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sábado, 29 de novembro de 2014

Cangaceira Dadá: A Suçuarana do Sertão.

 
 
Postado pelo confrade Antônio Correia Sobrinho em página do Facebook do Grupo de Amigos LAMPIÃO, CANGAÇO e NORDESTE
 
JORNAL “O GLOBO” – 10/06/1973
COMADRE DADÁ, ANJO DE CORISCO, O CANGACEIRO

Uma entrevista exclusiva de D. Sérgia da Silva, a Dadá, que foi raptada pelo cangaceiro Corisco, perdeu uma perna em 1940, no último combate contra as forças legais, e hoje enfrenta diariamente a máquina de costura, para sustentar 16 netos.
DEPOIMENTO
D. SÉRGIA DA SILVA...
Corisco dividia os homens disponíveis com Lampião. Às vezes, segundo Dadá, passava até oito meses com Lampião, mas normalmente se separavam depois de dois ou três meses. Dadá lembra que, às vezes, chegavam a trocar tiros quando vinham no mato, e ambos pensavam que se tratasse de uma volante.
“Quando não tinha tiro, tinha alegria”.
Assim é que Dadá lembra de sua vida em bando.
- Ah, era tudo de bom. Os coiteiros eram quem trazia as cargas. No tempo de briga tudo era mais racionado, mas quando tinha uma calmazinha, a coisa era bacana. Dinheiro não faltava, era aos montes, era o que mais se tinha. A gente recebia de um tudo. Dizem que eu tenho medo de delatar quem dava armas. Eu sempre digo a quem me pergunta, que não conhecia. Para que me pergunta? A gente não come para quebrar os pratos. A gente come pra lavar os pratos, pra quando precisar. E é mesmo, eu gosto sempre de ter um pouco de reserva com as coisas.
Nos tempos da “calmazinha”, a vida do bando era para descansar e para a diversão. Os homens limpavam a capoeira e colocavam seus cachorros para brigar. A briga de cachorros era importante, cada qual queria ter o melhor animal e alguns deles ficaram famosos. Havia também a “luta de peito”, entre os homens. Os mais fracos eram eliminados até ficar apenas um, o mais forte e mais hábil. Os animais, nos tempos de paz, ocupavam quase todo o tempo dos homens e mulheres. Havia corrida, disputas levadas a sério, principalmente por Maria Bonita, que tinha um burro chamado “velocípede”, considerado invencível pelo bando. Cada animal tinha um nome e uma sela ornamentada especialmente com tirinhas de couro e desenhos que ficaram conhecidos como símbolos do cangaço como: A burra do Zé Baiano era “Brinquedinho”, a de Lampião era “Simpatia”. “Fagueiro”, era o nome do burro de Corisco.
Noite de lua, em tempo de paz, os homens se reuniam para contar seus casos. Alguns tocavam viola, outros tocavam gaita. Corisco era bom na sua flauta amarela e preta, que Dadá guarda até hoje, dentre as poucas coisas que lhe restaram do cangaço.
- Mas em tempo de persiga a vida não era fácil. Muitas vezes, a gente encontrava o bornal e o fuzil encostados no canto. Muita gente via que não era fácil, que era vida pra homem macho e debandava. A entrada de um recruta no bando era sempre a mesma coisa: Ah... O senhor sabe, eu queria seguir com o bando... ficar com vocês... E o chefe do grupo perguntava: você é homem mesmo? E acabavam combinando. Nos primeiros dias, dois homens cuidavam do recruta, observavam suas atitudes, sua esperteza e seu traquejo com uma arma que lhe davam, geralmente não muito boa. Somente quando o homem provava que dava para aquela vida lhe entregavam um fuzil.
Embora nunca tivessem brigado, Maria e Dadá parece que tinham certa rivalidade. Maria de Déia, como era conhecida, no grupo, era a Primeira Dama do cangaço e não abria mão do privilégio. Para Dadá, Maria não era bonita e o apelido somente apareceu depois da sua morte em Angicos, em 38, quando morreu também Lampião, vítima de uma emboscada de uma volante.
- Maria era como uma criança mimada. Era enjoadinha e encrenqueira. Se Maria tivesse dando sotaque de manhã, Corisco viajava de tarde. Com Lampião, ela fazia ele de peteca. Só faltava dar nele, mas homem disposto não briga com mulher. Quando Maria estava muito levada, Lampião ria e dizia: “... Ave Maria, hoje ela tá danada, não tem quem possa. Junta ela e Guarani (o cachorro) pra me atazanar. Mas no dia que era ele que estava zangado, ninguém brincava, Maria ficava quieta.
Pelo que conta Dadá, Maria Bonita, se não fosse bela, pelo menos era faceira e viva. E sabia aproveitar-se dessa condição entre as outras mulheres. Montava em sua burra enfeitada, fogosa, e dizia pra todos bem alto: “Olha a mulher do Capitão. Olha os ouros da mulher do Capitão, olha os vestidos”. Um dia Maria perdeu uma corrida com sua burra e quis sacrificar imediatamente o animal, o que não fez devido a interferência de Lampião, que sabia acalmar o gênio explosivo da mulher.
Dadá era diferente. Era mais madura e contava muito com a confiança do Capitão. Era desconfiada, não deixava o marido “fazer tratos à toa”. Ou ia na frente de Corisco ou ao pé dele.
- Eu queria estar junto dele, tinha medo de uma emboscada, que atirassem nele.
Logo Dadá aprendeu a lidar com arma e a conhecê-las muito bem.
- A primeira arma que tive era toda enfeitada, bonequinha. Pistolinha bacana, revolverzinho enfeitado. Quando a coisa engrossou, passei a pegar no fuzil e parabelo. Quando era tempo de verão, era duro. A “macacada” tomava conta dos bebedouros. Tem coisas que eu vivi que nem sei contar. Eu nem sei como passei por tudo isso.
Talvez, se tivesse tido chance de ficar com os filhos, teria sido tão boa como mãe como o é como avó, que sempre cuida da compra dos livros, ou da saúde dos netos. Quando um adoece de uma coisa, outro tem uma dor de ouvido, ou uma gripe.
A vida de cangaço não permitiu a Dadá ser mãe. Outros cuidaram dos seus filhos; teve sete, mas somente três estão vivos, Maria Celeste, com doze filhos, Maria do Carmo, com quatro, e Silvio Bulhões, que é economista, “mas que não liga para mim”, com seis filhos.
O primeiro filho de Dadá nasceu em 1º de maio de 1933, mas devido à dureza da vida levada por sua mãe, não resistiu.
- O menino mais velho, Josafá, ficou cheio de espinho, magrinho e morreu. Fiquei com ele três meses, mas o tempo era quente, tinha muita poeira, bagaço e espinho. E o meu medo era deixar um filho meu abandonado na hora de um ataque das volantes. Eu tinha meus filhos e não podia carregar. Aquele agreste não era lugar pra anjo. Quando eu tinha menino, eu ficava ali por perto. Quando o menino caía o umbigo, eu entregava a uma pessoa de responsabilidade. Maria Celeste eu entreguei ao Major Medeiros. Maria de Lurdes ficou com o Padre Soares, mas morreu pequena, e Silvio, com três meses de grávida, o Padre Bulhões me pediu a criança. Meus filhos não morreram assassinados, mas quando um menino cangaceiro ia para a cidade contratavam e quando vinha a medicação da farmácia trocavam por veneno. Nunca pude olhar pelos meus filhos. Somente quando acabou a perseguição pude me encontrar com eles. Mas nada tive para dar. Nós compramos muitas coisas, mas quando sabia que era de Corisco, tomavam. Se soubessem que a gente tinha se encontrado com alguém, tomavam do pobre até a camisa.
