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sexta-feira, 29 de abril de 2016

CANUDOS: De boca em boca

Temos a continuação da reportagem da revista Veja 3 de setembro de 1997 onde o primeiro episódio está nesse artigo  O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado.  Temos também aqui o episódio e terceira parte O Fim do Treme-Terra, e agora passamos aos amigos o quarto episódio da série de cinco reportagens feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo, onde nos mostra que a história de Canudos corre de boca em boca. 

.Igreja Velha - pouco antes de ser destruída e o cruzeiro,ocupados pelos  vencedores 

João de Regis em sua casa
Numa casinha solitária nas Umburanas, a poucos metros do local onde foi abandonado o corpo do coronel Moreira César, vive "seu" João de Régis, 90 anos completados no dia 12 de junho. João de Régis é um sertanejo magrinho e miúdo, meigo e humilde. É filho de conselheiristas. O pai, Reginaldo José de Matos, e a mãe, Joana Batista de Jesus, viveram no arraial do Conselheiro. Foi lá que eles se casaram, sendo celebrante das núpcias o padre Sabino, famoso vigário do Cumbe que, amigo de Antônio Conselheiro costumava visitar Canudos, ali rezar missas e ministrar os sacramentos. E seus pais gostavam do Conselheiro, "seu" João de Régis? "Ave Maria, gostavam demais", ele responde. João de Régis recupera-se de uma pneumonia. Ainda tosse, mas se diz melhor. A cabeça continua boa, a memória, precisa. 

João de Régis mostra um documento. É um salvo-conduto emitido pelo Comitê Patriótico da Bahia, datado de 12 de janeiro de 1898 e assinado por Lélis Piedade, em favor da avó de João de Régis. Josepha Maria de Jesus, e suas filhas Joana (que viria a ser a mãe dele), Maria e Antônia. Pede-se ali às "autoridades do Centro do Estado" fazerem o obséquio de "protegerem-nas. em qualquer emergência". O documento, atente-se, data de três meses depois do fim da guerra. A avó, a mãe e as tias de João de Régis encontravam-se em Salvador. Para lá tinham sido enviadas muitas mulheres de maridos que foram mortos em combate ou executados, bem como suas crianças. Elas se tornariam empregadas domésticas ou prostitutas, em Salvador e em outros lugares. 


No caso, a avó e a mãe de João de Régis queriam voltar porque sabiam que os homens da família estavam vivos. Daí terem pedido ajuda ao Comitê Patriótico, uma entidade beneficente criada para prestar assistência aos sobreviventes da guerra, dirigida pelo jornalista Lélis Piedade. O documento que João de Régis tem em casa é um salvo-conduto para a volta a Canudos. E como elas sabiam que os homens da família — o avó materno e o pai de João de Régis — estavam vivos? Porque eles se encontravam fora do arraial, quando do assalto final, explica João de Régis. Um dia, eles saíram pela Estrada de Uauá, para apanhar farinha Quando estavam fora, a estrada foi fechada pelo Exército. Não puderam voltar. 

Por essa Estrada de Uauá, acrescente-se, fugiram muitos conselheiristas. nos últimos dias. Sobreviventes contaram que. das trincheiras, os soldados gritavam avisando que a estrada estava aberta e que quem quisesse fugir ainda era tempo. O pai de João de Régis era de Pombal, ao sul de Canudos, e tinha vinte e poucos anos quando o Conselheiro passou por lá. "Ele achou bonito aquele jeito do Conselheiro, aquela amizade, aquela vivência", conta João de Régis. Então resolveu acompanhá-lo. 

A mãe era da região de Canudos e aderiu ao Conselheiro junto com os pais e as irmãs. E como viviam seus pais, em Canudos? O pai trabalhava de carapina diz seu João de Régis — isto é, de carpinteiro. fazendo as casinhas do arraial. A mãe fiava algodão e fazia rede. João de Régis explica que quando alguém queria casar, a primeira coisa a fazer em comprar uma rede. 

"O Conselheiro vivia em comunidade, rezando, dando conselho", conta João de Régis. Quando a família se reencontrou, depois da volta das mulheres de Salvador, veio viver aqui. nesta mesma terra onde nos encontramos, nas Umburanas. Viviam "de roça-. de "tropinha de animais", e assim a vida continuou — e continua até hoje. e continuará sempre. O episódio de Canudos foi um espasmo sangrento e tumultuado. e depois o sertão voltou ao sossego de sua eternidade. Aqui, o tempo não se mexe. 

João de Régis nasceu neste recanto do fim do mundo e neste recanto do fim do mundo morrerá. Quem vaga pelo sertão terá sempre a persegui-lo um duplo acompanhamento sonoro: o chocalho das cabras e a Rede Globo de Televisão. O chocalho das cabras está lá desde sempre. A Rede Globo, que se ouve nos restaurantes, nos bares abertos para a rua, nas pousadas e nas casas, deu o ar de sua graça mais recentemente. Quem diz que o tempo não se mexe aqui? Na cidade de Euclides da Cunha a antiga Cumbe, 80 quilômetros ao sul de Canudos, tem seu Ioiô da Professora. 

