, por mais música e novela de TV que se tenha digerido, o forasteiro será tomado pela sensação de um mundo meio encantado, a começar pela língua que ali se pratica. Dá vontade de reproduzir, tal e qual, a fala de Manuel Travessa. — Ele não foi um destruidor (o Conselheiro). Não foi que nem Lampião. Ninguém diz que ele matou alguém. 
Vista do arraial primitivo
Era igual que Assembléia de Deus, Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa... essa como se diz... essa religião. Manuel Travessa não é um qualquer. Pode ser qualificado como um empresário do sertão. Um empresário quase miserável, que vive numa casa que Antonio Ermírio de Moraes não imagina possa preencher as necessidades de um ser humano. come um tipo de comida que Abílio Diniz não comeu nem quando foi sequestrado e veste uma roupa que Moreira Ferreira estranharia muito num companheiro da Fiesp, mas um empresário — um farejador de oportunidades, campeão da iniciativa. Ele já tinha um bar naquele lugar chamado Bendegó e agora que o asfalto está chegando à região, antevendo uma ampliação do mercado, abriu outro. 

Mais significativas são suas realizações no Alto Alegre. um lugar batizado por ele próprio ao chegar à região. cm 1971 depois das muitas perambulações pelo sertão, a partir de sua Monte Santo natal. Só havia três casas no local, e a elas ele acrescentou a sua. Começou a notar então que frequentemente aparecia gente interessada em Canudos, querendo informações e em busca de vestígios da guerra. Para tentar satisfazer essa demanda, Manuel Travessa iniciou, em 1975. uma coleção de relíquias — espingardas, balas, capacetes de soldado. Objetos que achava pelas redondezas ou comprava dos vizinhos. Hoje essa coleção está reunida numa casinha que construiu para abrigá-la, composta de um só cômodo, de não mais que 2 por 2 metros, a que, de maneira sem dúvida pretensiosa, chama de "museu". Ao lado de uma tralha que realmente tem a ver com a guerra. o museu de Travessa exibe máquinas de costura velhas e até um buda de porcelana.

Ao lado do museu, Manuel Travessa levantou uma capela e ao lado da capela, um salão de dança. Assim, pode-se rezar pelo Conselheiro no local ou alternativamente, convocar um forró. O conjunto de museu-igreja-salão completa-se com uma escultura do Conselheiro em madeira e um canhão também em madeira, além de duas cruzes, para compor o que poderia ser chamado de praça monumental do Alto Alegre, se monumental fosse, ou mesmo se praça fosse — na verdade é um conjunto de toscas construções erigidas na terra dura de um descampado. De qualquer forma é o que se tem. Quem vai ao povoado que hoje ostenta o nome de Canudos não encontrará recordação do Conselheiro. O Alto Alegre, a 10 quilômetros de distância, por iniciativa do empresário sertanejo Manuel Travessa, preenche essa lacuna. 


Contam-se três Canudos, ao longo da História. A primeira, do Conselheiro, depois de arrasada, ficou no seguinte estado de acordo com o depoimento de um ex-conselheirista, Manuel Ciríaco, ao jornalista Odorico Tavares, em 1947, quando a guerra completava cinqüenta anos: "Era de fazer medo. A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a gente via correndo pelos cadáveres e urubu fazia nu-vem. Tudo abandonado, ninguém ficou enterrado. Foi quando Ângelo dos Reis, por sua própria caridade, trouxe uns homens e enterrou ali mesmo a jagunçada morta Todas essas colinas que o senhor vê estão cheias de ossos de jagunços. Acabou-se Canudos, e durante uns dez anos, só se vinha aqui de passagem". O Ângelo dos Reis citado era um fazendeiro da região. Dez anos decorridos, durante os quais o simples nome de Canudos fazia medo na região — era sinônimo de atrocidade, perseguição, constrangimento —. o local começou a se repovoar. 

Alguns eram antigos habitantes que voltavam. Nascia uma segunda Canudos, sobre os escombros da primeira. Na década de 50 foi projetado um açude que represando as águas do Rio Vaza-Barris, acabaria por inundar o povoado. Será que a represa precisaria ser justamente ali, fazendo submergir um lugar histórico como aquele? A pergunta foi feita pelo escritor Paulo Dantas, em 1958, ao engenheiro que chefiava as obras. José Femandes Peixoto. "Isso é conversa de poetas" respondeu o engenheiro. "O que esta região precisa é de água. A tradição é muito bonita, mas não mata a sede nem a fome de ninguém".

Em 1969, depois de sucessivos atrasos, a represa finalmente inundou Canudos. A população a essa altura já tinha sido transferida para o povoado chamado Cocorobó — mesmo nome do açude —, mais tarde rebatizado de Canudos. Esta é a Canudos atual, a terceira. Em junho último, foi inaugurado o Parque Estadual de Canudos. Estendendo-se ao sul do açude, compreende uma área de 18 km quadrados, em que se encontram sítios familiares a quem conhece a história da guerra: o Alto do Mário, o ponto mais elevado, de onde hoje se descortinam o açude e as montanhas ao redor, a Fazenda Velha — ruínas de uma antiga sede de fazenda na qual os Conselheristas fixaram um posto avançado que resistiu até os dias finais; o Morro da Favela. Próximo ao Alto do Mário, situa-se uma grande vala comum, possivelmente vizinha do hospital de campanha dos militares, onde eram enterrados os soldados. É o chamado "Vale da Morte". 