Por tudo isso, Dadá e Corisco sempre viveram com bando, mas sem filhos. Como marido e mulher, não tinham problemas. Havia muito respeito. Corisco somente se zangava quando a mulher começava a xingar. Ele detestava nomes feios. Quando Dadá dizia “peste”, ele imediatamente advertia:
- E a camisa que tu veste. Como tu pode andar com esses nomes na boca?
Para muitos autores que escreveram sobre o assunto, a morte de Lampião, em Angicos, em 1938, com Maria Bonita “foi passado o atestado de óbito do cangaço no Brasil”. Dadá, em sua simplicidade, explica a situação em que ficou o cangaço, com a morte do chefe.
Quando o compadre Lampião morreu, o mundo acabou. Ninguém podia substituir, ele veio para aquilo mesmo. Uma só palavra bastava. Um “não” bastava. Era um exemplo do mundo, apesar de feio, alto e magrinho. Ele tinha uma força diferente dentro dele, quando zangado dizia nomes que nem se sabia o que era. O sol quente, ele com sede, dava nomes que a terra parecia que ia pegar fogo. Com a morte dele todo mundo começou a se entregar, sem combinar nada. Nos primeiros acordos eu fui contra. Eu disse a Corisco: “Se você quiser se entregar, se entregue. Eu não vou. Eu ouvi dizer que pegam os cangaceiros e matam. As mulheres, eles cortam os pescoços, como fizeram com Maria, mas não proíbo que você se entregue, se você quiser ir, e, se caso vencer na vida, me chame depois que eu vou”.
Corisco preferiu ficar com a opinião da mulher. Diziam que ela o governava. Ela desmente, mas concorda que “quando pegava numa ideia, ele me ouvia muito”.
Numa reunião melancólica e triste, Corisco falou para seus homens que poderiam ir embora, entregar-se, tomar qualquer destino. Quem ficou com medo, entregou suas armas ao chefe, e abandonou o grupo. Corisco seguiu o seu caminho, agora irreversível, já que vários tinham depositado confiança nele.
Segundo Dadá, o maior desejo de Corisco era abandonar aquela vida. Uma vez pediu permissão a Lampião para abandonar o cangaço. Chegou a ir para Sergipe, sua terra, para viver como lavrador, ao lado de Dadá, sonhando criar filhos, umas duas cabeças de gado para o futuro dos meninos e esquecer os tiros, os sobressaltos, as fugas. Não passou de sonho. Foi reconhecido e forçado novamente a se unir a Lampião. Tinha que se conformar, “não podia beber de qualquer água”.
Em 39, de maio para junho, viveu seu penúltimo combate, seguido por oito homens e sua mulher Dadá, “que valia por dez”.
- Tudo que ia se dar com a gente eu via. Eu tinha visões, via passar pernas, via assim aquela fileira passando, me assustava. Comecei a temer porque se eu tivesse um sonho hoje podia preparar que tinha de ser aquilo. A gente tava viajando para Sergipe, para pegar um gado que Corisco queria dar para uma menina nossa. Mas essa viagem foi a maior atrapalhada. Um dia acordei assustada com as visões e disse: não fico mais aqui. Empaquei nisso. E tinha razão. Tinha oito dias que nós estávamos ali descobertos. Um rapaz que estava com a gente bebeu demais e disse numa venda que estava com Corisco. Um soldado que trabalhava na rodagem foi a Jeremoabo e contou onde estava Corisco e começou a perseguição. Nós saímos numa segunda-feira, uma hora da tarde, às sete da noite, a roça estava cercada de volantes.
Durante toda a viagem para buscar o gado em Sergipe, aconteceram coisas estranhas. Andavam, andavam, andavam, e, quando reparavam, tinham andado em círculos. Quando iam passando pela terceira vez, pelo mesmo riacho, pulou um sapo amarelo pintado de preto, pulando “na nossa frente”. Dadá advertiu: “Olha aí”. Corisco ficou com raiva e esmagou o sapo com a coronha do fuzil. Depois todos se sentiram tranquilos, menos Dadá. Se já era cuidadosa, passou a observar ainda mais cada movimento no mato. Cuidava mesmo assim de tudo, principalmente de um menino de 14 anos, chamado Roxinho, que fazia parte do grupo e a quem dera um fuzil, forrara o cantil como só ela sabia fazer e confeccionou com carinho cada peva de seus arreios; eram oito pessoas, ao todo.
- Quando a gente ia atravessando uma catingueira, eu ouvi aquela rajada e não vi mais ninguém por causa daquela poeira levantada pelos tiros. Depois vi Corisco atirando e me acenando com a mão, me chamando para junto dele. Quando a “macacada” ouviu ele me chamar de Dadá começou a gritar também pelo meu nome. Já estava Guerreiro baleado, levantando e caindo e me chamando. Como eu não tinha mais bala no parabelo e era impossível botar balas no pente, eu me abaixava e metia pedra na cara dos “macacos”. Roxinho foi baleado e quando cheguei junto de Corisco, ele disse: “Dadá, olha pra aqui. A mão estava dependurada, presa nos nervos, depois que uma bala varou também o ombro. Com um lenço, enrolei o braço dele e disse: Vombora. Seguimos pela camaratuba, um mato mole, deixando aquele rastro mole no chão. Corisco ia pendendo para frente, perdendo as forças e eu gritando: “vombora, vombora, vamos morrer andando”.
A fuga de Corisco e Dadá, em sua penúltima batalha, durou três dias e três noites de insônia, fome e sede, andando pela dourada, “um mato verde que ninguém esconde rastro”. Depois tiveram que atravessar a macambira, espinhos, “e tudo o mais”. Para alcançar um lugar seguro, como as alpercatas de Corisco eram muito pesadas, Dadá calçou as suas no marido, rasgou o vestido e enrolou nos pés.
- Que tem de morrer para o ano, não morre este não.
Mais uma vez, durante a marcha, encontraram “macacos”, trocaram tiros e conseguiram escapar. Quando atravessavam uma várzea surgiu um soldado. Dadá conta que ainda teve tempo de apanhar o seu fuzil, que estava pendurado no ombro de Corisco, e atirar primeiro. Quando tentou subir uma ribanceira para ver se ainda havia mais “macacos” por perto, deram “mais uma rajada de tiros tão grande que arrancaram o barranco de terra do tamanho de uma mesa. Me levantei com aquele bolo nas costas, os olhos cheios de terra e corri arrastando o fuzil”.
Ao fim da fuga, dos homens que estavam com Corisco sobrou apenas um, “Caixa de Fósforo”. Dadá mandou que ele fosse conseguir água, comida, roupa, qualquer coisa numa fazenda próxima, mas não confiou e continuou arrastando Corisco com medo de Caixa de Fósforo voltar com os “macacos”.