Seu loiô, se fosse um espetáculo, não um ser humano, seria do tipo que os críticos classificam de "imperdível". Ele conta a história de Canudos tal qual a ouviu do pai, ou do sogro. ou de outras pessoas, quando jovem. Conta o que se dizia na região quando se soube que Moreira César estava chegando: — Vamos arretirar!!! Vem aí um Treme-Terra que não arrespeita sertanejo!!! 

loiô da Professora, ou José Siqueira Santos, seu nome de registro. "da Professora" porque é filho de uma professora primária, tem 89 anos, pele branca, farta cabeleira branca, é magrinho e usa óculos de grossas lentes. Seu sogro era o maior fazendeiro do Cumbe, o "coronel" José Américo Camelo de Souza Velho, inimigo figadal do Conselheiro, mas nada da antiga fortuna, ou prestígio, sobrou para os descendentes. loiô vive de um botequim que ocupa a parte da frente de sua modesta casa, onde basicamente vende cachaça para os bêbados do lugar. 

São muitas, compridas, cheias de detalhes e vivas descrições, as histórias de seu loiô. Ele conta que Pajeú, o guerrilheiro tão temido do Conselheiro, incendiou duas fazendas do coronel Zé Américo. Numa delas, só ficou um quarto onde havia imagens de santos, acomodadas em nichos. "Não sou inimigo de santo", disse Neli, segundo loiô. "Aqui tem santo. Não pode destruir." E loiô acrescenta: "Esse povo do Conselheiro respeitava muito esse movimento de igreja, de santo".

Os bispos estavam contra o Conselheiro, explica Ioiô. Por que motivo? — As rezas dele atrapalhavam a religião. Mas havia outros também insatisfeitos: — O povo não queria mais obedecer os coronéis. Até para emprego era com o Conselheiro. Ioiô explica de diferentes maneiras, a crueldade e os maus bofes de Moreira César: — Era um terrível!!! Pior que Lampião!!! — Não matava mulher, mas homem era uma desgraça. — Era um ateu terrível!!! Dizia: "Não quero saber de santo". loiô senta, levanta, gesticula. Interpreta, exclama dá um acento de voz a cada situação. Preenche os claros das histórias com contribuições próprias. do tipo: "Então ele se sentou": "Tirou o chapéu"; "A ordem de Moreira César foi seca". 

Ioiô conta que Moreira César foi vitima de uma maldição. Uma vez ele mandou fuzilar um médico. A viúva. de nome Olímpia, estava entre as pessoas que assistiram ao embarque de Moreira César, em Salvador, em direção a Canudos. Ela disse. naquele momento: — Vai, bandido sanguinário... Vais a Canudos, mas não voltas.

Não, não cabe dizer "se fosse um espetáculo"... Seu loiô da Professora é um espetáculo. 

A via-sacra de Monte Santo é tão sacra quanto descuidada e suja. As capelinhas pelo caminho encontram-se em estado lamentável. Mas a maior decepção está lá em cima, na Igreja de Santa Cruz, ponto final da escalada. A direita do altar, entre uma coleção de muletas e cruzes que os devotos trazem na subida e ali abandonam, em sinal de reconhecimento por graças recebidas, encontram-se, além de muita poeira. garrafas plásticas de refrigerante vazias. Do outro lado, à esquerda do altar, os ex-votos deixados pelos fiéis, na forma de braços, pernas e cabeças de madeira, empilham-se sem nenhuma ordem. 

Do lado de fora, nos fundos da igreja, outra cena deprimente: mais ex-votos, muito mais cabeças, braços e pernas de madeira, lembram a vala comum onde foram depositados os restos dos combatentes de alguma guerra no fim do mundo. Ou isso, ou o lixão de uma favela. Na casa paroquial, o jovem Expedito, única pessoa presente, informa que havia três padres em Monte Santo, mas hoje não há nenhum. Um foi embora da cidade. Dos outros dois, um foi para Salvador e outro para São Paulo, e talvez não voltem. É sexta-feira, dia de maior afluência de fiéis, mas não há padres para recebe-los. Se o sertanejo continua presente. em sua fé. o mesmo não se pode dizer dos agentes da igreja. Em Euclides da Cunha o padre, procurado reiteradas vezes pelo autor desta reportagem, nunca estava, e a igreja permanecia sempre fechada. 

Em contrapartida, o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua Major Antonino, estava sempre aberto. Esse singelo pormenor pode ser um bom começo para quem quer entender o avanço evangélico sobre as hostes católicas. 

