O Santo do Cariri
A história do Padim não termina com a sua morte, em 1934. Pelo contrário. A devoção e a fé do povo perpetuam-se até os dias de hoje, já que o Padim agora "vive" uma nova fase: a reconciliação com a Igreja Católica, deliberada no final de 2015 pelo Vaticano. Conheça as histórias do passado e o que ainda pode acontecer com a trajetória de fé perante o Padre Cícero.
Por Janaína Flor e Larissa Viegas (TEXTOS)Por Mateus Monteiro (FOTOS)
A história do homem que é considerado pelo povo como um santo começou no Crato, em 1844. De família local, o menino Cícero Romão Batista já mostrava apego aos ritos e devoções da fé católica na infância. Ainda na juventude, escolheu a vida religiosa. A decisão de ir para o Seminário da Prainha, administrado por padres lazaristas da França, em Fortaleza, aconteceu pouco tempo depois da morte do pai, vítima de cólera. Cícero ordenou-se padre em 1870. Segundo o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho, ele era tido no Seminário como opiniâtre, palavra francesa que pode ser traduzida como "cabeçudo", obstinado, perseverante. “[Ele] Não era visto com bons olhos. Dava para antecipar uma relação que seria marcada pela tensão.”
A volta para a família, no sul do Ceará, aconteceu no fim de 1871, já ordenado como padre, mas sem função eclesiástica. Na região, Padre Cícero foi convidado por uma família para celebrar a missa de Natal em um distrito do Crato, o mesmo lugar que viria a ser Juazeiro do Norte. A mudança para a pequena vila aconteceu em 1872, quando Padre Cícero fundou uma capela e começou a exercer trabalho pastoral, preocupando-se com questões que atingiam, principalmente, os mais pobres.
“Padre Cícero ficou para os romeiros e nordestinos como um homem que teve uma projeção muito justificada por aquilo que, muitos anos depois, a Igreja propaga como opção preferencial pelos pobres”, explica o professor e historiador Renato Casimiro.
Padre Cícero ganhou influência no lugar e foi um dos principais responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento de Juazeiro do Norte. Por ser também muito culto, era procurado não só por gente simples, mas também por pessoas que tinham poder entre o povo. Dava atenção tanto aos pobres quanto aos ricos. Segundo Casimiro, o trabalho pastoral do Padim era reconhecido por Luis Antonio dos Santos, o primeiro bispo do Ceará, e por grandes autoridades religiosas do Estado. Por 17 anos, de 1872 a 1889, foi uma figura importante e respeitada no catolicismo cearense, até acontecer o que é chamado de Milagre de Juazeiro.
O Milagre
A data 6 de março de 1889 guarda o acontecimento que, sem dúvidas, é o mais marcante na história religiosa de Padre Cícero. O fenômeno chamado de Milagre de Juazeiro mudou a forma como o sacerdote era visto pela hierarquia da Igreja Católica, e também foi o fato responsável, inicialmente, por atrair numerosas romarias a Juazeiro do Norte.
Na capela de Nossa Senhora das Dores, a hóstia colocada por Padre Cícero na boca da beata Maria de Araújo transformou-se em sangue. O fenômeno repetiu-se até o ano de 1891, segundo Renato Casimiro, e os comentários de que era um sangue miraculoso corriam entre o povo da região. Esse, no entanto, não teria sido o primeiro milagre de Padre Cícero, de acordo com a irmã Annette Dumoulin, doutora em psicologia e devota do santo popular. “Sabemos que Padre Cícero tinha dons especiais, por exemplo, de ajudar um louco a sair da loucura. Ele tinha uma certa capacidade de profetizar, anunciar o que estava acontecendo em outro lugar. O fato com a beata foi o impacto maior”, afirma.