“O cabra de Corisco voltou sozinho, mas, um dia depois, disse que tinha se perdido; mentira, não resistiu e dormiu”.
Talvez Corisco só tenha saído com vida desse combate porque os três encontraram uma “farmácia”, um pote grande enterrado por coiteiros numa roça. Finalmente Dadá pôde olhar o ferimento do marido e passar outro medicamento, além de raspa de quixabeira, uma planta do sertão que dá umas frutinhas negras.
- Botei cachaça em cima e deixei. Quando rasguei o paletó com o canivete, estavam aquelas placas pretas enormes. Eu carregava uma binga cheia de fumo. Destampei e botei fumo em cima das placas. O homem estava com aflição de dor, mas depois disso desceu aquele suor e ele disse que passou toda a dor. Quando ele arriou o braço, desceu aquela água preta, bicho assim. Rasguei toda a roupa dele de faca para curar a ferida.
Passaram-se três meses e dezenove dias para Corisco ficar bom. Dadá lhe tirou o ferimento com farinha, cebola, lavava tudo com raspa de aroeira, deixava de molho com emplastro e no outro dia lavava tudo de novo. Para chegar um curativo levava dois dias e duas noites. Caixa de Fósforo viajava, aproveitando a noite e trazia algum medicamento. Mas como o cotovelo continuava inchado, Dadá abriu com um canivete. Mas, com todo cuidado de mulher enfermeira, cozinheira, parteira, anjo, Dadá não devolveu à mão de Corisco os movimentos. Ele, o Diabo Louro, escondia a mão para não verem que estava aleijado. Portava arma, mas tinha que confiar na mira de Dadá, porque não podia apertar o gatilho.
- Eu tive um sonho. Nós estávamos ali e passava uma rede de defunto assim, pelo alto do céu, coberta de urubus. E eu dizia: “tá vendo, Corisco, ali é Zé Baiano que já mataram, vamos embora.
Se todos os sonhos de Dadá eram uma previsão segura, quando ela acordou de manhã e contou o seu sonho a Corisco, estava contando também o fim do cangaço, se é que se pode falar na existência de apenas um cangaceiro, mesmo assim com a mão inutilizada, oito meses antes.
Dadá mais uma vez acreditou nos seus sonhos e chamou o marido, que tinha parado na Barra do Mendes, apenas para fazer companhia a um homem que tinha perdido a sua mulher. Dadá estava fazendo as roupas de luto do viúvo, mas estava disposta a deixar a linha preta, a tesoura e a agulha para seguir seu caminho errante com o marido, a quem protegia como um guarda-costas. Aquele homem com quem se casaria um dia em Porto da Folha, Sergipe, com um padre rezando o Ofício, “morrendo de medo”, era o ser mais valioso para ela. Defendera-o dos ataques das meninas mais novas, atraídas por seus longos cabelos amarelos e bigodes tratados e fazia o mesmo agora, contra o Zé Rufino que o caçava. Por isso Dadá insistia em deixar aquela Fazenda e seguir viagem. Corisco disse que tinha mandado um rapaz no povoado fazer umas compras e, tão logo chegasse, reiniciariam a viagem, como sempre sem destino certo. Mas quando o rapaz voltou da venda, a força policial tinha chegado primeiro.
Eram dezoito homens e meteram fogo em tudo. Atiraram em Corisco e quando eu pulei uma cerca, não achei o pé. Só ficou pegado com um nervo. Eu dizia: corte isso, me dê a faca que eu corto, mas eles não atendiam. Veio um soldado para cá: acaba de matar essa... E eu disse, me dá esse fuzil e me chama de novo desse nome sujeito amarelo, magro, desgraçado. Eu cortava ele pelo meio...
Foram colocados em um caminhão e seguiram acompanhados pelos soldados, que iam cantando o tempo inteiro da viagem. Corisco agonizava e morreu doze horas depois de baleado. Dadá chamou Zé Rufino, comandante da força policial e pediu que mandasse os soldados pararem de cantar. Antes de morrer, quiseram dar água a Corisco, mas ele não aceitou. “O que tiveram de fazer por mim, façam por Dadá”. Sempre que tinha forças para falar perguntava se a companheira ainda esta viva. Trinta anos depois da morte de Corisco, Zé Rufino, sentindo que estava muito doente, mandou chamar Dadá para lhe pedir perdão. Agarrou-se em suas mãos e, cheio de arrependimento, ouviu o perdão de Dadá, que só fez questão de lembrar que Corisco não tinha morrido em combate, mas desarmado, porque não podia sequer pegar numa colher.
- Não concordo com o procedimento dos autores. Trocam tudo. Mentem. Dizem coisas que não aconteceram, inventam. Minha revolta é contra o filme de Glauber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Ele foi errado em não combinar comigo. Diz que é assunto público. Mentira. Não pode ser. Eu existo. Estou viva. E não tem nada de cangaço ali. O que o filme tem é uma bandalheira, sujeira, povo sujo enrolado com uns molambos nos pés. Corisco, um homem bacana daquele (mostra fotografia do marido, com toda a sua bolsa, os braços arqueados de tanto equipamento). O filme mostra Corisco dando um tapa em mim – isso é o que mais me revolta. Ora, eu, hoje, uma pessoa me gritando eu não gosto, quanto mais pra me dizer que vai me dar um tapa. Nem Corisco. Todo mundo ali me respeitava. Até hoje, quando encontro os sobreviventes, eles me abraçam e começam a chorar.
O filme “Corisco, Diabo Louro” foi o que lhe rendeu algum dinheiro, além de uma estada de três meses em São Paulo. Mesmo assim, prometeram uma avant-première em seu favor, que nunca houve.
Dadá se queixa da moça que se apresentou em um programa de televisão, respondendo sobre o cangaço e que vem explorando o seu nome constantemente. Chega em muitas cidades para lançar seu livro e fazer conferências, prometendo a presença de Dadá. Depois, inventa uma desculpa qualquer.
Dadá se aborrece na hora. Depois esquece tudo, envolvida pelos 16 netos que sustenta. Agora tem uma grande esperança. Está fazendo artesanato. Belas bolsas enfeitadas como as dos cangaceiros, bordadas com linhas coloridas. Pretende vender, e com o dinheiro, se tudo der certo, comprar uma casinha longe da Rua dos Perdões, onde o ruído dos automóveis e caminhões lhe tiraram o direito à paz que não encontrou desde que veio para Salvador, em 1940. Porque os soldados achavam que todos os que morreram com balas de arma curta foram baleados pela mulher de Corisco.
Até mesmo para ela, tudo mais parece uma fábula desde que aquele homem magro de bigode e cabelo amarelo a montou na garupa do seu burro e andou doze anos pela caatinga. Somente os 33 anos que a separam daquela vida deixa o cangaço distante. Tão distante como aquele homem de pouca conversa, boca pequena, que gostava de rezar, e que quando entrou no cangaço o cabra Jararaca disse: “Deixa que eu tomo conta deste. O apelido dele é Corisco.”

