Em reportagem, indicada abaixo por link, cita algumas passagens de autores famosos como Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros e seu livro A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão, que conferi as chamadas, e Eric Hobsbawm em seu livro Bandidos, que também conferi as notas. Indica outros autores, não conferidos por não possuir tais obras, mas estão indicadas no rodapé, inclusive filmes no youtube.
Lorenzo Aldé inicia suas considerações mostrando-nos uma passagem que está no livro A Derradeira Gesta, que cita Rodrigues de Carvalho que relata esse episódio em seu livro Lampião e a Sociologia do Cangaço, e que Luitgarde Barros, ouviu pela boca de pessoas nas cidades de Pão de Açúcar, Santana do Ipanema (Alagoas) e Poço Redondo (Sergipe), que eu não sei se de "ouvi falar" ou não, pois não acrescenta indicativos de tais testemunhos, que "um homem armado invade uma casa em busca de comida. A dona, humilde viúva da zona rural, não tem o que oferecer. Tomado por um ataque de fúria, o invasor dá uma surra na mulher e depois se volta para o jovem filho da viúva, que presencia tudo. Põe então em prática seu gosto por rituais de sadismo gratuito: enfia o órgão genital do menino numa gaveta e a tranca com chave. Depois, ateia fogo à casa. Desesperado, o rapaz é obrigado a cortar o próprio pênis para salvar a vida."
E quem foi esse homem invasor e insano para fazer uma perversidade dessas? O facínora responsável por esse crime hediondo, segundo Luitgarde foi o próprio chefe do bando, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E Lorenzo Aldé, nos chama a atenção para esse que "é hoje um mito nacional: Virgulino Ferreira, vulgo Lampião. Sua ficha criminal não caberia em todas as páginas desta edição. Durante 22 anos, liderou um bando de cangaceiros em ataques sangrentos num vasto perímetro de sete estados do Nordeste. Arrasavam vilas e propriedades rurais. Estupravam mulheres. Castravam rapazes. Enterravam gente viva. Cortavam cabeças. Sangravam inocentes como animais em praça pública. Marcavam com ferro em brasa o rosto de moças que se vestiam de forma “inadequada”."
Quando lemos e pesquisamos esse tema 'cangaço" nos deparamos com pessoas poderosas da época, que "anunciavam publicamente sua indignação com os atentados em série e suplicavam verbas do governo federal para caçar os cangaceiros. Nos bastidores, porém, faziam acordos com o chefe da gangue, vendiam-lhe armas e contratavam seus valiosos serviços de jagunço para se livrarem de desafetos e se apossarem de terras abandonadas."
Concordo que também "o terror promovido pelo cangaço contribuiu para a migração em massa do Nordeste para o Sudeste nas primeiras décadas do século XX." e isso enxergamos quando acessamos os cordéis da época que "lamentavam o sofrimento do sertanejo nas mãos dos bandidos":
É um tormento horroroso
essa tal situação,
da gente não poder mais
viajar pelo sertão
para encontrar no caminho
indo cair direitinho
nas unhas de Lampião
Como explicar que, hoje, esse bandido quase só receba loas, como símbolo de cabra macho, vingador do sertão? Como explicar Lampião, o Mito?
Em matéria minha (Lampião era um mestiço que não gostava de negros ) mostrei que em muitas narrativas biográficas evocam o horror manifestado por Lampião à simples menção de uma origem africana. A antropóloga Luitgarde Cavalcanti, desde criança, já também tinha esse sentimento pois "sua mãe caíra nas garras do cangaceiro quando jovem. No episódio, ocorrido no município de Santana de Ipanema (AL), Lampião trancou as moças da família em uma casa e ordenou que ninguém do seu bando encostasse nelas. Não foi um súbito acesso de bondade. Luitgarde atribui a decisão ao racismo do “rei do cangaço”. Descendentes de holandeses, com pele clara, olhos azuis, bem vestidas, aquelas mulheres impressionaram Lampião pelo fino trato e pela boa aparência. Eram, enfim, de uma “raça refinada”.