A história da maldição da viúva contada por Ioiô da Professora corrobora a antiga tese de que Moreira César não foi morto pelos sertanejos, mas por um de seus próprios soldados. Segundo uma versão, o soldado que atirou, ao ver o coronel avançar em seu cavalo em direção ao arraial, fez isso porque estava cansado dos maus-tratos a que o coronel submetia a tropa. Segundo outra, a vingança teria sido por conta de ações praticadas por Moreira César na campanha de Santa Catarina. A família de dois irmãos mortos pelo coronel nessa ocasião teria contratado um soldado para vingá-la. Esses irmãos — acrescenta-se, para fechar a história — seriam ninguém menos que o pai e o tio do poeta modernista Ronald de Carvalho.


loiô da Professora, João de Régis, quer dizer: João, filho de Régis, assim como loiô da Professora quer dizer foi filho da professora. Entre o povo do sertão. em vez de sobrenome, usa-se a forma ancestral de identificar as pessoas pelo pai ou pela mãe. Outros exemplos: Joana de Manuel Eliseu. Maria de Sidrônio. Há casos em que um "de" não basta e então usam-se dois: Maria de Totonho de Silvano. Qual seja: Maria, filha de Totonho, filho de Silvano.

O município de Canudos tem 15.000 habitantes, cerca de 60% dos quais na zona rural. O progresso que o engenheiro Peixoto previa para a cidade, na década de 50, com a construção do açude que, em vez de poesia, ofereceria água e alimento à população, ainda não chegou. Luiz Paulo Neiva, que. como coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Uni-versidade Estadual da Bahia, dirige um trabalho de levantamento da situação no município, com vista a um plano de desenvolvimento, desfia alguns dados: 65.4% dos chefes de família recebem menos de um salário mínimo por mês; 25.6% recebem de um a três salários mínimos; 52% da população acima dos 15 anos são analfabetos; 22% das crianças até 6 meses sofrem de desnutrição. 

Canudos, onde se cria bode, pesca-se no lago e poucas coisas mais, é um dos municípios mais pobres da Bahia. Quer dizer, do Brasil. 


O Cruzeiro que se ver na foto acima, na sala que fica guardado

Não é bem que a atual Canudos não tenha nada que lembre o Conselheiro, como se afirmou páginas atrás. Tem. Mas é preciso procurar bem, porque está escondido. Vai-se à casa onde fica um "centro de convivência" da Igreja Católica, um local para reuniões e festinhas. Procura-se pela irmã Cirila, que veio do Rio Grande do Sul. Pede-se para abrir a sala na qual ela guarda os livros sobre a guerra, alguns objetos do período e pronto, lá está: a cruz de Antônio Conselheiro. Sim, aquele cruzeiro que se encontrava em frente da igreja velha e que foi transportado para esta nova Canudos quando a velha foi afogada. A cruz está deitada no chão. A madeira, escura e cheia de fendas, necessita cuidados, para não apodrecer. É a mais importante relíquia que se tem do arraial. Ao lado da cruz repousa uma lápide, onde se lê: "Edificado em 1893 por A.M.M.C.". 
As iniciais referem-se a Antônio Mendes Maciel Conselheiro e a lápide costumava ficar ao pé do cruzeiro. Irmã Cirila guardará a preciosa relíquia em sua sala quase secreta enquanto não se construir um local adequado para exibi-la. 

Fonte: Revista Veja 3 de setembro de 1997






sexta-feira, 22 de abril de 2016

CANUDOS: Sobrevivência na tela

Sobrevivência na tela

Ficção e documentário, dois filmes são exemplos de como o cinema impediu que a destruição de Canudos significasse esquecimento