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Lampião seria eleito Governador do Sertão?

                                                                                 Pancho Villa                            Lampião
A história nos mostra tantas estórias de pessoas destemidas e violentas que ao entrarem na política, tornaram-se ídolos para os pobres. Por exemplo, Francisco (Pacho) Villa foi fugitivo da justiça, por mais da metade de sua vida, ladrão de estradas e de gado. Uma pessoa que mal sabia ler e escrever, mas que tornou-se governador de Chihuahua, no México, fundou mais 50 escolas para os filhos dos mexicanos pobres e tornou-se querido pelos campesinos. Através de seus roubos criou uma grande rede de contrabando a serviço de uma revolução. Era um homem tão odiado que o mataram com mais de 150 tiros.
 
                          Pancho Villa e seus sequazes
A realidade mexicana é diferente da brasileira, apesar de também termos origens europeia, indígenas e africanas, a proporcionalidade dos povos difere bastante. O México é mais indígena do que o Brasil, que é mais negro.
 
                                                        
Este fato se reflete na resistência dos dois povos, no sul do México o exército camponês, liderado por Emiliano Zapata, combateu a expropriação das terras comunais, herança dos povos indígenas. No Brasil a existência deste tipo de terras não é comum, pois sempre teve 'dono' se bem que arrendassem aos lavradores pobres em sistemas de cotas.
 
Outra dificuldade de compreensão é a própria heterogeneidade da realidade mexicana, enquanto no sul os camponeses lutaram para garantir a posse de suas terras coletivas, no norte a luta esteve centrada na reforma agrária e na divisão dos latifúndios para os trabalhadores. Além das diferenças regionais, saltam aos olhos as relações estabelecidas entre as forças políticas no contexto da Revolução.
 
LAMPIÃO E SEUS CANGACEIROS
 

No caso de Lampião, ele não tinha motivação política para combater as forças públicas representadas pela Polícia Militar. Mas Getúlio Vargas, um caudilho acostumado na lida com o povo, sabia que isso poderia descambar para um movimento de massas, que seria quase impossível ser combatida, pois as estratégias dos cangaceiros fundava-se na luta de guerrilhas, atacando onde não esperavam e o aprendizado da derrota do ataque cangaceiro à cidade de Mossoró no Rio Grande do Norte, seria visto como "lição aprendida".

 O governo Getulista não poderia se dar ao luxo de aceitar com tranquilidade esse movimento pois governos passados já tinham como "lição aprendida" o ataque a Canudos, onde foi preciso desprender maior contingente e força. Vejamos que os fanáticos de Antônio Conselheiro não tinham esse poderio bélico todo, assim como Lampião e seus cangaceiros, que possuíam armas mais modernas da época e sua munição era sempre nova.

Estava se tornando perigoso, pois Lampião cada vez mais se aproximava da política e mesmo sendo contestado pelos comandantes das principais forças dos estados, poderia iniciar um movimento de contestação maior, onde envolvesse a luta campesina de reforma agrária. Próximo a Lampião, já tinha pessoas esclarecidas, como o Mascate Líbio Benjamim Abraão, que bem poderia abrir os olhos mais ainda de Lampião para a política. O próprio Lampião já se arvorava em Governador do Sertão. Só estava faltando sua formação política e isso poderia se dá se não tivesse sido morto no sertão sergipano.



















