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quinta-feira, 12 de maio de 2016

Brasil, país dos contrastes

A afirmação de que o Brasil é o país da impunidade é uma falsificação da realidade. Um dado já bastante conhecido precisa ser enfatizado: contamos atualmente com mais de 711 mil pessoas presas, segundo o CNJ. 

Quando a Abolição foi assinada, em 1888, provavelmente a mais relevante transformação da nossa formação social, havia no Brasil 710 mil pessoas escravizadas.

Mas a tragédia não se restringe aos números – que muitos insistem em relativizar. A questão pode ser vista por outros ângulos: impossível não constatar a imoralidade das penas cerceadoras de liberdade para um vastíssimo rol de condutas de baixíssimo potencial ofensivo (uma pessoa pode ficar oito anos em um presídio por furtar um botijão de gás do quintal de alguém, ou quinze anos trancafiada por plantar um pé de maconha), assim como não se pode fechar os olhos para a notória desumanidade à qual as pessoas encarceradas são submetidas.

As prisões brasileiras não são melhores do que as masmorras medievais. Além dos assassinatos, dos estupros, das torturas e de todos os outros tipos de violência física, incluindo o regime de fome e a ausência de material higiênico, as celas mal ventiladas, imundas e superlotadas são ambiente no qual proliferam as mais variadas doenças, da sarna à AIDS (cerca de 20% da população carcerária está infectada com HIV, contra 0,4% da população em geral).

Também é ilusória a ideia de que o inferno ao qual condenamos os presos fica restrito aos muros da prisão. A violência do encarceramento, que atinge preferencialmente homens negros, pobres e jovens, moradores de áreas periféricas, também é o estopim de um processo que piora as tensões das nossas profundas desigualdades, agravando a pobreza de um crescente número de famílias, cujos filhos logo se veem desamparados e à mercê de um círculo vicioso cujas consequências não deixam de atingir toda a sociedade. O encarceramento em massa, estrutura construída historicamente, é o principal problema político do Brasil de hoje. Enfrentá-lo é uma obrigação ética. 


Licença para matar

Milhares de homicídios praticados pela polícia do Rio são legitimados como “autos de resistência”