  • Quando as tropas militares dispararam os últimos tiros contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, Canudos estava arrasado. Mas simbolicamente tudo continuou bem vivo: décadas depois daquele sangrento episódio, o beato e seu povo permaneceram ressoando na memória e nos estudos de muita gente. São incontáveis as obras que surgiram sobre o tema. Entre elas estão dois filmes que merecem ser vistos e discutidos por conterem elementos fundamentais para um melhor entendimento daquele universo de confronto: Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, e Paixão e Guerra no Sertão de Canudos, de Antônio Olavo. 
    Ambas as produções nasceram quase um século após a queda do vilarejo baiano. E trazem, cada uma, suas próprias técnicas narrativas, suas visões de mundo, seus objetivos, interesses e compromissos. Enquanto o filme de Resende, lançado em 1997, é um longa de ficção, Olavo reconstrói a história por meio de um documentário que veio a público em 1993. 
    Em Guerra de Canudos, o diretor aproveita a vida de seus personagens para contar o drama que também ficou imortalizado em Os Sertões (1902), clássico da literatura nacional produzido por Euclides da Cunha. Ao longo do filme, trechos bastante conhecidos do livro são citados, além de outros documentos do escritor, como a famosa “Caderneta de Campo” – com breves observações e ricas reproduções de fragmentos – e até um “ABC”, integralmente copiado.
    Levar para os cinemas a história de Canudos não saiu barato. Para que a produção milionária pudesse se tornar realidade, Sérgio Resende contou com fortes apoios financeiros, que vieram de patrocínios dos órgãos públicos e de empresas privadas. O resultado foi uma belíssima reconstrução daquela guerra, que contou com a contratação de renomados técnicos – havia, inclusive, um profissional de Hollywood – e artistas famosos do cinema, do teatro e da televisão nacional. 
    Uma cidade cenográfica foi erguida na região, conferindo ao longa um elevado nível de fidedignidade técnica e profissional. Assim como na vida real, terminou absolutamente destruída após a Guerra. Além dos atores famosos, como José Wilker, Marieta Severo e Cláudia Abreu, centenas de artistas locais foram escalados para interpretar os habitantes da cidade. Do início ao fim, reviveram a violenta intervenção do Exército nacional, apoiado por inúmeros batalhões de polícias militares de vários estados brasileiros. Quase cem anos depois da guerra, as câmeras lideradas por Sérgio Resende filmavam a reconstituição de uma vila que foi bombardeada, queimada, conquistada palmo a palmo e por fim devastada, para que sua imagem fosse definitivamente apagada de nossa história.
    Isso, porém, não aconteceu, como pode ser visto em Paixão e Guerra nos Sertões de Canudos. No documentário, Antônio Olavo se baseia em depoimentos de vários estudiosos, além de conhecedores da vida e da obra de Antônio Conselheiro. Ele também entrevista populares, descendentes e familiares do beato, confrontando opiniões e aproveitando as posições contrárias para discutir os vários temas que escolheu, em rigorosa cronologia.
    Para reconstruir a vida e os caminhos do líder religioso, Olavo mergulhou fundo: refez o percurso do Peregrino, viajando e filmando com sua equipe por mais de 2.400 quilômetros. Cruzou o interior dos sertões do Nordeste, foi até Salvador e Rio de Janeiro, recolhendo palavras, memórias e imagens de pesquisadores, acadêmicos, intelectuais, além de palácios e museus, todos rigorosamente autênticos para compor o seu roteiro.
    Sem os recursos dos grandes patrocinadores, muito menos a garantia de exibição em uma extensa cadeia nacional de telecomunicações – o que lhe garantiria público e recursos – o diretor teve de contar com o voluntariado de amigos e apaixonados por aquela história. A equipe não só deixou de receber, como financiou suas próprias despesas, e alguns chegaram a dar contribuições para que o trabalho se realizasse, de maneira quase inteiramente artesanal. Prova de que, mesmo arrasado, o arraial de Canudos continua de pé na memória de muita gente. 
    Sérgio Armando Diniz Guerra 1/12/2014 - Sérgio Armando Diniz Guerra é professor aposentado de história da Rede Estadual de Educação da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia. 
    Saiba Mais:
    CALASANS, José.  Quase biografias de Jagunços: o séquito de Antonio Conselheiro. Salvador-BA: EDUFBa, 2013.
    CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. Obra disponível em domínio público através do link: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000153.pdf 
    MONIZ. Edmundo. A guerra social de Canudos. 2. ed. São Paulo: Ed. Civilização Brasileira, 1987. 
    VILLA, Marco A. Canudos: O povo da terra. São Paulo: Ática, 1995. 


CANUDOS: Notícias do fim do mundo

Notícias do fim do mundo

Canudos foi um evento de mídia global, com ampla cobertura em jornais europeus. Leitores ingleses souberam do fim do conflito antes dos brasileiros