O Cordel de João Firmino Cabral


 
João Firmino Cabral que era membro da Academia Brasileira da Literatura de Cordel, era cordelista há mais de 50 anos e fez mais de 200 publicações. Suas obras podem ser encontradas em Aracaju e também na França e Portugal.
João Firmino Cabral nasceu em 1° de janeiro de 1940, na cidade sergipana de Itabaiana. Filho de Pedro Firmino Cabral (cantador de feira e embolador) e Cecília da Conceição (roceira).
Agricultor desde menino, começou já na juventude a demonstrar interesse pelas letras: comprava então folhetos de Literatura de Cordel, que usava como cartilha, pois com eles aprendeu a ler.
Aos 17 anos, com o auxílio do seu mestre, o poeta Manoel D'Almeida Filho, descobriu sua vocação poética e escreveu seu primeiro folheto, uma Profecia do Padre Cícero. Daí por diante, não lhe faltou mais inspiração e todas as obras de sua autoria são bem aceitas pelo povo.
Em Aracaju, viveu exclusivamente da Literatura de Cordel, e manteve a única banca fixa de folhetos cordelianos de Sergipe, localizada na Passarela das Flores do Mercado Antônio Franco, onde freqüentemente recebeu com carinho poetas sergipanos e de outros Estados, como também estudantes, professores, pesquisadores e turistas do Brasil e do mundo.
Escreveu diversos folhetos educativos a pedido de escolas e entidades públicas e privadas. Fez palestras em diversas instituições de ensino. Em 2002, foi agraciado com a medalha do Mérito Cultural Serigy, concedida pela Prefeitura Municipal de Aracaju. Em 2003, foi escolhido como patrono da 1ª Cordelteca do Brasil, que funciona na Biblioteca Pública Municipal Clodomir Silva, em Aracaju.
Academia Brasileira de Literatura de Cordel é a entidade literária máxima a reunir, no Brasil, os expoentes deste gênero literário típico da Região Nordeste do país, com sede no Rio de Janeiro, e fundada a 7 de setembro de 1988.
Em 2008 tomou posse na ABLC, na cadeira 36, cujo patrono é Adelmar Tavares da Silva Cavalcanti (Recife, 16 de fevereiro de 1888 — Rio de Janeiro, 20 de junho de 1963) foi um advogado, professor, jurista, magistrado e poeta brasileiro. Ocupou a cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de março de 1926.
 
Uma das obras principais dele é “ Lampião: Herói ou Bandido?”, que conta a história do líder dos cangaceiros, que era considerado como um herói e bandido ao mesmo tempo. Firmino conta esse caso de uma forma muito engraçada. Abaixo uma 'palinha' do cordel.
 Lampião: Herói ou Bandido?
 
Todo mundo já ouviu
Falar sobre Lampião,
O famoso cangaceiro
Corajoso e valentão
Que na região nordeste,
Assombrou todo o sertão.
Escritores e poetas,
Do Brasil ao estrangeiro,
Já escreveram e versaram
Livros desse cangaceiro,
Que conviveu no Sertão
Do nordeste brasileiro.
Sei que foi em Pernambuco,
Nas margens do Pajeú,
Na pequena Vila Bela,
Lugar de peba e tatu,
Onde tem cabra que pega
Cascavel e come cru
Filho de José Ferreira
Um pequeno agricultor
E dona Maria Lopes,
Mulher de honra e pudor,
Um casal muito feliz,
Honesto e trabalhador…
João Firmino Cabral morreu em 1 de fevereiro de 2013, em Aracaju.
 
 
 
 
 
 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Criminosos célebres: LUCAS DA FEIRA

Em "Festas Populares do Brasil" de Alexandre José de Melo Moraes Filho, poeta, prosador e historiógrafo, recebeu o título Magnum opus  nessa obra e em mais duas Cancioneiro dos ciganos e Os ciganos no Brasil, pode ser encontrado e copiado, no site do Senado Federal através de seu Conselho Editorial, que no ano de 2002 dispôs a publicação em Adobe Acrobat (PDF) com 384 páginas onde na página 310 encontramos esse valioso relato a respeito do famigerado bandido que assolou o recôncavo baiano.
 
O artigo Lucas da Feira foi escrito pelo médico e historiador baiano, Alexandre José de Melo Moraes Filho (1844-1919), onde foi contemplado no livro "Festas e Tradições Populares do Brasil", prefaciado por Sílvio Romero (1851-1914) e publicado em 1901.

O autor, Alexandre José Melo Moraes Filho nasceu no dia 23 de fevereiro de 1844, na cidade de São Salvador, capital baiana,  onde efetuou seus estudos preliminares. Mudou-se para o Rio de Janeiro e matriculou-se no Seminário Católico de São José, pensando quando jovem, adentrar à vida eclesiástica.

Voltando à terra natal, em 1867, quando desistiu de ser padre mas  por motivos particulares voltando novamente ao Rio de Janeiro, indo morar numa república de estudantes. Eram tempos difíceis onde à época outros jovens desenvolviam jornalismo e literatura, e entre eles, Castro Alves.

Recebeu um convite para dirigir O Eco Americano, periódico ilustrado, editado em Londres. Na Bélgica, fez o curso médico e ao retornar ao Brasil, dedicou-se ao jornalismo.

Publicou: Cantos do Equador; Ciganos no Brasil; Curso de Literatura Brasileira; Festas Populares do Brasil; Cancioneiro dos ciganos; Paraíso Brasileiro; Fatos e Memórias; Cantares; Saraus e Serenatas; Artistas do meu tempo, entre outros.
 
Vamos então ao relato que faz na página 310 do livro "Festas Populares do Brasil":

 
 