O acontecido só chegou ao conhecimento do então bispo do Ceará, dom Joaquim, meses depois, conforme relata Casimiro, e uma comissão de inquérito foi nomeada para examinar o fenômeno. “A comissão nomeada pelo bispo foi a Juazeiro do Norte, assistiu às transformações, examinou a beata, ouviu testemunhas e concluiu que o fato era realmente de origem divina. Mas o bispo, influenciado por clérigos que rejeitavam a ideia de milagre, nomeou outra comissão, que foi a Juazeiro, convocou a beata, deu a comunhão, e nada de extraordinário aconteceu. Então, foi concluído que não houve milagre.”
Padre Cícero, o povo da região e padres que acreditavam no milagre protestaram, mas isso foi visto como desobediência ao bispo, que enviou relatório à Santa Sé, no Vaticano, e esta confirmou a decisão contrária ao fenômeno, em 1894. Os padres, que não quiseram perder direitos eclesiais, se retrataram, e Padre Cícero foi acusado de manipulação da fé, ficando proibido de celebrar missas. Foi a partir desse momento que Padre Cícero e Maria de Araújo passaram a ser vistos pela Igreja Católica como embusteiros.
Segundo dom Fernando Panico, bispo da Diocese do Crato, a eucaristia é o tesouro da Igreja, o símbolo mais precioso. É por isso que em relação ao Padre Cícero e do suposto milagre da hóstia, a Igreja ficou receosa. “Na época do suposto milagre, houve uma admiração pelo fenômeno, mas, ao mesmo tempo, houve um certo receio, dúvida por parte da hierarquia local. A dúvida gera desconfiança, que pode gerar oposição até chegar a condenação, e foi o que ocorreu com o Padre.”
Para a irmã Annette Dumoulin, Padre Cícero é considerado santo “porque foi fiel e ficou ao lado do povo, ajudou em dimensões além da espiritual, como grande conselheiro, como defensor ecológico, como médico da medicina natural. Ajudava o povo a se defender da seca, da fome, ensinava a trabalhar. E isso é o que está guardado fielmente na memória do povo nordestino.”
Discriminação e fanatismo
Tanto os estudiosos do assunto quanto religiosos concordam que, na época, o Milagre de Juazeiro foi logo tido como forjado, principalmente por preconceito e discriminação. Para a irmã Annette Dumoulin, o fenômeno ter acontecido em um lugar pobre, com uma beata analfabeta e negra, impulsionou a ideia de que se tratava de um embuste. “Não se aceitou que podia acontecer um milagre aqui. O padre francês Pierre-Auguste Chevalier, reitor do Seminário da Prainha, dizia: ‘Não se pode imaginar que Deus vai deixar a França para fazer um milagre desse no interior do Ceará’.”
Geraldo Menezes Barbosa, 91 anos, é o único escritor vivo contemporâneo de Padre Cícero. O jornalista conta que, aos dez anos de idade, lembra da figura do Padim pelas ruas, mas que só entendeu o que acontecia na época quando começou a trabalhar com o pai, também jornalista. De acordo com o escritor, o Padre foi afastado da Igreja por uma questão política particular do grupo católico do Crato, por atrair mais gente para Juazeiro do Norte e deixar a cidade do Crato com menos população. E também por ter sido motivo de muita atração, para evitar o que a Igreja chamava de fanatismo.
“Eu via o povo beijando a mão do Padre e ele recuando para que não beijasse porque o bispo havia proibido, mas os romeiros pegavam e beijavam a batina. Ele estava sempre rodeado de romeiros. Eu perguntava: ‘Papai, por que é que o povo não deixa o Padre Cícero caminhar?’ E ele dizia: ‘Meu filho, é porque ele é um santo, está aqui cumprindo uma missão, e o povo vem pedir graças’”, lembra Barbosa.