  • Se a Guerra de Canudos teve, como todas as guerras, traços arcaicos e bárbaros, ela também foi extremamente moderna. Não apenas pelo emprego de avançada tecnologia militar, mas enquanto guerra psicológica, orquestrada por ferrenha produção propagandística na imprensa brasileira. E também na internacional.O telégrafo instalado pelo exército entre as vilas de Queimadas, estação ferroviária mais próxima do teatro de guerra, e Monte Santo, base de operação das forças legais, a 70 km de Canudos, permitia a transmissão rápida de notícias para o país e para o mundo, mas também a censura e as restrições ao trabalho dos correspondentes de guerra: só os bem-comportados podiam se servir desse moderno e rápido meio de comunicação.
    Tudo isso é conhecido. Surpreendente é saber que aquela guerra no distante sertão brasileiro, quase fora da civilização, teve cobertura mundial. Durante meses as vicissitudes da quarta expedição estiveram presentes na grande imprensa das Américas e da Europa, com mil detalhes, fatos, mentiras e boatos, que as representações diplomáticas do Brasil tentavam manipular. As notícias saíam do sertão para as redações de Salvador, São Paulo e principalmente Rio de Janeiro, eram transmitidas para as agências noticiosas de Londres e só então seguiam para as redações de Berlim ou Paris, passando às vezes por Nova York, Lisboa e Buenos Aires.  
    O interesse da Europa por Canudos torna-se constante a partir da derrota da terceira expedição, comandada pelo coronel Moreira César, em 3 de março de 1897, e vai até a vitória final do exército, em 5 de outubro. Durante esses sete meses, o Vossische Zeitung, grande diário liberal berlinense, publica 16 artigos ou notas dedicados à guerra brasileira, e sete ganham a primeira página. No mesmo período, The Times, de Londres, produz 15 artigos direta ou indiretamente relacionados a Canudos. Enquanto isso, em Paris, o Le Temps traz 22 matérias sobre o tema.
    No Brasil, alguns poucos letrados indignaram-se diante do modo pouco civilizado com que a civilização era imposta aos sertanejos, crítica que ganharia expressão de acusação e protesto com Euclides da Cunha no livro Os Sertões (1902), mas que não teve repercussão na imprensa europeia da época. Esta refletia a visão das elites do Brasil, embora deixasse transparecer também algum respeito pela combatividade dos sertanejos. Em princípio, os três jornais europeus não contestam as afirmações e as metas do governo, torcendo claramente pela vitória das armas legais. As únicas críticas referem-se aos comunicados precipitados de vitória, aos erros de estratégia militar e às suspeitas de corrupção contra o alto comando da quarta expedição. A principal fonte dessas objeções era o carioca Jornal do Commercio, conhecido por seu ceticismo para com os republicanos extremistas e no qual escreveu, por curto período, um dos poucos correspondentes críticos em relação ao exército, Manuel Benício, obrigado pelo alto comando a abandonar o teatro de guerra em julho de 1897.
    Tratar Canudos como uma insurreição era facilitado pelo fato de as palavras messias, fanático, insurgente e rebelde serem facilmente traduzíveis. Mais complicado era explicar outro conceito-chave da imprensa brasileira, o calunioso jagunço, descartado pelos europeus. Ainda assim os conselheiristas eram desqualificados com expressões incriminadoras, como “salteadores” e “ladrões de gado”. Porém, na escrita relativamente sóbria desses jornais, não  havia espaço para cobrir o exército com um manto de heroísmo.
    Se fossem deixados em paz, talvez os conselheiristas não se tornassem tão perigosos. Esta inteligente observação sobre o caráter defensivo do movimento aparece no jornal alemão e no londrino, que retoma a mesma ideia várias vezes depois. O Times mantém-se em descrença em relação à suposta conspiração monarquista, posição nem sempre partilhada pelos outros jornais, que parecem mais próximos do governo brasileiro. Em março, o Vossische Zeitung traduziu um artigo quase inteiro do Times mas omitiu dois importantes elementos: o empastelamento de jornais monarquistas no Rio e a avaliação do correspondente de que o apoio dos monarquistas ao Conselheiro carecia de evidências. 
    Em abril, o jornal berlinense tenta explicar a espantosa derrota da expedição Moreira César sem criticar demais o seu comandante, reduzindo seus erros à subestimação do número de inimigos. O artigo exagera a quantidade de combatentes canudenses e de soldados mortos, tendência geral dos jornais brasileiros e europeus. Enquanto no primeiro artigo os inimigos figuravam apenas como fanáticos, no seguinte eles são chamados de rebeldes e insurgentes. A legitimidade de uma guerra contra meros desgarrados mentais e ideológicos pode ser posta em dúvida, mas contra insurgentes não há como hesitar, pois subvertem a ordem estabelecida, ameaçam a vida e as propriedades. O artigo evoca o perigo, na realidade nunca existente, das capitais do litoral serem invadidas pelos seguidores do Conselheiro, preocupação espalhada por alguns jornais brasileiros. 
    O maior artigo publicado sobre Canudos fora do Brasil naquela época foi provavelmente o do Times de 12 de junho de 1897. Em carta, seu correspondente no Rio recorre a uma sintaxe elaborada e a um raciocínio ora descritivo, ora analítico, para situar a guerra no contexto político e econômico nacional. Atenua as alegadas superstições dos sertanejos e refuta a tese de Canudos ser uma revolução dirigida contra o governo. Se ele é perigoso, isso se deve à repressão – mas agora que esta começou, tem que ser levada até o fim. O correspondente mostra-se preocupado com o endividamento do Brasil, agravado pelas altíssimas despesas com a guerra, o que prejudica, portanto, o crédito internacional do país.
    O grande assalto fracassado do exército, em 18 de julho, passa quase despercebido pela imprensa estrangeira, pois, devido à censura, nem os jornais brasileiros souberam explicar o que ocorreu naquele dia. Artigo do Vossische Zeitung de 10 de agosto levanta pela primeira vez a tese do comunismo como princípio de organização igualitária de Canudos, elogiando sua disciplina interna. Na primeira página de 8 de outubro, o jornal alemão noticia a tomada de Canudos em longo artigo com um balanço da guerra, mas recai em erros aparentemente já superados, como a tese da conjuração monarquista – útil talvez para explicar a longa duração do conflito e o desempenho decepcionante do exército. Os leitores alemães são informados do fim da guerra quase tão rápida e amplamente quanto os brasileiros. Já os londrinos souberam da tomada de Canudos no dia anterior, 7 de outubro, algumas horas antes dos brasileiros devido à diferença de fuso horário.
    O Vossische Zeitung ainda ignorava, porém, a total destruição do arraial. Supunha a sobrevivência de Canudos como cidade e Antônio Conselheiro mais tarde perante um tribunal. As matanças sumárias e o extermínio a ferro e fogo de toda uma comunidade não entram na imaginação do redator alemão. A biografia resumida do Conselheiro dá ênfase a seu papel de profeta, anacoreta (monges cristãos que viviam solitariamente) e messias, juntamente com o de fanático, provavelmente uma tentativa de lidar com um fenômeno social insólito inserindo-o na lógica do cristianismo. Chamar a guerra de conflito entre brasileiros e fanáticos significa, implicitamente, excluir os canudenses da nação. Por outro lado, enfocar a situação econômica como uma das causas da popularidade do Conselheiro é uma explicação quase materialista, não frequente nos observadores brasileiros da época. A cena dos fanáticos agarrando-se aos canhões atiçou a fantasia dos leitores, pois aparece em vários artigos e livros sobre a guerra – é um topos, cena emblemática inspirada pelo romance Quatrevingt-treize, do francês Victor Hugo (1874), relatada e ficcionalizada também por Euclides da Cunha. 
    Entre os três artigos do Le Temps sobre a queda de Canudos, consta a observação verídica de que o fim da guerra fora um  "massacre". Curioso é que o periódico mais citado por outros jornais, o The Times, com correspondente próprio no Rio, pouco noticiou o fim da guerra, resumido apenas em notas nos dias 7 e 9 de outubro de 1897. O órgão central das elites europeias ficou devendo um balanço da guerra, mas no geral sua cobertura foi a mais completa, ponderada e objetiva de todas, a mais confiável à luz das pequisas modernas sobre Canudos.