O respeito vinha de uma formação sertaneja onde os brancos e aloirados tinha supremacia. Eu mesmo, via isso quando menino, pois até então não tinha visto nenhuma pessoa da pele negra, - morena sim, nas imediações do bairro do Seminário, em que morava, na cidade de Fortaleza, e quando uma família do Rio de Janeiro, de descendência afro veio residir no bairro nós meninos ficávamos admirados por nunca termos visto pessoas como aquelas, de pele negra.
Por mais de 20 anos, Luitgarde se dedicou a investigar o cangaço, num esforço que envolveu pesquisas de campo, análise documental e de referências teóricas e que resultou no livro A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Para ela, a mitificação de Lampião é um absurdo histórico a ser corrigido urgentemente. “Ele só conseguiu permanecer 22 anos praticando seus crimes porque servia à classe dominante. O êxodo provocado por Lampião refez o latifúndio no sertão nordestino. Enquanto foi vivo, ele não era mitificado pelo povo. Até o início dos anos 1960, nenhum cordel dizia que Lampião teria ido para o céu; ele sempre aparecia no inferno”, diz ela.
O coronel Lucena Maranhão, o homem que matou o pai do cangaceiro e mais tarde liderou a caçada que resultou na morte do próprio Lampião (1938), entrou para a história alagoana como benfeitor público. “Haja festa no sertão/ Dê viva todas pessoas/ Que a polícia de Alagoas/ Apagou o Lampião”, celebrava o poema popular de Manoel Neném. Lucena elegeu-se deputado estadual em 1951 com grande votação, e dois anos depois foi o primeiro prefeito eleito de Maceió.
Então, quando, e por obra de quem, surgiu o Lampião fictício, bravo guerreiro de um Brasil miserável?
A pesquisadora aponta origens bastante distintas para essa deturpação. Em primeiro lugar estão os que participaram ou se beneficiaram do cangaço. Os irmãos Melchiades e Ezequias da Rocha, por exemplo, descendiam de “coiteiros” de Lampião – gente que ajudava os cangaceiros a se esconder e os apoiava com serviços variados. Aos Rocha soava bem melhor ter ancestrais ligados a um “justiceiro” do que serem conhecidos como protetores de bandidos.
Eis porque, a partir dos anos 1940, o jornalista Melchiades, repórter de A Noite, passou a defender um novo olhar sobre o cangaço, enquanto o senador e médico Ezequias compunha cordéis sob o pseudônimo de Zabelê. Trazem sua assinatura os primeiros versos conhecidos em que Lampião tem seus atos legitimados pela corrupção reinante. Como estes:
Para havê paz no Sertão,
E as moça pudê prosá
E os rapaz pudê se ri
E os menino diverti
É preciso uma inleição
Pra fazê de Lampião
Gunvenadô do Brasil
Lorenzo Aldé e Luitgarde cruamente nos mostram que a "versão de que Lampião simbolizava um certo ideal de justiça social atendia a vários interesses. Até mesmo para os potentados regionais da política e da Justiça, as vestes de caçadores do justiceiro deviam servir melhor do que a revelação de conluios com criminosos. No outro extremo dos embates políticos, o novo Lampião caía como uma luva para a propaganda comunista no Brasil, como exemplo de “herói camponês” – a Internacional Comunista chegou a pensar em recrutá-lo como guerrilheiro revolucionário. Nos anos 1960, quando sobreveio a ditadura e a esquerda se aferrou a símbolos da libertação popular, não havia mais dúvidas sobre quem teriam sido os vilões e os heróis nos combates entre cangaceiros e a polícia corrupta dos coronéis. Some-se a tudo isso a liberdade poética de cordelistas e cantadores, tendo à mão o apelo dramático de personagens altamente simbólicos e já distantes no tempo. Receita pronta e infalível para o nascimento do bom bandido."