De Roma vieram até decretos de excomunhão do Padre, como conta Casimiro, embora não tenham sido aplicados, e novas sanções com ordem de restrição também eram mandadas de lá. Havia esforço para combater o acontecimento em Juazeiro, como se o lugar fosse um antro de fanatismo que depunha contra a pureza da religião católica no Ceará. Os paninhos litúrgicos, que foram manchados de sangue durante as transformações da hóstia na boca de Maria de Araújo, foram perseguidos e destruídos pela Igreja, apagando possíveis provas. Ralph Della Cava, pesquisador sênior adjunto do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Columbia University, em Nova York, e autor do livro Milagre em Joaseiro, destaca que mesmo sendo "afastado" pela hierarquia por sua crença nos milagres, o Padre nunca se afastou da Igreja. “Ao contrário, [ele] obedecia aos duros decretos impostos por Roma e pelas autoridades eclesiásticas locais e não parou de procurar a restituição de suas ordens sacerdotais.” Durante toda a vida, Padre Cícero tentou revogar a pena, tendo ido até o Vaticano em 1898, mas não conseguiu.
Posicionamento da Igreja
O Brasil, principalmente o Ceará, era visto como lugar de uma religiosidade pouco desenvolvida, mas a fé do povo não procurou entender as questões dogmáticas da Igreja, e a romaria crescia mesmo com a antipatia de alguns religiosos. Os romeiros vinham para Juazeiro, ocupavam a igreja e diziam: ‘Viva o Padre Cícero’. Mas nenhum padre ousava entoar junto porque cometeria uma desobediência grave.
O nordestino chegava no Juazeiro, mesmo sem falar do milagre porque era proibido falar, mas com a certeza que se tratava de uma terra sagrada, um lugar sagrado, e assim se multiplicavam as romarias. Enquanto isso, a Igreja continuava fazendo restrições ao Padre, e além da questão do fenômeno com Maria de Araújo, também advertia sobre o acúmulo de riquezas, já que ele tinha muitas terras que foram doadas para os Salesianos, uma congregação da Igreja Católica, após sua morte.
Afastado da Igreja até o fim da vida, o Padre Cícero dedicou-se à política, procurando desenvolver a cidade fundada por ele mesmo. Faleceu em 20 de julho de 1934, aos 90 anos, e está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Na visão do pesquisador Gilmar de Carvalho, Padre Cícero foi e é o pastor que cuida e se preocupa com seu rebanho, estando sempre acima de qualquer rótulo. “Não adiantou a resignação, a tolerância, a paciência. Ele poderia ter liderado um cisma, mas preferiu se submeter às normas da Igreja. Ele foi humilhado, desautorizado, rejeitado. Mas manteve-se fiel até a morte”, destaca.
Após a morte do Padim, Della Cava destaca que “era do Padre que se pedia uma graça e, quando essa era alcançada, era a ele que se pagava a promessa”. De forma gradativa, a Igreja local passou a enxergar o Padre, que fora tão combatido outrora, como um exemplo de sacerdote, ressaltando a bondade do homem sereno, a preferência pelos pobres do pastor solidário e o estar próximo do povo que o caracterizam como santo popular.
A mudança do posicionamento da Igreja, de acordo com Carvalho, foi resultado da atuação pioneira e atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, que foi por quase 50 anos vigário do Juazeiro. A ousadia do monsenhor abriu portas para aqueles que vieram trabalhar depois a imagem do Padre
A beata
Não se sabe tanto sobre a beata Maria de Araújo como se sabe da vida de Padre Cícero. Sua personalidade é marcada pelas características que contribuíram, na época, para a discriminação da igreja com o suposto milagre. Sabe-se que era negra, pobre e analfabeta. Foi, de acordo com Della Cava, uma das moças que viveram em uma das 22 Casas de Caridade do Padre Ibiapina, missionário da região, e daí também vem o título de beata.
Após o acontecimento do milagre, foi exigido que ela fosse para Barbalha, depois para o Crato, onde ficou enclausurada em uma casa. “A primeira coisa que a Igreja fez foi dar esse reforço de discriminação sobre a figura da protagonista e as características de sua personalidade terminaram por facilitar a posição da Igreja em martirizá-la, até com tortura física”, conta Renato Casimiro.