Michel Misse, Carolina C. Grillo, Cesar P. Teixeira e Natasha Néri
1/10/2015 
  • Nenhuma polícia de país civilizado mata mais que a do estado do Rio de Janeiro. Entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas em confronto com a polícia fluminense em casos registrados como “autos de resistência”. Embora sejam homicídios, essas mortes são classificadas separadamente por se tratar de casos com “exclusão de ilicitude”, ou seja, teriam sido supostamente cometidas em legítima defesa ou com o objetivo de “vencer a resistência” de suspeitos de crime. 
    Desde o início do século XX e durante toda a República Velha, a atividade policial no Rio de Janeiro estava voltada para o controle arbitrário das populações pobres. Seu foco, entretanto, não era ainda propriamente a repressão à criminalidade: atendia a demandas de ordem moral, como as numerosas prisões por “vadiagem”. Somente na década de 1950, em face do crescimento dos crimes contra a propriedade, surgiram os chamados “grupos de extermínio”, inicialmente no interior das instituições policiais. 
    A partir dos anos 1980, o tráfico de drogas passou a ocupar lugar de destaque na agenda da segurança pública. Após a popularização do comércio de cocaína, fortaleceram-se também as redes do varejo da maconha. Com o advento em escala mundial da “guerra contra as drogas”, aumentou a demanda pelo combate ao tráfico e à criminalidade de modo geral, ainda que isto implicasse o emprego de práticas arbitrárias pelas autoridades. A opinião pública parece concordar que a solução para o problema precisa passar pela suspensão dos direitos civis de uma série de indivíduos. 
    Tal postura aparece de forma ainda mais contundente no Rio de Janeiro, tendo em vista a gravidade e a complexidade da questão criminal que se configurou em torno do domínio territorial de favelas por grupos de traficantes armados. Apesar de o problema da insegurança em muito ultrapassar a sua relação com o tráfico de drogas, este passou a ser visto como o foco central e a origem da questão da chamada violência urbana.
    Foi nesse contexto que o governo do estado do Rio começou a investir cada vez mais em recursos materiais e humanos para a Polícia Militar. Ao longo da década de 90, os esforços resultaram na aquisição de armas de alto potencial letal, na contratação de membros para a corporação e na expansão considerável de sua frota de viaturas, incluindo veículos blindados, apelidados de “caveirões”. Também houve investimento na capacitação dos policiais para atuarem em contextos de “guerrilha urbana”. Todo esse aparato de guerra foi empregado em operações cada vez mais constantes em favelas, com o objetivo de fazer frente ao poder local dos traficantes.
    Se, por um lado, foram passos importantes na consolidação da superioridade bélica do estado em relação às facções do tráfico, por outro, desencadearam um aumento considerável na letalidade da ação policial. Foi então que o dispositivo do “auto de resistência” ganhou destaque. Presente desde a época da ditadura militar, esta classificação administrativa passou a ser empregada com maior frequência para designar as mortes resultantes das operações policiais. Durante o governo Marcelo Alencar (1995-1999), seu uso chegou a ser estimulado por uma remuneração concedida a policiais – intitulada “premiação por bravura”, que ficou conhecida como “gratificação faroeste”. 
    No ano de 2007, os autos de resistência atingiram seu ápice: foram contabilizados 1.330 casos no estado do Rio, sendo 902 só na capital. Alguns dados surpreendem, como o alto número de “menores”, ou seja, crianças e adolescentes que supostamente resistiram à ação policial e foram mortos. O número pode ser até muito mais elevado que o oficial, já que a polícia não sabe determinar a idade de grande parte das vítimas. Também salta aos olhos a frequência relativamente baixa de vítimas policiais em relação à de criminosos ou suspeitos, se considerarmos a dinâmica de confronto com criminosos fortemente armados. Não há como não estranhar o resultado dessa comparação: no ano de 2008, por exemplo, houve 1.137 vítimas civis de “autos de resistência”, para 26 policiais mortos no estado. Isto significa que, para cada policial, 43,7 civis acabaram mortos. A versão oficial é de que as vítimas resistiram e colocaram em risco a vida de policiais que pretendiam prendê-las em nome da lei. 
    A frequência dos “autos de resistência” começa a cair a partir de 2008, em parte pela implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), pelo enfraquecimento de grupos que dominam a venda de drogas em favelas e pela diminuição dos confrontos armados entre traficantes e policiais. No entanto, é preciso considerar o número de mortes de supostos criminosos que foram atribuídas à atividade de milícias ilegais, formadas por policiais e outros agentes de segurança. Esses homicídios mantêm-se em alta na zona oeste da capital, substituindo ilegalmente os “autos de resistência” e contrabalançando sua queda. O aumento continuado dos registros policiais de “pessoas desaparecidas” no mesmo período pode também ocultar um percentual de vítimas de execução, o que está a exigir uma investigação isenta de todos os casos de pessoas que não reapareceram. 