    Berthold Zilly 1/12/2014 
  • Berthold Zilly é professor visitante da Univesidade Federal de Santa Catarina e tradutor de Os Sertões para o alemão. 

  • Saiba mais:
    BARTELT, Dawid. Sertão, República, Nação. Trad. de Johannes Kretschmer e Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Edusp, 2009.
    CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos. Org. de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
    CUNHA, Euclides da. Canudos. Diário de uma Expedição. Org. de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
    GALVÃO, Walnice Nogueira.  No calor da Hora. A Guerra de Canudos nos jornais: 4a Expedição. São Paulo: Ática, 1977.
    ZILLY, Berthold. “Canudos telegrafado: a guerra do sertão como evento de mídia na Europa de 1897”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 160, n. 405, p. 785-812. Rio de Janeiro: IHGB, 1999.


CANUDOS: A mídia em campanha

A mídia em campanha

Na defesa de interesses políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre anunciado em Canudos

  • “Há bons seis meses que por todo o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23 anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional.
    “Opinião pública” era algo muito limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública através da cultura oral.
    Para o pequeno grupo de indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembrou-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
    Num tempo em que fotografias impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos da lei, do trabalho e da moralidade”.
    Mais do que uma “revolta” contra a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região, José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os “jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser completamente aniquilado. 
    A função “crítica” da imprensa se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol da defesa de princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma população total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada), circulavam cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram gonçalvistas, enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com restrições) o Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais e soldados contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de medo. Intensificaram a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da fundação do arraial, desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de documentos – na sua grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques de canudenses a fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador fazia de Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada por seus adversários. 
    A partir de março de 1897, no entanto, os dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um forte discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota da terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso da conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura modernizadora e positivista no Brasil. 
    O Nordeste, região de primazia econômica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam em decadência econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de Canudos reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se usava pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos “jagunços”), incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/ De norte a sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao de Antonio Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
    Os lugares do evento midiático “Canudos” foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura da imprensa nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente de guerra, escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para serem publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser transportadas a pé ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por telégrafo a Salvador (ou de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de onde enfim seguiam para o sul. Na época, ainda desconhecido do público fora do seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses correspondentes de guerra. 
    Quando Euclides chega a Canudos, o discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um ano, já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente Prudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de famílias sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os relatos de Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na percepção dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por muitos.
    Já não foi a imprensa a protagonista desta mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados científicos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série de crônicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e livros romanceados, como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços, de Manuel Benicio, correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os Sertões, de Euclides, foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra. 
    Assim como Canudos propicia debates até hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no Brasil enquanto formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que se encontram nas suas periferias social, econômica e cultural. 

