Em "Festas Populares do Brasil" de Alexandre José de Melo Moraes Filho, poeta, prosador e historiógrafo, recebeu o título Magnum opus nessa obra e em mais duas Cancioneiro dos ciganos e Os ciganos no Brasil, pode ser encontrado e copiado, no site do Senado Federal através de seu Conselho Editorial, que no ano de 2002 dispôs a publicação em Adobe Acrobat (PDF) com 384 páginas onde na página 310 encontramos esse valioso relato a respeito do famigerado bandido que assolou o recôncavo baiano.
O artigo Lucas da Feira foi escrito pelo médico e historiador baiano, Alexandre José de Melo Moraes Filho (1844-1919), onde foi contemplado no livro "Festas e Tradições Populares do Brasil", prefaciado por Sílvio Romero (1851-1914) e publicado em 1901.
O autor, Alexandre José Melo Moraes Filho nasceu no dia 23 de fevereiro de 1844, na cidade de São Salvador, capital baiana, onde efetuou seus estudos preliminares. Mudou-se para o Rio de Janeiro e matriculou-se no Seminário Católico de São José, pensando quando jovem, adentrar à vida eclesiástica.
Voltando à terra natal, em 1867, quando desistiu de ser padre mas por motivos particulares voltando novamente ao Rio de Janeiro, indo morar numa república de estudantes. Eram tempos difíceis onde à época outros jovens desenvolviam jornalismo e literatura, e entre eles, Castro Alves.
Recebeu um convite para dirigir O Eco Americano, periódico ilustrado, editado em Londres. Na Bélgica, fez o curso médico e ao retornar ao Brasil, dedicou-se ao jornalismo.
Publicou: Cantos do Equador; Ciganos no Brasil; Curso de Literatura Brasileira; Festas Populares do Brasil; Cancioneiro dos ciganos; Paraíso Brasileiro; Fatos e Memórias; Cantares; Saraus e Serenatas; Artistas do meu tempo, entre outros.
Vamos então ao relato que faz na página 310 do livro "Festas Populares do Brasil":
Na galeria dos criminosos célebres, ocupa esse facínora, no Brasil, um dos pontos mais culminantes.
Nasceu Lucas na fazenda do Saco do Limão, na província da Bahia, e era escravo de uma Dona Antônia, rica proprietária na Feira de Santana.
Por morte desta senhora, passaram os seus bens a seu sobrinho o padre João Alves Franco, que recebera, com os avultados cabedais da terra, escolhida escravatura, de que fazia parte o molecote Lucas.
Na idade de 20 anos, o padre seu senhor mandou-o aprender o ofício de carapina, e nessa aprendizagem fugia a miúdo, voltava apadrinhado, até que, perdendo o medo, deixou de procurar padrinho, e
começou a assaltar e roubar no mato e nas estradas, matando a quantos lhe resistiam.
Os dias prediletos para as suas violências e assassinatos eram as terças-feiras e depois as segundas – dias de feira no lugar – por isso que nessas ocasiões o povo que vinha à cidade tratar de negócios crescia muitíssimo de número.
Assentando destarte a sua tenda de salteador na Feira de Santana, a ele se foram associando vários escravos fugidos, que formaram a assombrosa quadrilha de que Lucas era o chefe horrendo e pavoroso.
O Dr. Vicente Ferreira Alves dos Santos, primeiro juiz letrado do termo, durante o seu exercício, fez o mais que pôde para prender Lucas, tendo destacado, além da força de polícia, algumas praças de cavalaria, que, ao reclamo dos assaltados ou a qualquer notícia, se guiam e voltavam sem nada conseguir, embora auxiliados por caboclos da Pedra Branca, rastreadores habituados e de ouvidos exercitados.
Repetidas vezes, por essas diligências frustradas, prendiam e açoitavam, nas grades da cadeia, um primo e parceiro de Lucas, supondo-se existir correspondência entre ambos, e daí secreto aviso.
O Dr. Vicente Ferreira Alves assistiu à execução das sentenças de morte na forca a que foram condenados os escravos Flaviano e Januário, salteadores da referida quadrilha.
A guarda negra de Lucas arregimentava cerca de trinta indivíduos, negros e mulatos, todos escravos de senhores-de-engenho e de pequenos lavradores.
Nicolau, em uma noite de terça-feira, com Lucas, na estrada da Lagoa Salgada, assaltando um grupo que voltava da Feira para casa, foi morto a tiro, e com ele uma preta sua companheira no crime.
Os assaltados cortaram a cabeça do malfeitor, e na manhã seguinte entraram com ela fincada em um pau pelas ruas da cidade.