    Na região metropolitana, os autos de resistência são muito mais frequentes nos bairros mais pobres e distantes do centro. E quando esses casos chegam à justiça criminal, o número de inquéritos arquivados por “exclusão de ilicitude”, a partir de 2005, alcança a cifra de 99,2%.
    O procedimento administrativo chamado “auto de resistência” foi criado em 1969 pela Superintendência da Polícia do então Estado da Guanabara. Utilizou-se, como base legal, o artigo 292 do Código de Processo Penal (1941), que autoriza o uso de meios necessários para “defender-se ou para vencer a resistência” à prisão em flagrante. Com a instituição do auto de resistência, dispensava-se a necessidade de prisão em flagrante dos policiais ou mesmo de abertura de inquérito sobre o caso. A criação desse procedimento coincide com a entrada da Polícia Militar, antes uma força auxiliar aquartelada, no policiamento ostensivo e cotidiano da cidade, em substituição à antiga guarda civil.
    No Registro de Ocorrência, no item denominado “Envolvidos”, são listadas todas as pessoas que participaram do episódio, como autores, testemunhas e vítimas. Em geral, as testemunhas dos autos de resistência tendem a ser apenas os próprios policiais envolvidos no homicídio. Caso sejam incluídos os crimes imputados ao morto, este aparecerá tanto como “vítima” (do homicídio proveniente de auto de resistência) quanto como “autor” (dos demais crimes, como roubo, resistência ou tentativa de homicídio contra os policiais). Os policiais também podem aparecer como “vítimas” de tentativa de homicídio. Esta formalização da culpabilidade das pessoas mortas é o primeiro passo do processo – quase sistêmico – de incriminação das vítimas, dando início à narrativa que justifica o seu óbito.
    Os policiais envolvidos também fornecem seus Termos de Declaração. Os depoimentos costumam ser praticamente idênticos, indicando terem sido copiados entre si, alterando-se apenas os nomes dos autores e suas participações específicas. Os textos produzidos nos “termos” não são uma transcrição fiel das palavras usadas pelos PMs: resultam de uma negociação e de uma mistura do que foi dito por eles e do que o policial civil considera pertinente incluir no documento. Compõem uma espécie de narrativa-padrão, que visa legitimar a ação policial em legítima defesa: a declaração do policial militar passa a ser uma versão formulada pela Polícia Civil, ganhando o status de “fato”.
    No contexto carioca, em que grupos de traficantes armados dominam territórios de moradias de baixa renda, a troca de tiros entre bandidos e policiais é interpretada pelos atores institucionais como uma situação rotineira que permeia o cotidiano do trabalho policial. Na maioria dos casos, os Termos de Declaração afirmam que os agentes de segurança estavam em patrulhamento de rotina ou em operação, perto ou em localidade dominada por grupos armados de traficantes, quando foram alvejados por tiros e, então, revidaram à “injusta agressão”. Após cessarem os disparos, teriam encontrado um ou mais “elementos” baleados no chão, geralmente com armas e drogas por perto, conduzindo-os imediatamente ao hospital. Em quase todos os autos de resistência é relatado que as vítimas morreram no caminho para a unidade de saúde, o que reforçaria a legalidade das condutas do agente do estado. No entanto, ao desfazer a cena do crime, o “socorro” às vítimas na prática impede a perícia local.
    Na narrativa-padrão, a vítima é descrita com os termos “elemento”, “opositor”, “facínora” ou “meliante”, o que coopera para a sua classificação como criminoso, mesmo antes de se buscarem seus antecedentes ou de se apurarem as circunstâncias de sua morte. Como se baseia na “fé pública” depositada nos policiais enquanto servidores do estado, o Termo é considerado uma “evidência” testemunhal que permite formular a primeira explicação oficial sobre o que teria acontecido. 
    Assim que toma conhecimento de ocorrências de morte não natural, o delegado instaura um inquérito, que resume o caso com base nas informações contidas no Registro de Ocorrência e enumera as diligências a serem realizadas para a apuração dos fatos. Nas ocorrências de auto de resistência, a narrativa dos inquéritos já parte do pressuposto da legítima defesa, ou seja, de uma versão que esclarece as circunstâncias da morte.
    Nos casos em que outras testemunhas, além dos policiais, prestam depoimentos na delegacia, as perguntas que lhes são dirigidas costumam centrar-se na caracterização moral da vítima, com o objetivo de saber se ele usava ou não drogas, se trabalhava ou estudava e, principalmente, se era ou não “bandido”. Como os parentes da vítima normalmente não presenciaram os fatos, tendem a informar somente sobre o seu comportamento e “caráter” em vida, como o envolvimento ou não com o uso de drogas ou o tráfico. Dificilmente esses depoimentos são usados para buscar outras testemunhas que possam ter presenciado os fatos. Caso o depoente afirme que o morto tinha conduta suspeita ou criminosa, isto endossa a argumentação oficial de que houve legítima defesa.