Na galeria dos criminosos célebres, ocupa esse facínora, no Brasil, um dos pontos mais culminantes.
Nasceu Lucas na fazenda do Saco do Limão, na província da Bahia, e era escravo de uma Dona Antônia, rica proprietária na Feira de Santana.
Por morte desta senhora, passaram os seus bens a seu sobrinho o padre João Alves Franco, que recebera, com os avultados cabedais da terra, escolhida escravatura, de que fazia parte o molecote Lucas.
Na idade de 20 anos, o padre seu senhor mandou-o aprender o ofício de carapina, e nessa aprendizagem fugia a miúdo, voltava apadrinhado, até que, perdendo o medo, deixou de procurar padrinho, e
começou a assaltar e roubar no mato e nas estradas, matando a quantos lhe resistiam.
Os dias prediletos para as suas violências e assassinatos eram as terças-feiras e depois as segundas – dias de feira no lugar – por isso que nessas ocasiões o povo que vinha à cidade tratar de negócios crescia muitíssimo de número.
Assentando destarte a sua tenda de salteador na Feira de Santana, a ele se foram associando vários escravos fugidos, que formaram a assombrosa quadrilha de que Lucas era o chefe horrendo e pavoroso.
O Dr. Vicente Ferreira Alves dos Santos, primeiro juiz letrado do termo, durante o seu exercício, fez o mais que pôde para prender Lucas, tendo destacado, além da força de polícia, algumas praças de cavalaria, que, ao reclamo dos assaltados ou a qualquer notícia, se guiam e voltavam sem nada conseguir, embora auxiliados por caboclos da Pedra Branca, rastreadores habituados e de ouvidos exercitados.
Repetidas vezes, por essas diligências frustradas, prendiam e açoitavam, nas grades da cadeia, um primo e parceiro de Lucas, supondo-se existir correspondência entre ambos, e daí secreto aviso.
O Dr. Vicente Ferreira Alves assistiu à execução das sentenças de morte na forca a que foram condenados os escravos Flaviano e Januário, salteadores da referida quadrilha.
A guarda negra de Lucas arregimentava cerca de trinta indivíduos, negros e mulatos, todos escravos de senhores-de-engenho e de pequenos lavradores.
Nicolau, em uma noite de terça-feira, com Lucas, na estrada da Lagoa Salgada, assaltando um grupo que voltava da Feira para casa, foi morto a tiro, e com ele uma preta sua companheira no crime.
Os assaltados cortaram a cabeça do malfeitor, e na manhã seguinte entraram com ela fincada em um pau pelas ruas da cidade.
Por ordem da autoridade, o cirurgião José Maria Soares de Melo extraiu-lhe o encéfalo, salgou-a, e em um poste, no Campo do Gado, no lugar onde se levantara a forca, ficou exposta ao público.
Nessa tarde entraram na povoação os dois cadáveres às costas de um animal, sucedendo-se ao corpo de delito dar-se sepultura à negra e entregar-se o corpo de Nicolau à populaça infrene, que, depois de arrastá-lo pelas ruas, lançou-o em uma enorme fogueira, que o reduziu a cinzas.
O delegado suplente que então servia, participando a ocorrência ao Governo, foi severamente repreendido pelo chefe de polícia, por ter consentido em tamanha selvageria.
O negro salteador contava em seu grêmio foragidos resolutos, baluartes resistentes aos embates da luta e do imprevisto.
Da árvore, a cuja sombra erguia a sua tenda, desenrolava-se uma rede de cipós em várias direções, uma espécie de telégrafo, que transmitia, por meio de convenção prévia, avisos e notícias.
Lucas era um bandido de maior estatura que Pedro Espanhol, cometeu mais de cento e cinqüenta assassinatos, roubou com mais afoiteza, os defloramentos por ele praticados foram inúmeros.
Na estrada e nos assaltos às fazendas ele e os seus matavam homens, crianças e mulheres, e a algumas destas depois de aviltá-las com as suas torpezas.
Às vezes, satisfeitos os seus brutais desejos, as deixavam nuas, untadas de mel do tanque, amarradas a um tronco de árvore, até que morriam de fome e de mordeduras de insetos.
A terrível quadrilha infestava muitíssimas estradas ao sul, a da Cachoeira e Santo Amaro; ao norte, a de S. José, Canavieiras e S. Vicente; a leste, Lagoa do Furno, Registro e Lagoa Salgada; a oeste, Jacuípe, Catumbi e Pedra do Descanso.
Em algumas entradas no mato a polícia e a força de linha conseguiam prender um ou outro do bando, que subia à forca sem remissão nem agravo. Flaviano e Januário assim acabaram.
Diariamente marchavam contra os facínoras pessoas armadas, e dispostas aos riscos da aventura, caindo morto por bala o salteador que resistia isolado ou que não as tinha pressentido.
Lucas e os seus sequazes assassinavam autoridades, cargueiros, viajantes, portadores de diamantes e dinheiro, sabendo de véspera o itinerário dos indivíduos e de quanto levavam consigo.
A acreditar-se em boatos, o salteador da Feira distribuía o que roubava com alguns negociantes da cidade e altas influências políticas, motivo por que escapava às tocaias e esperava certeiro os comerciantes em trânsito, conduzindo por mais de vinte anos uma vida de roubo, de devastação e de assassinatos.
De uma feita sendo mortos na vila do Tucano o juiz municipal Dr. Procópio e oito pessoas daí, mais o chefe de polícia Dr. Francisco Gonçalves Martins (depois Barão de S. Lourenço) teve de seguir para o local do crime a fim de sindicar o fato e instaurar processo.
Na Feira de Santana, por onde passou, demorou-se poucos dias, dando providências sobre uma outra morte – a de Firmino Ferreira Sarmento, e sobre o meio prático de se prender Lucas.
Neste sentido mandou afixar editais e publicar pela imprensa que o Gover no daria quatro contos de réis a quem o fizesse.
E Lucas, apesar de espionado e perseguido, prosseguia temeroso e indômito em sua carreira.
Lucas era a figura do Diabo. Contam-se dele tantos casos, narram-se a seu respeito tantas legendas, que encheriam volumes.
Uma ocasião, um negociante, que ia para a Feira, meteu por prevenção o dinheiro, que levava, dentro da gravata e pequena quantia no bolso, que era para Lucas, como ele di zia.