Lorenzo Aldé afirma que "fora de seu contexto, o bordão “Bandido bom é bandido morto”, popularizado pelo ex-deputado fluminense Sivuca, tem a precisão de uma máxima sociológica. Pois é justamente o que afirma o historiador best-seller britânico Eric Hobsbawm em Bandidos, obra de referência para os estudos sobre o conceito de “banditismosocial”: “Sem dúvida, é mais fácil converter bandidos mortos, ou até mesmo remotos, em Robin Hoods, qualquer que tenha sido seu comportamento real”. Se bandido bom é bandido morto, melhor ainda é bandido inexistente – é o que comprova o mesmo Hosbawm, ao apontar a lenda de Robin Hood como ideal universal do bom ladrão. Sem os pecados e as contradições dos criminosos de carne e osso, ele se beneficiou da imaterialidade para perenizar-se no imaginário da honrosa e eterna odisseia humana em sua luta contra autoridades ilegítimas ou injustas."
"Com o livro Bandidos, lançado no Brasil em 1975, Eric Hobsbawm faz uma viagem panorâmica por diversos exemplos de “bandidos sociais” ao redor do mundo, procurando embasar esse novo conceito segundo critérios socioculturais aproximativos. O livro virou referência, para o bem e para o mal: criticado por muitos, mas obrigatoriamente citado desde então. O contexto de atuação dos bandidos sociais de Hobsbawm se relaciona com a era moderna – a partir da formação dos estados nacionais e do controle dos territórios por poderes centrais – e se dá sempre na área rural. A maior causa das críticas à obra é sua análise genérica de que esse tipo de banditismo teria um significado pré-político, demarcando um início de reação das populações excluídas contra a opressão dos poderes locais. Para Hobsbawm, Lampião entra no rol dos “bandidos sociais”, embora com a ressalva de que era um personagem ambíguo, meio “nobre”, meio “monstro”.
Ainda que percam precisão quando generalizados, alguns modelos de Hobsbawm são úteis para uma verificação da presença, ou não, do bandido social em casos específicos de crimes. Um deles é o fator vingança. Em diversos tempos e culturas, a vingança é encarada como motivo aceitável para se pegar em armas a fim de fazer justiça com as próprias mãos. Foi o que levou outro cangaceiro notório, Antônio Silvino (1875-1944), a conquistar sua vaga no Paraíso dos cordéis: ele começou sua vida bandida para vingar o pai assassinado. O mesmo argumento por vezes é usado para defender Lampião. Mais uma vez, a caçadora do mito Luitgarde Cavalcanti se insurge contra a tese: “Isso é outra mentira. Lampião entrou para o cangaço com o pai muito vivo, em 1916. O pai dele só morreu cinco anos depois”. Quando muito, teria caído na marginalidade por conta de violentas rixas familiares anteriores. Em seu livro, Luitgarde chama de “escudo ético” o pretexto da vingança paterna utilizado por Lampião para justificar suas ações. Antônio Silvino, em oposição, ganha crédito da pesquisadora por ter mantido um “resto de honra”, obedecendo a certos limites – não estuprava e não castrava, por exemplo."
Lorenzo Aldé em seu precioso artigo, nos mostra "haver uma norma indispensável à consolidação de todo e qualquer “bom bandido” (real ou imaginário): a existência de elementos que o diferenciem do “bandido comum”. No Brasil, o primeiro a apresentar este diferencial teve uma trajetória que revelou muito sobre as relações de poder e os valores culturais da época, no século XVIII. Nosso primeiro bandido social conhecido, com uma legião de seguidores fiéis, foi Manuel Nunes Viana (?-1738), líder dos emboabas na corrida do ouro das Minas Gerais.
A ocupação de territórios em busca de riquezas recém-descobertas, sob poderes ainda fragilmente constituídos, fez da região cenário ideal para disputas violentas. “A capitania das Minas nasceu da vontade do ouro e das proezas dos mais valentes”, resume a historiadora Célia Nonata da Silva no livro Territórios de Mando. Está naqueles sertões o DNA dos futuros jagunços e cangaceiros nordestinos.
Manuel Nunes Viana |
O valente bandido ganhou mercês de Sua Majestade por prestar serviços ao rei, “desbravar sertões, destruir gentios e conquistar terras para a Coroa portuguesa”. Recebeu ainda o título de capitão-mor do São Francisco e o Hábito de Cristo. Quando os ventos mudaram e ele se viu perseguido pelo governador D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, Nunes Viana tornou-se oficialmente um fora da lei. Seu banditismo, então, passou a se legitimar pela busca da reparação e do desagravo, contra o poder opressor."