    É comum entre policiais civis e militares a visão de que bandidos “merecem morrer” e de que a ação letal da polícia é justificável se o morto tiver tido, em algum momento de sua vida, envolvimento com práticas criminosas. Apesar de se conhecer a autoria do crime, não há indiciamento nem prisão em flagrante do autor, pois parte-se do princípio de que ele atuou legalmente, evitando-se, assim, possíveis sanções disciplinares. Até porque um indiciamento o impediria de obter promoções em sua carreira durante o andamento do inquérito, que pode se arrastar por mais de cinco anos, além de constar em sua folha de antecedentes criminais.
    Há um senso comum generalizado, não apenas entre policiais, mas entre atores das demais instituições da Justiça Criminal e na opinião pública como um todo, de que matar um criminoso não constitui crime. A crença na impunidade vinculada ao fantasma da violência urbana e ao descrédito na capacidade punitiva do estado fundamenta o apoio de significativa parcela da população à prática do extermínio de criminosos, expresso no lema “bandido bom é bandido morto”. O estereótipo deste sujeito seria o “bandido pobre”, envolvido com o comércio ilegal de drogas em áreas pobres. Até mesmo os movimentos sociais que pressionam pela incriminação de policiais em casos de “autos de resistência” costumam atuar apenas em relação às vítimas consideradas inocentes.
    Para além de um imperativo moral, “matar bandido” aparece como uma obrigação funcional do agente de segurança pública enquanto “cidadão cumpridor de suas atribuições”, operando certa manutenção de posições de poder. Nos inquéritos dos autos de resistência, a folha de antecedentes criminais do morto é sempre solicitada, mas não a do policial. Interessa mais saber sobre o passado da vítima do que ter acesso à vida pregressa do autor do fato ou à quantidade de homicídios que ele já cometeu em serviço.
    Ao longo de sua circulação entre a delegacia e o Ministério Público, o inquérito desses casos geralmente não é visto como prioridade, por envolverem, em sua maioria, pessoas de baixa renda, moradoras de favelas e, sobretudo, por terem como autores policiais militares ou civis que trabalham na área, com quem os investigadores não desejam se indispor. 
    Dentre os poucos laudos periciais presentes nesses inquéritos, estão aqueles que versam sobre o material apreendido com o morto, como armas, munições e drogas. Diversos policiais e promotores comentam que estes objetos podem ser falsamente arrecadados por policiais para se forjar um auto de resistência, constituindo um conjunto apelidado de “kit bandido”. Ele é composto principalmente pela “vela”, arma supostamente “plantada” junto ao cadáver. A existência do objeto em posse da vítima configura grande indício de que houve resistência, mesmo que não se comprove disparo.
    Os escassos elementos probatórios reunidos nos “autos” são listados e referenciados ao longo de uma narrativa que encerra o trabalho de investigação da polícia, no chamado Relatório Final de Inquérito, redigido por um delegado. Nesta conclusão, quase invariavelmente fica provada a legalidade da conduta policial, que teria agido em legítima defesa. 
    O arquivamento é a tendência natural nos casos de auto de resistência, e a homologação final da legitimidade da morte. Confirma que a versão policial é a verdadeira: sua narrativa ganha, enfim, o status de “verdade jurídica”. Diante disso, os agentes de segurança pública não são considerados autores de um crime. Já a vítima, esta sim, é cristalizada como responsável por uma resistência que levou o policial a matá-la. Materializado nos volumes do inquérito, o morto terá, nesse processo, o mesmo destino de outros milhares de indivíduos arrebatados pela polícia: uma caixa engavetada no arquivo do Estado.
    Michel Misse é coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carolina C. GrilloCesar P. Teixeira e Natasha Néri são pesquisadores associados do NECVU-UFRJ. Todos são autores de Quando a Polícia Mata. Homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011), (Booklink/CNPq/NECVU-UFRJ, 2013).
    Saiba Mais
    MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo. Estudos de sociologia do crime e da violência urbana. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.
    VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da Lei. Uma prática ideológica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Aldebarã, 1996.
    ZACCONE, Orlando. Indignos da Vida. A desconstrução do Poder Punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2015.

Fonte da matéria: http://www.revistadehistoria.com.br/