Na estrada, Lucas sai-lhe ao encontro e obriga-o a entregar o que trazia, ao que o viandante sem réplica acedeu, franqueando-lhe as algibeiras.
O salteador, mirando-o de cima abaixo, saqueia-o e, apenas o manda embora, fá-lo voltar.
– Meu ioiô, disse Lucas, dê a seu negro essa gravata, se não morre.
O pobre homem, que supunha-se escapo com a vida e a fortuna, não hesitou um instante, desatou-a e entregou desconfiado, assustado.
Por vezes, enfrontando no sertão com o padre seu senhor, tomava-lhe a bênção, pedia-lhe rapé e deixava-o ir seu caminho.
Dizem os velhos que Lucas tivera um remorso: – o de haver assassinado uma rapariga de 15 anos, a quem desvirginara e, enter rando-a na floresta, aconteceu que passando por perto na manhã seguinte, viu levantar-se da cova uma nuvem de pássaros, que foram cantando perder-se no além.
O negro e a sua quadrilha, depois do prêmio oferecido, não contavam com um momento de trégua, capitães-do-mato, rastreadores, soldados, gente do povo, enfim, seguiam-lhe no encalço, desafiando mais as represálias do bando.
E os assaltos aos engenhos e aos viajantes, o roubo de gado e de bagagens, os cadáveres apodrecidos nas árvores reproduziam-se sem termo, ativando esses crimes a vigilância e sagacidade do chefe de polícia e das autoridades locais, que não se poupavam a todas as diligências.
Do Aljube da cidade, Cazumbá, compadre de Lucas e réu inafiançável, evadira-se e batia as matas.
Na sua existência errante e sobressaltada, garantia dar cabo do salteador da Feira, uma vez que, com os quatro contos prometidos, lhe fosse oferecida a absolvição dos delitos.
Esta notícia espalhando-se, as autoridades da província tomaram conhecimento do fato e fazendo vir à sua presença Cazumbá, ficou o ajuste assentado sob a palavra do Governo e a resolução do bandido.
Daí por diante a estrela de Lucas começou a ser-lhe funesta. Cazumbá, acompanhado de Marcelino, a quem se associou, meteu mãos à obra, levando dias e noites à tocaia de Lucas.
Atravessava florestas, transpunha vales e serras, embarcava em diferentes lugares, pondo-se-lhe à pista, até que, na tarde de segunda-feira, 24 de janeiro de 1848, emboscado em uma das picadas da
Pedra do Descanso, percebeu o facínora armado de clavinote, que passava ao longe.
E Cazumbá disparou-lhe um tiro...
A bala, fraturando-lhe o braço direito, não o impediu de escapar, de embrenhar-se nas selvas, deixando após si um rastro de sangue.
Avisados, incontinenti, subdelegados, delegados, juízes de paz e inspetores de quarteirão, partiram todos, seguidos de tropa, em busca do esconderijo de Lucas, porém inutilmente.
Em caminho, viram cadáveres putrefatos, indivíduos amarrados e seviciados, uma moça branca enleada contra os espinhos de um pé de mandacaru, baús, alfaiais da igreja de Brotas, e objetos roubados, nas clareiras do mato.
Frustrada a diligência, no declínio das esperanças, quando já se haviam perdido muitas jornadas em busca do salteador baleado, acudiu a alguém a idéia de mandar chamar o negro Benedito, amigo de Lucas e salvo-conduto dos viajantes da Cachoeira à Fe ira de Santana, para dar conta dele.
 
Depois de ameaças e promessas, Benedito comprometeu-se a indicar o pouso, e, seguindo à frente, puseram-se em marcha autoridades e tropas, Cazumbá e Marcelino, que o prenderam em uma furna onde era pensado por uma rapariga, tornando-se para isso necessário que lhe dessem outro tiro.
A ferocidade do negro, apesar de ferido e pilhado, era inaudita. O fato passou-se pela madrugada.
 
E às sete horas da manhã, em uma rede gotejante de sangue, chegou Lucas aos Olhos-d’Água, afluindo para vê-lo inúmero povo.
 
Às oito horas entrou na cidade, onde a população o teria linchado se não fosse a numerosa guarda de baioneta calada, que o protegia.
 
Por três dias o prazer e as festas tornaram-se indescritíveis: girândolas de foguetes, repiques de sino, embandeiramento das ruas, luminárias à noite, passeatas, tocatas de violão, etc.
Na cadeia da capital, para cuja prisão foi removido, amputaram-lhe o braço, e respondendo ao júri que o condenou à pena última, subiu à forca em setembro ou outubro de 1849.
Lucas tinha mais de 45 anos de idade. No alto do patíbulo fez uma fala ao povo, pediu perdão e na forca ou na prisão – jamais comprometeu pessoa alguma.
Note-se que, como dissemos, Lucas não roubava para si. E a esse respeito possuímos documentos de grande valor.
Naquele malfeitor, entretanto, naquela monstruosidade humana, dois sentimentos bons conservaram-se – a gratidão e a caridade.
O cruel salteador da Feira nunca ofendeu a quem lhe fizera ao bem, e era o socorro ignorado de muitas famílias pobres que viviam de suas esmolas.
Além do prêmio da traição, Cazumbá recebeu presentes de dinheiro do comércio da Cachoeira, da Feira de Santana, de Santo Amaro e da Bahia.
É estilo no Norte os acontecimentos notáveis serem cantados pelos Homeros populares: as façanhas do Lucas estavam neste caso.
Do muito que produziu a poesia anônima do tempo, o ABC do Lucas é a mais original e característica.

 

 

 
 
 
 
 


 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Lampião e Santa Luzia


"Se eu soubesse que Santa Luzia era a Padroeira de Mossoró, eu não tinha atacado."
 
Quando minha avó, por parte de mãe, sentava em sua cadeira de balanço, sentávamos a seus pés para ouvirmos as estórias de sua terra. Nascera na vila de Campo Grande, cidade do Rio Grande do Norte, que passara a ser chamada de Augusto Severo e hoje novamente Campo Grande. 
Chamava-se Maria Albertina Jácome e nasceu a 18 de março de 1900 e foi batizada pelo Vigário Amaro Castor Brasil na Matriz desta Vila de Campo Grande a 15 de abril do mesmo ano tendo por Padrinhos João Cícero Pereira e Silva e D. Maria Eugenia de Medeiros.

Vinha de uma família numerosa de mais onze irmãos, onde o chefe do clã chamava-se Coronel Benvenuto Jácome, pequeno fazendeiro, tinha nascido em 14 de Maio de 1854 e falecido em 18 de setembro de 1919 e a matriarca Izolina Maria da Câmara Jácome, nascida em 13 de abril de 1861 e falecida a 19 de agosto de 1926.
Quando minha mãe, Maria de Lourdes Mascarenhas tinha três para quatro anos de idade, sua família mudou para a cidade de Mossoró, onde Lampião, o Rei dos Cangaceiros, fizera uma invasão mal sucedida e onde perdera dois cabras mais valentes de seu bando. Minha avó, minha mãe e seus irmãos, fugiram de Lampião nessa invasão, e apenas na cidade ficara seu esposo, Francisco de Assis Mascarenhas Filho, O Chico Santeiro, filho de Francisco de Assis Mascarenhas e Rosa Verbolina de Carvalho, pois ficara nos arranjos de proteção da cidade. Como voluntário ficou destacado para a guarda da casa da Dona Ná Oliveira, que era muito grande e estava sem proteção.