Mais uma vez, as crendices são usadas para acenar à população mais simples, que os bandidos tinham o “corpo fechado”. Este é um traço característico de muitos bandidos, incluindo a totalidade dos cangaceiros. "A prática tem origem nas religiões africanas: por meio de rituais, o indivíduo fica em dia com os orixás e, portanto, imune a qualquer agressão. Circulando em território povoado por escravos africanos e índios, Nunes Viana inaugurou um “banditismo mestiço”, valendo-se desses expedientes místicos para alimentar sua lenda e ganhar seguidores. Todo o seu exército de negros também era supostamente investido de poderes sobrenaturais. Dizia-se que ele tinha dons como curar doenças e saber o que se passava em todos os lugares."
O investimento na imagem pública, mesmo numa época de meios de comunicação rudimentares, é outro fator crucial para a construção do mito. Quem não conhece não teme. De volta a Robin Hood, Eric Hobsbawm nos lembra que as lendas em torno do personagem só se espalharam pela Europa após a invenção da prensa móvel, no século XV. Com suas baladas impressas e circulando amplamente é que o bandido imaginário, cuja existência teria se dado três ou quatro séculos antes, consolidou sua fama de herói. No caso do líder dos emboabas, Nunes Viana, embora sem grandes recursos midiáticos à disposição, também havia essa intenção de se autopromover: “Sua vida parece-nos um teatro de valentias e feitos heroicos, cujas ações remetem à ânsia pela referência pessoal e notoriedade”, atesta Célia Nonata da Silva.
Bandido bom tem que ser showman. Ainda mais a partir do século XX. Vale adotar uma marca pessoal, o Z de Zorro, a lanterna do Bandido da Luz Vermelha, a peruca loura de Lili Carabina. Cientes de sua condição de figuras públicas, tiram partido do próprio mito, a ponto de não sabermos mais diferenciar a vida real da ficção. Provavelmente, em suas mentes conturbadas, eles também já não saibam. Na era da urbanização, dos jornais, rádio e TV, a mídia é mais uma arma nas mãos dos bandidos que desejam se fazer heróis.
Tenório Cavalcanti |
Vítima dos cangaceiros na terra natal, tornou-se um neo-cangaceiro em seu novo lar, para onde se mudou com 20 anos incompletos. Começou trabalhando para um fazendeiro de Caxias, e em pouco tempo já era conhecido como pistoleiro na rude disputa por terras da periferia carioca. Seu nome ecoava em episódios de espancamentos, tiroteios, atentados, assassinatos e chacinas. Visto como ameaça pelas autoridades, sobreviveu graças à identificação com a comunidade – um dos requisitos mapeados por Hobsbawm para definir seu “bandidos sociais”. Majoritariamente formada por nordestinos simples que migraram para fugir da seca e do cangaço, a população caxiense não tardou a acolhê-lo como um igual, com a distinção da “macheza” e da generosidade em dar aos pobres."
"Metido com a apropriação de terras e a contravenção do jogo do bicho, Tenório deu seu grande salto quando legitimou o poder por meio de mandatos políticos. Eleito deputado estadual e depois federal, adicionou à sua persona pública irresistíveis ingredientes populistas. “Ele tinha a atuação de um coronel do interior em seu feudo: era juiz, polícia, cartório”, descreve o historiador Israel Beloch, pesquisador da empresa Memória Brasil e autor do livro Capa Preta e Lurdinha*."