    Saiba mais:
    GALVÃO, Walnice Nogueira. No Calor da Hora. A Guerra de Canudos nos Jornais, 4ª expedição. 3. ed. São Paulo: Ática, 1994.
    LEVINE, Robert. O Sertão Prometido. O Massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1995.
    LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão Chamado Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.

  • Fonte da matéria: Revista de História
  • Dawid Danilo Bartelt 1/12/2014
  • Dawid Danilo Bartelt é doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do escritório Brasil da Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e Nação (EdUSP, 2009).

CANUDOS: BELO MONTE - Todos perdemos

Todos perdemos

O Exército quase deixou de existir em Canudos, uma das campanhas mais sangrentas já travadas pelo Brasil, e contra brasileiros


  • A ferocidade das batalhas foi a marca da Campanha de Canudos. E o Exército não estava preparado para a magnitude da tarefa. As tropas ainda sofriam com os efeitos das recentes Revolta da Armada (1893-1894) e Revolução Federalista (1893-1895), que consumiram muito da sua capacidade. O inimigo da vez era um religioso cheio de seguidores no interior baiano.


  • O fenômeno Antônio Conselheiro era acompanhado de perto pelos líderes políticos locais. Sua capacidade de arrastar multidões foi rapidamente identificada como uma forma de obter trabalhadores e votos. Os oponentes do governador da Bahia, Luiz Vianna, interpretaram sua falta de reação diante das andanças do Conselheiro como uma estratégia: sua intenção seria tê-lo como aliado nas eleições de dezembro de 1896. Para pressionar o governador, boatos foram espalhados por todo o interior, chegando rapidamente à capital, Salvador, dando conta de que Conselheiro planejava tomar cidades vizinhas.
    Colocado em xeque, Vianna pediu ao governo federal homens do Exército, pois em governos anteriores, chefiados por rivais de Vianna, a Polícia Militar do estado já tinha travado várias ações infrutíferas contra os seguidores de Conselheiro A primeira expedição contra Canudos foi comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, à frente de três oficiais e 104 soldados. A tropa seguiu de trem até Juazeiro e de lá marchou até Uauá, onde esperou pelo ataque dos homens do Conselheiro. A vila foi esvaziada pela população em pânico, e os sertanejos não demoraram a chegar: na alvorada de 21 de novembro de 1896, vieram armados com facões, lanças e armas velhas. Eram cerca de 500 homens contra os 104 de Pires Ferreira. A luta durou quatro horas, até que os seguidores do beato se retiraram, batidos pela defesa obstinada dos soldados. 
    Soldados: xilogravura de Adir Botelho traduz a epopeia de Canudos com um traço singular. (Imagem: Adir Botelho)