O Parque foi uma ideia do professor Renato Ferraz um dos mais ativos lutadores pela memória de Canudos — pesquisador, organizador de seminários e eventos sobre o assunto. Ferraz sabe tudo o que é possível saber de Canudos. Só falta escrever um livro a respeito, algo que promete vagamente para o futuro. 

A parte visível do Parque Estadual de Canudos. que é administrado pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da Bahia, consiste, por enquanto, num portal de entrada e em placas de localização dos sítios históricos. No decreto de sua criação. pelo governo do Estado, estatue-se que deverão funcionar no local "museu, laboratório de arqueologia, estação experimental de meteorologia, escolas experimentais e outras instituições". 

Um trabalho de exploração arqueológica está em curso, a cargo do arqueólogo paulista Paulo Zanatini. Trata-se de uma arqueologia histórica. basicamente — procuram-se trincheiras, barricadas, armas ou restos  de armas, balas, objetos de uso cotidiano dos soldados ou sertanejos, ossadas, sepulcros. Uma das últimas descobertas de Zanatini foi que as ruínas até agora consideradas da Fazenda Velha são de uma casa mais recente, do início do século. A Fazenda Velha verdadeira, da época da guerra está soterrada embaixo dessas ruínas. 

No Alto Alegre uma trinca de garotos de 11 ou 12 anos cerca-nos e se dispõe a levar-nos a um passeio de bote pelo lago. Um dos meninos, Gilmar, conta que o "painho" uma vez achou uma canela no chão. Ou seja, um osso da perna, ou o que ele supôs fosse um osso da perna. Não se pode ficar com esses achados, explica Gilmar. O pai então deu para um alemão. Um alemão? Não, ele não sabe direito se era alemão. Mas sabe que era uma pessoa que "não fala igual que a gente. não". 

No bote, passeando pelo lago. percebem-se. quase à superfície, encobertos somente por um palmo de água, as guarnições laterais de uma antiga ponte. Essa ponte fazia parte da estrada que cortava a segunda Canudos. Há também uma ruína que aponta para fora do lago. Trata-se da parte superior do portal de um cemitério, também da segunda Canudos. Da Canudos do Conselheiro, a única construção que sobrou de pé, ao fim da guara, foi um cruzeiro que se erguia à frente da igreja velha. Às vésperas da inundação da área, o cruzeiro, de madeira, foi transportado para o povoado de Cocorobó, para onde estava sendo transferida a população. Ficou o pedestal de cimento em que ele se incrustava. No ano passado. o nível do açude baixou sensivelmente, e o pedestal, ou o que resta dele. emergiu das águas. Um pouco do Conselheiro voltava à tona. Ferraz, aquele que sabe tudo de Canudos e teve a ideia de instituir o parque, serviu de guia ao peruano Mario Vargas Llosa em 1979, quando este realizava as pesquisas para seu romance sobre a Guerra de Canudos, A Guerra do Fim do Mundo

Um dia, Vargas Llosa e Renato Ferraz fizeram uma escala na cidade sergipana de Simão Dias. No hotel onde se hospedaram, rústico como todos na região, foram recebidos por um funcionário homossexual — sim, há disso também no sertão. Logo depois, invade o quarto uma senhora que sem dúvida guiada pelas informações do funcionário, queria conhecer o atraente estrangeiro. Ela se ouriça: "Argentino!, argentino!", exclamava, como uma fã de galã de televisão. Era a dona do hotel, dona Raimunda. Quando se preparavam para partir da cidade. dona Raimunda pediu uma carona até Lagarto. Atenderam-lhe ao pedido. e ela viajou no banco de trás. Quando chegaram a Lagarto. dona Raimunda foi saindo devagar do carro, esgueirando-se, no difícil movimento de deixar o banco de trás de um Fusca... e então deu o bote. Numa manobra fulminante, prendeu-se ao pescoço de Vargas Llosa e pespegou-lhe um beijo na boca. 
Manuel Travessa entre as peças de seu museu; um homem de iniciativa
Manuel Travessa diz que ouviu uma vez do avó que Canudos seria destruída três vezes. — A primeira vez pelo fogo, a segunda pela água e a terceira pelo pó. Pelo fogo foi a guerra. Pela água. a represa. Só falta pelo pó. Esse avô de Travessa era o materno, de nome Mundu, um criador de cabras. Ele explica que a mãe teve treze filhos antes dele. Depois, "me conseguiu". E o pai? Do pai, Manuel Travessa não sabe: "Sou filho de mulher particular". Manuel Travessa subiu na vida e hoje, além de empresário, é político — elegeu-se vereador, em Canudos. 

Como seria essa terceira destruição da cidade de que falava seu avó? 

— O que espero é que a barragem estoure e essa lama se torre no pó. Aí ninguém vai escapar desse pó. Isso é o que eu penso.  

Fonte: Revista Veja de 3 de setembro de 1997
Reportagem Roberto Pompeu de Toledo