"O título da obra se refere a dois elementos marcantes do mito que Tenório Cavalcanti construiu em torno de si. Nos anos 1940, ganhou do general Góes Monteiro, ministro da Guerra de Getúlio Vargas, um presente que era a sua cara: *uma metralhadora MP-40 alemã, que ele batizou carinhosamente de “Lurdinha”. Não largava a arma pesada nem mesmo para exercer suas funções parlamentares. Mas para não chamar muito a atenção, passou a usar uma capa preta, que escondia a metralhadora. Daí o título do filme “O homem da capa preta”, que o eternizaria nos cinemas. Outro traço que o diferenciava era o uso da barba, raríssima entre personalidades públicas de então. Para completar sua lenda junto ao eleitorado, em 1954 lançou um jornal popular – Luta Democrática –, daqueles cheios de crimes e violência. Além de destacar sua atuação política e defendê-lo dos ataques dos muitos inimigos, o veículo serviu para propagar o lado messiânico de Tenório Cavalcanti. E não é maneira de dizer. Nas páginas do Luta Democrática, os leitores podiam acompanhar a “paixão e o drama” da vida de um “paladino da nova era”, uma “figura nazarena” capaz de operar milagres. “Se você é pobre ou paupérrimo, se está falido, desiludido, sem ideais, desperte, levante e caminhe ao nosso lado na luta pela sobrevivência”, convocava o arauto dos “milhões de Tenórios”. Dizem que seus seguidores tocavam a capa preta para obter graças diversas. Não lhe faltou nem a fama do “corpo fechado” dos cangaceiros; afinal; safou-se de 47 ferimentos de bala.
Talvez a mais notável diferença entre esse bandido-político-urbano e seus ancestrais cangaceiros seja o fato de não se assumir como assassino. Os tempos eram outros; no meio urbano e político, a bravura tinha limites mais claramente definidos pela lei. Em suas memórias, Tenório narra 28 episódios de violência ao longo de quase três décadas, mas não assume nenhum crime e alega sempre legítima defesa. Declarou-se inocente inclusive do assassinato do delegado Imparato, seu desafeto público, cujo carro foi metralhado em 1953, num episódio de repercussão nacional.
“Não matarás”. Este mandamento sagrado para boa parte da sociedade contemporânea é também um divisor de águas no julgamento que fazemos de nossos bandidos. Simpatizamos mais facilmente com criminosos “inofensivos”, como o ladrão Meneghetti tido como “Honestamente ladrão”, o inglês Ronald Biggs, do assalto ao trem pagador, o golpista americano Frank Abagnale (que inspirou o filme “Prenda-me se for capaz”), o traficante desarmado João Guilherme Estrela (“Meu nome não é Johnny”) e o vigarista Marcelo Nascimento Rocha (“Vips”), entre outros estelionatários, tratantes e falsários. Beto Rockfeller fez sucesso na novela global e fez muitos fãs, inclusive eu.
"Certamente eles se encontram em melhor posição em nossa escala de valores do que políticos ladrões de dinheiro público. Muitos representam, talvez, o anseio popular de reparação das injustiças e desigualdades sociais – ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Quando os representantes da lei não gozam de credibilidade junto à população, agir à margem da lei é mais aceitável. No limite, representam a pulsão humana de afirmar-se afrontando limites que nos oprimem, como bem detectou Sigmund Freud."
Leonardo Pareja |
Mas as ações de Leonardo Pareja talvez tivessem permanecido no anonimato da bandidagem comum se ele não envolvesse no sequestro uma figura pública, em 1995. Depois de assaltar uma pousada na Bahia, manteve como refém a sobrinha do então senador Antônio Carlos Magalhães. Cercado, viu abrir-se para ele uma oportunidade inédita: a de usar a mídia a seu favor. “Foi a minha chance de sair de lá. Se fosse a filha de um operário, de uma dona de casa, tava eu e ela essas horas no cemitério”. A imprensa começou a criar para ele a imagem-padrão de monstro: que teria molestado e torturado a moça. Então resolveu dar entrevistas e mandar cartas para emissoras de TV. “A crítica fala em ‘inversão de valores’. Mas não: eu estava colocando os valores no seu devido lugar. Colocando o verdadeiro valor da polícia, que são ladrões, corruptos, torturadores. Saía a versão da polícia. Eu entrava na rádio e dava a minha versão. A imprensa foi moldando a critério dela, e eu fui moldando a meu critério”. Assim nasceu o mito Leonardo Pareja, bandido justo e defensor dos oprimidos, plenamente consciente de que construía um personagem: “Tenho que representar”.