Uma das estórias além da que descrevo acima, contava-nos que Lampião ao saber que Santa Luzia era a padroeira de Mossoró, teria dito que se soubesse antes de seu ataque à cidade, jamais teria feito aquilo pois era devoto dessa Santa, por causa de seus males nos olhos.
Lampião tinha problemas na visão (os diagnósticos de glaucoma, tracoma ou leucoma foram algumas das hipóteses aventadas) e que ainda por cima ele teria sido ferido por um espinho, acidente muito comum nessa região coberta de plantas espinhosas.

Conforme as versões, o olho direito era parcial ou totalmente cego. É provável que tenha havido inicialmente uma cegueira parcial, que se agravou com o tempo. Muito raramente a doença ocular foi atribuída a um ferimento em combate, embora em seu livro Lampião, senhor do sertão: vidas e mortes de um cangaceiro, Elise Grunspan-Jasmin escreve em uma nota, que o sertanejo João Urbano Nazário de Lucena afirma que Lampião perdeu seu olho durante um combate em Abóboras.
Cita o artigo do Jornal Pequeno de 29 de março de 1926, descrevendo Lampião ao ensejo de sua entrada triunfal em Juazeiro, insiste em seu "olhar prescrutador", apesar de seus olhos estarem sempre "abaixados". Um de seus olhos é cego e recoberto de um tipo de "pasta azulada cobrindo quase todo o globo ocular".

Prossegue Elise Grunspan-Jasmin dizendo que o escritor Joaquim Góis evoca “um [...] olho apagado pela cegueira. O outro, no meio, um disco negro como carvão, brilho de aço polido, de vidro ao sol, brilho insolente, provocante, sêco, dardejando faiscas que, mal apontavam, morriam sob as pálpebras. [...] Um par de óculos ordinários sobre o nariz reto, sem saliência notável, nariz feito para ser apenas um nariz qualquer. Atrás daqueles dois vidros, um olho só brilhava, esfolava, esquadrinhava, adivinhava intenções ocultas e pensamentos disfarçados.“
Nas narrativas, de Elise Grunspan-Jasmin essa doença ocular é percebida ora como um atentado físico que deixa intactas e até mesmo redobra as suas forças, ora como um sinal de debilidade e vulnerabilidade. O próprio Lampião nunca quis sofrer com isso, afirmando que um único olho lhe seria suficiente para atingir o seu alvo.

Transcrevo abaixo os comentários de Elise Grunspan-Jasmin em seu livro:
“Esse ponto de vista é compartilhado por seus companheiros e, até 1934, pelos jornalistas do sertão: "Lá nos desertos sertanejos, quase cego, ferrado de balas, naturalmente mais velho, é, sobretudo desfalcado dos 'bons cabras' do Pajeú, tombados nas 'brigadas' de toda parte, ainda assim ele se mostra mais audaz que os bandoleiros mexicanos...". O homem de quem se fala aqui é guerreiro valoroso, e não um homem alquebrado, que sobrevive apesar dos ferimentos. Por sua vez um discurso difundido pela imprensa do litoral do Nordeste insiste em ressaltar a vulnerabilidade provocada por essa deficiência.

No dia 30 de janeiro de 1927, um artigo do jornal O Ceará evoca, com o testemunho do fazendeiro João Pontes Simões, residente na época em Barbalha, alguns delitos marcantes perpetrados por Lampião no Estado do Ceará. As informações dessas testemunhas visuais permitem ao jornalista confirmar, de "fonte autorizada", o declínio do "chefe da horda malfazeja", bem como a perda da sua invulnerabilidade causada pela degradação de seu corpo: Hoje em dia, o bandoleiro "Lampião" não mais toma parte nos combates, nem mesmo atira por estar completamente cego de um olho e paralítico de um braço. O terrível malfeitor acompanha, apenas, o grupo, como um comandante, armado de pistola parabelum".
Pode-se perguntar se não se trata de um discurso conjuratório, destinado a tranquilizar a sociedade do litoral, até então a salvo das perversidades de Lampião. Muitos artigos de jornais insistem nos óculos que Lampião usava: uns falam de vaidade, pois se trata de esconder o olho enfermo, outros da necessidade de melhorar sua visão ou de atenuar sua fotofobia.

Um artigo do jornal O Povo de Fortaleza, de 5 de agosto de 1928, descreve esses óculos "com vidros esfumaçados, engastados em tartaruga e ouro, com o fim de encobrir um extenso leucoma da córnea do olho direito". Quando a revista A Noite Ilustrada de 2 de agosto de 1938 dá uma descrição física de Lampião com base nas fotografias de Benjamin Abrahão, o jornalista sustenta que aqueles óculos negros não somente permitiam a Lampião esconder seu olho direito na vida cotidiana, mas principalmente lhe davam a possibilidade de esconder esse defeito quando ele se expunha ao olhar dos outros na fotografia: As gravuras reproduzem as ultimas fotografias de "Lampeão" e de sua amante, feitas por um "camera-man" audacioso para um filme que não chegou a ser exibido, mas nas quais aparecem as indumentárias típica dos bandoleiros.
O bandoleiro apresenta bem visivel o defeito no olho direito, disfarçado, em suas fotografias divulgadas pelo uso habitual dos oculos. Outra sutileza: Waldemar Ferreira, a serviço da firma Fernandes Motta, conheceu Lampião em Queimada, BA, em 22 de dezembro de 1929; diz ele que Lampião não usava óculos no dia-a-dia, mas apenas para ser fotografado.

Isso faz pensar que ele procurava esconder seu olho cego somente na frente da objetiva, para preservar assim a imagem de um corpo intacto. Quando o poeta de cordel João Martins de Athayde descreve Lampião fisicamente, em 1926, por ocasião de sua entrada triunfal em Juazeiro, não deixa de fazer referência ao seu olho "doente", esse olho cuja moléstia é preciso dissimular com a utilização de óculos negros."
 
CONCLUSÃO:

Por tudo isso relatado a respeito do problema de visão que Lampião tinha, onde muitas vezes perdia a paciência, pois remelavam seus olhos e ele sentia-se descontente com isso, e por conta ficava cada vez mais perverso, acredito piamente no que minha avó me contava. Sim Lampião deve ter se arrependido muito de ter atacado uma cidade em que sua protetora era e é Santa Luzia, a Santa dos cegos e dos que têm problemas de visão.