Por ordem da autoridade, o cirurgião José Maria Soares de Melo extraiu-lhe o encéfalo, salgou-a, e em um poste, no Campo do Gado, no lugar onde se levantara a forca, ficou exposta ao público.
Nessa tarde entraram na povoação os dois cadáveres às costas de um animal, sucedendo-se ao corpo de delito dar-se sepultura à negra e entregar-se o corpo de Nicolau à populaça infrene, que, depois de arrastá-lo pelas ruas, lançou-o em uma enorme fogueira, que o reduziu a cinzas.
O delegado suplente que então servia, participando a ocorrência ao Governo, foi severamente repreendido pelo chefe de polícia, por ter consentido em tamanha selvageria.
O negro salteador contava em seu grêmio foragidos resolutos, baluartes resistentes aos embates da luta e do imprevisto.
Da árvore, a cuja sombra erguia a sua tenda, desenrolava-se uma rede de cipós em várias direções, uma espécie de telégrafo, que transmitia, por meio de convenção prévia, avisos e notícias.
Lucas era um bandido de maior estatura que Pedro Espanhol, cometeu mais de cento e cinqüenta assassinatos, roubou com mais afoiteza, os defloramentos por ele praticados foram inúmeros.
Na estrada e nos assaltos às fazendas ele e os seus matavam homens, crianças e mulheres, e a algumas destas depois de aviltá-las com as suas torpezas.
Às vezes, satisfeitos os seus brutais desejos, as deixavam nuas, untadas de mel do tanque, amarradas a um tronco de árvore, até que morriam de fome e de mordeduras de insetos.
A terrível quadrilha infestava muitíssimas estradas ao sul, a da Cachoeira e Santo Amaro; ao norte, a de S. José, Canavieiras e S. Vicente; a leste, Lagoa do Furno, Registro e Lagoa Salgada; a oeste, Jacuípe, Catumbi e Pedra do Descanso.
Em algumas entradas no mato a polícia e a força de linha conseguiam prender um ou outro do bando, que subia à forca sem remissão nem agravo. Flaviano e Januário assim acabaram.
Diariamente marchavam contra os facínoras pessoas armadas, e dispostas aos riscos da aventura, caindo morto por bala o salteador que resistia isolado ou que não as tinha pressentido.
Lucas e os seus sequazes assassinavam autoridades, cargueiros, viajantes, portadores de diamantes e dinheiro, sabendo de véspera o itinerário dos indivíduos e de quanto levavam consigo.
A acreditar-se em boatos, o salteador da Feira distribuía o que roubava com alguns negociantes da cidade e altas influências políticas, motivo por que escapava às tocaias e esperava certeiro os comerciantes em trânsito, conduzindo por mais de vinte anos uma vida de roubo, de devastação e de assassinatos.
De uma feita sendo mortos na vila do Tucano o juiz municipal Dr. Procópio e oito pessoas daí, mais o chefe de polícia Dr. Francisco Gonçalves Martins (depois Barão de S. Lourenço) teve de seguir para o local do crime a fim de sindicar o fato e instaurar processo.
Na Feira de Santana, por onde passou, demorou-se poucos dias, dando providências sobre uma outra morte – a de Firmino Ferreira Sarmento, e sobre o meio prático de se prender Lucas.
Neste sentido mandou afixar editais e publicar pela imprensa que o Gover no daria quatro contos de réis a quem o fizesse.
E Lucas, apesar de espionado e perseguido, prosseguia temeroso e indômito em sua carreira.
Lucas era a figura do Diabo. Contam-se dele tantos casos, narram-se a seu respeito tantas legendas, que encheriam volumes.
Uma ocasião, um negociante, que ia para a Feira, meteu por prevenção o dinheiro, que levava, dentro da gravata e pequena quantia no bolso, que era para Lucas, como ele di zia.
Na estrada, Lucas sai-lhe ao encontro e obriga-o a entregar o que trazia, ao que o viandante sem réplica acedeu, franqueando-lhe as algibeiras.
O salteador, mirando-o de cima abaixo, saqueia-o e, apenas o manda embora, fá-lo voltar.
– Meu ioiô, disse Lucas, dê a seu negro essa gravata, se não morre.
O pobre homem, que supunha-se escapo com a vida e a fortuna, não hesitou um instante, desatou-a e entregou desconfiado, assustado.
Por vezes, enfrontando no sertão com o padre seu senhor, tomava-lhe a bênção, pedia-lhe rapé e deixava-o ir seu caminho.
Dizem os velhos que Lucas tivera um remorso: – o de haver assassinado uma rapariga de 15 anos, a quem desvirginara e, enter rando-a na floresta, aconteceu que passando por perto na manhã seguinte, viu levantar-se da cova uma nuvem de pássaros, que foram cantando perder-se no além.