Filmado para um documentário – “Vida bandida”, de Régis Faria – quando estava preso, teve toda a chance de desfiar seus argumentos, com fala mansa e vocabulário articulado, ajudado ainda pela aparência de bom rapaz, cara de classe média. “Nunca usei de agressão física nem agredi moralmente a pessoa”. Nisso, dificilmente se poderá dizer que estava mentindo, pois seu principal perseguidor o confirmou. “Desconheço qualquer violência praticada pelo Pareja contra suas vítimas”, declarou o delegado que chefiava a Polícia Civil de Goiás à época, cujo nome de batismo agravava sua má fama no estado: Hitler Mussolini.
Não faltou à construção da lenda um resgate espetacular, com a invasão do presídio de Anápolis e a libertação de comparsas. Mas o grande momento do personagem ainda estava por vir. Detento no presídio Cepaigo, em Goiânia, Leonardo Pareja tornou-se porta-voz dos colegas de cárcere na denúncia contra as péssimas condições da detenção, entre março e abril de 1996. Aproveitou uma visita de autoridades com o intuito de verificar o impasse e desencadeou uma rebelião. Em questão de minutos, ele e seus comparsas conseguiram fazer de reféns o secretário de Segurança Pública do estado, o presidente do Tribunal de Justiça, o diretor do presídio e mais de uma dezena de desembargadores, juízes, promotores e advogados. Nos dias que se seguiram, as autoridades dividiram celas com os presos amotinados. Sem tratamento diferenciado. Mais tarde, os reféns seriam só elogios à organização da rotina pelos detentos, que incluía lavagem de roupa e limpeza do espaço. “Eles foram bons demais conosco, não deixaram faltar água nem comida”, atestou o então diretor da cadeia, coronel Nicola Limongi Filho.
No meio das tensas negociações, o ator Pareja criou a cena mais impactante de sua curta vida de crimes. Subiu na caixa d’água do presídio com um violão e a bandeira do Brasil. Lá em cima, para todas as câmeras que quisessem ver, cantou “Admirável gado novo”, uma espécie de hino dos excluídos, sucesso na voz de Zé Ramalho: “Vocês que fazem parte dessa massa/ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber...”. Mais tarde, justificaria o ato: “O que eu queria passar? Que ali tinha brasileiros, e não presos, e que todo mundo tinha sentimentos”.
"Leandro França, escritor e criminalista, usa seus conhecimentos para tentar compreender o que faz de Pareja um bandido diferente. “Certas peculiaridades que fogem ao processo ordinário da criminalização, dentre as quais: a infração a regras não plenamente aceitas pelo corpo social, sua origem social, sua reação à persecução criminal, a capacidade de atender a inconfessáveis anseios sociais, o carisma, a possibilidade de se transformar em um personagem e de tornar sua história em um enredo policialesco, seu comportamento pós-apenamento”, enumera o autor do livro Ensaio de uma vida bandida, versão romanceada da saga de Pareja."
Diferentemente dos outros bandidos retratados na reportagem de Lorenzo Aldé, Leonardo Pareja não celebrou acordos com as autoridades. Limitando-se a desempenhar o papel de acusador da polícia e defensor dos excluídos, durou pouco. Morreu no mesmo ano, assassinado por um colega de prisão. O mesmo que, para a câmera do documentário, declarou-lhe lealdade cega: “Faço tudo por ele, até mato”. O assassino, viciado em drogas, ganhou a liberdade no ano seguinte. (Quem sabe? Talvez favores que recebeu por ter eliminado Leonardo Pareja.)
Lorenzo Aldé é jornalista e professor da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia
Saiba Mais - Bibliografia
BARROS, Luitgarde O. Cavalcanti. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
BELOCH, Israel. Capa preta e Lurdinha. Rio de Janeiro: Record, 1986.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: Banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
Saiba Mais - Filme “LeonardoPareja”, de Régis Faria (1996).
Disponível em: http://bit.ly/gn7e0K
(Na matéria original tem esse link - mas está quebrado. Deixo aqui para os amigos, tudo que o youtube traz com Leonardo Pareja)