    Em relatório, o tenente Pires Ferreira listou uma série de empecilhos internos que teve de enfrentar: fuzis que esquentavam demais, fardas que se transformavam em farrapos e calçados que rapidamente desapareciam, deixando os soldados descalços nas longas marchas pelo sertão. Registrou também que tinham de dormir ao relento, pois não haviam sido fornecidas tendas. Seus alertas, no entanto, foram postos de lado pelas expedições seguintes, que acabaram enfrentando os mesmos problemas. 
    A segunda expedição foi preparada sob o comando do major Febrônio de Brito. Como reforço, foram convocados homens das unidades do Exército de Salvador, Aracaju e Maceió, além de 250 membros da Polícia Militar. Entre os armamentos, chegaram metralhadoras e dois canhões Krupp de 75 mm. Mas dificuldades logísticas afetaram os planos: com meios de transporte limitados, Febrônio deixou pelo caminho suprimentos que acabaram fazendo falta. Além dos jagunços, do ambiente hostil e do sol escaldante, havia agora um novo inimigo: a fome. Os sertanejos atacaram os soldados quando eles cruzavam a estrada do Cambaio, um dos montes que circundavam Canudos. Uma dura batalha se seguiu. O saldo de baixas militares foi de quatro mortos e 23 feridos, contra 115 dos conselheiristas. O monte foi conquistado, mas os soldados estavam exaustos e a comida tinha acabado. Mesmo assim a tropa foi em frente e, no dia seguinte, marchou na direção de Canudos. 
    O povoado era, de certa forma, imponente: mais de 5 mil casas em um terreno que parecia inconquistável. Os sertanejos não esperaram a aproximação dos soldados: tinham cercado a tropa de Febrônio durante a noite, e avançaram sobre os militares por todas as direções. O que era para ser ataque virou defesa, e cenas dramáticas se seguiram com sangrentas lutas corpo a corpo. Cada vez mais adeptos de Conselheiro chegavam. O major relatou ter sido atacado por mais de 4 mil inimigos. Dois dias de fome cobraram seu preço: só restava a retirada, e os militares a fizeram, com saldo de 10 mortos e 70 feridos. Entre os defensores de Canudos foram 300 mortos. A notícia da derrota foi pessimamente recebida no Rio de Janeiro. E o coronel Antônio Moreira César, que acabara de retornar de Santa Catarina após reprimir duramente os federalistas, foi convocado para liderar uma nova expedição. Rumou para a Bahia com batalhões de infantaria apoiados por cavalaria e artilharia. Além dos baianos, recebeu homens de outros estados do Nordeste, totalizando 1.281 combatentes.
    Avançando rapidamente, Moreira César contornou os montes abrindo caminho na caatinga repleta de espinhos sob sol terrível. A tropa sofria com a falta de água e de alimentos. No dia 3 de março de 1897, os soldados conseguiram entrar no povoado. Unidades inteiras desapareceram entre as pequenas casas, e o coronel foi ferido duas vezes. A tropa se retirou quando o dia terminava. A agonia de Moreira César acabou de madrugada, quando faleceu. A notícia correu entre os soldados que, no início da manhã, começaram a se retirar em direção a Monte Santo, num movimento que logo virou fuga desorganizada. Os sertanejos se aproveitaram para executar os feridos e os militares que conseguiram capturar, decapitando-os. As cabeças foram colocadas nos caminhos para Canudos, como um aviso.
    Derrota ainda maior, horror no Rio de Janeiro. O presidente Prudente de Morais (1894-1898) retornou da licença médica e se encarregou de mudar o ministro da Guerra, alçando ao cargo o marechal Carlos Machado Bittencourt. Ele organizou uma nova expedição, cuidando dessa vez de garantir o fluxo de suprimentos do Exército, uma das principais razões para as derrotas anteriores. A quarta e última incursão a Canudos foi liderada pelo general Artur Oscar, com duas colunas comandadas pelos generais João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. O plano era que cerca de 5 mil soldados envolvessem Canudos e esmagassem o reduto apoiados por artilharia, em especial um canhão apelidado pelos jagunços de “Matadeira”.
    O avanço da coluna de Savaget foi cuidadoso, mas sem saber esse grupo avançou contra a principal rota usada pelos sertanejos para levar boiadas e suprimentos para o arraial. Em 25 de junho foram travados os primeiros combates, e dois dias depois a frente principal, comandada por Barbosa e com o general Artur Oscar, tomou o Alto da Favela. No dia 28, um ataque dos conselheiristas fez com que as colunas se unissem, pois Barbosa tinha sido cercado. Sob ordens de Artur Oscar, mais de 1 milhão de balas foram disparadas contra os sertanejos naquele dia. O combate resultou em mais de mil baixas à expedição. Oscar estava sem suprimentos e dependia de comboios que nem sempre chegavam, pois os locais muitas vezes se apoderavam deles.
    Em 14 de julho a tropa conseguiu estabelecer uma linha dentro do arraial. Mas não sem um altíssimo custo: 1.014 baixas, praticamente um a cada três homens. O número manchou a reputação de Artur Oscar, especialmente pela perda de oficiais. Batalhões que antes eram comandados por coronéis estavam agora sob as ordens de tenentes. A situação de desmanche impossibilitou novos ataques. 
    O impasse permaneceu até que novos reforços chegaram, no fim de agosto. No dia 1º de outubro teve início um novo ataque. A resistência foi enérgica. Mesmo sob forte bombardeio, o arraial não se rendia. Nos dois dias seguintes houve tréguas: cerca de 500 a mil sertanejos se renderam, entre mulheres, idosos e crianças. As investidas, porém, não cessaram: os jagunços eram desalojados com o uso de bombas de querosene e dinamite. O fogo se espalhou rapidamente no povoado, gerando um cenário de total destruição.
    A batalha chegou ao fim no dia 5 de outubro. O número de mortos no arraial é desconhecido – a estimativa vai de 5.500 pessoas (segundo registro do tenente Macedo Soares) até 26 mil, cálculo baseado na média de cinco pessoas para cada uma das 5.200 casas do povoado. 
    O Exército também foi destroçado. Quase metade de seu efetivo tinha servido na campanha, que deixou 4 mil combatentes mortos no solo árido do sertão. O episódio foi marcante para a instituição, que nas décadas seguintes reavaliou seu papel na política brasileira. Desde então os militares buscaram incutir na sociedade a ideia de um organismo que era forte e preparado para os desafios que surgissem. Capaz também de driblar armadilhas que pudessem implodir suas estruturas, como aconteceu em Canudos.  
    Matéria da Revista de História do Professor Sandro Teixeira Moita 1/12/2014  
    Sandro Teixeira Moita é professor de história militar na Divisão de Preparação e Seleção da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).
    Saiba mais
    McCANN, Frank. Soldados da Pátria: História do Exército Brasileiro, 1889-1937. São Paulo: Companhia das Letras; Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2009.
    ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições Militares contra Canudos: Seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.
    CALASANS, José. Cartografia de Canudos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo/ EGBA, 1997