O negro e a sua quadrilha, depois do prêmio oferecido, não contavam com um momento de trégua, capitães-do-mato, rastreadores, soldados, gente do povo, enfim, seguiam-lhe no encalço, desafiando mais as represálias do bando.
E os assaltos aos engenhos e aos viajantes, o roubo de gado e de bagagens, os cadáveres apodrecidos nas árvores reproduziam-se sem termo, ativando esses crimes a vigilância e sagacidade do chefe de polícia e das autoridades locais, que não se poupavam a todas as diligências.
Do Aljube da cidade, Cazumbá, compadre de Lucas e réu inafiançável, evadira-se e batia as matas.
Na sua existência errante e sobressaltada, garantia dar cabo do salteador da Feira, uma vez que, com os quatro contos prometidos, lhe fosse oferecida a absolvição dos delitos.
Esta notícia espalhando-se, as autoridades da província tomaram conhecimento do fato e fazendo vir à sua presença Cazumbá, ficou o ajuste assentado sob a palavra do Governo e a resolução do bandido.
Daí por diante a estrela de Lucas começou a ser-lhe funesta. Cazumbá, acompanhado de Marcelino, a quem se associou, meteu mãos à obra, levando dias e noites à tocaia de Lucas.
Atravessava florestas, transpunha vales e serras, embarcava em diferentes lugares, pondo-se-lhe à pista, até que, na tarde de segunda-feira, 24 de janeiro de 1848, emboscado em uma das picadas da
Pedra do Descanso, percebeu o facínora armado de clavinote, que passava ao longe.
E Cazumbá disparou-lhe um tiro...
A bala, fraturando-lhe o braço direito, não o impediu de escapar, de embrenhar-se nas selvas, deixando após si um rastro de sangue.
Avisados, incontinenti, subdelegados, delegados, juízes de paz e inspetores de quarteirão, partiram todos, seguidos de tropa, em busca do esconderijo de Lucas, porém inutilmente.
Em caminho, viram cadáveres putrefatos, indivíduos amarrados e seviciados, uma moça branca enleada contra os espinhos de um pé de mandacaru, baús, alfaiais da igreja de Brotas, e objetos roubados, nas clareiras do mato.
Frustrada a diligência, no declínio das esperanças, quando já se haviam perdido muitas jornadas em busca do salteador baleado, acudiu a alguém a idéia de mandar chamar o negro Benedito, amigo de Lucas e salvo-conduto dos viajantes da Cachoeira à Fe ira de Santana, para dar conta dele.
Depois de ameaças e promessas, Benedito comprometeu-se a indicar o pouso, e, seguindo à frente, puseram-se em marcha autoridades e tropas, Cazumbá e Marcelino, que o prenderam em uma furna onde era pensado por uma rapariga, tornando-se para isso necessário que lhe dessem outro tiro.
A ferocidade do negro, apesar de ferido e pilhado, era inaudita. O fato passou-se pela madrugada.
E às sete horas da manhã, em uma rede gotejante de sangue, chegou Lucas aos Olhos-d’Água, afluindo para vê-lo inúmero povo.
Às oito horas entrou na cidade, onde a população o teria linchado se não fosse a numerosa guarda de baioneta calada, que o protegia.
Por três dias o prazer e as festas tornaram-se indescritíveis: girândolas de foguetes, repiques de sino, embandeiramento das ruas, luminárias à noite, passeatas, tocatas de violão, etc.
Na cadeia da capital, para cuja prisão foi removido, amputaram-lhe o braço, e respondendo ao júri que o condenou à pena última, subiu à forca em setembro ou outubro de 1849.
Lucas tinha mais de 45 anos de idade. No alto do patíbulo fez uma fala ao povo, pediu perdão e na forca ou na prisão – jamais comprometeu pessoa alguma.
Note-se que, como dissemos, Lucas não roubava para si. E a esse respeito possuímos documentos de grande valor.
Naquele malfeitor, entretanto, naquela monstruosidade humana, dois sentimentos bons conservaram-se – a gratidão e a caridade.
O cruel salteador da Feira nunca ofendeu a quem lhe fizera ao bem, e era o socorro ignorado de muitas famílias pobres que viviam de suas esmolas.
Além do prêmio da traição, Cazumbá recebeu presentes de dinheiro do comércio da Cachoeira, da Feira de Santana, de Santo Amaro e da Bahia.
É estilo no Norte os acontecimentos notáveis serem cantados pelos Homeros populares: as façanhas do Lucas estavam neste caso.
Do muito que produziu a poesia anônima do tempo, o ABC do Lucas é a mais original e característica.