O túmulo da Beata, que morreu em 1913 e foi sepultada no interior da Capela Senhora do Perpétuo Socorro – hoje Paróquia Nossa Senhora das Dores Basílica Santuário -, foi violado e não há indícios de onde estejam seus restos mortais. Mesmo com tanto mistério e polêmica, dom Panico afirma que “se é para falar de milagre, é a beata Maria de Araújo que teria mais participação e influência neste acontecimento”. Na visão dele, o Padre Cícero pode ter sido um instrumento, mas não é possível afirmar que o milagre veio dele, e acrescenta: “Um milagre nunca é obra do homem ou da mulher, é sempre obra de Deus”.
Política e Cangaço
Proibido de celebrar missas, o Padre Cícero entrou na vida política buscando desenvolver Juazeiro do Norte, que era um distrito da cidade do Crato, incentivado por pessoas do comércio, da política local e por proprietários de terra. Os moradores não viam retorno dos impostos que pagavam e não havia sinais evidentes de progresso, exceto os que o Padre Cícero havia plantado, como traçados de ruas.
Com a emancipação, Padre Cícero assume o cargo de prefeito por um longo período, de 1911 a 1926, com uma pequena interrupção. “A cidade passou a ter vias de tráfegos, dezenas de veículos já circulavam, tinha energia elétrica. Entre essa fase da política até o final da vida, ele gozou do afeto e carinho do povo nordestino que, gradativamente, o elegeu à condição de um santo, de um homem bom, puro, alguém que realmente merecia confiança”, explica Renato Casimiro.
Em 1911, o Padre Cícero foi escolhido como líder de conciliação sobre a violência do Cariri, com o Pacto dos Coronéis, por isso ganhou essa designação. Para o pesquisador Gilmar de Carvalho, ele não teve nada a ver com os clichês dos coronéis sertanejos. “Ele os reuniu porque era hierarquicamente superior, e visto como um sacerdote, mesmo com toda a máquina da Igreja pronta para triturá-lo. Não usou a política para benefícios próprios, nem para auferir vantagens. Passou pelo autoritarismo sem se deixar contaminar.”
O professor e escritor Ralph Della Cava acrescenta que o coronelismo marca a história do Padre Cícero de maneira exagerada e até injusta. “Tal distorção se atribui a uma literatura composta desde os primórdios da história de Juazeiro como ente independente, seja por ressentidos políticos, seja por ‘modernistas’, seja por jornalistas à procura de um furo.”
Prefeito Cícero e Juazeiro
A história de Juazeiro do Norte se confunde com a história de Padre Cícero, já que o religioso com Floro Bartolomeu, médico baiano que se mudou para a localidade, são apontados como os principais responsáveis pelo desenvolvimento do Município.
Ralph Della Cava explica que Juazeiro do Norte se tornou alvo de retirantes, migrantes e de refugiados de conflitos e disputas violentas entre coronéis rivais do Nordeste inteiro. Vieram também os desamparados da lavoura de cana-de-açúcar em falência e da indústria amazônica de borracha. “Com este influxo humano a Juazeiro, o Padre dava não só conselhos, mas também emprego”, enfatiza.
O pesquisador Gilmar de Carvalho acrescenta que alguns romeiros pediam autorização para se fixarem na Cidade e, mais ainda, pediam para que o Padre desse a eles uma ocupação. “Eram destinados à lavoura regional, à construção de açudes, barragens, estrada de ferro e rodovias; às artes e indústrias que floresceram como em nenhuma outra parte do Estado, permeando e fazendo crescer a cidade a uma velocidade inusitada”, afirma Della Cava.
Dom Panico, bispo do Crato, reconhece Padre Cícero como o homem que está no alicerce da transformação de um vilarejo em uma cidade. “Se, hoje, Juazeiro é o que é, deve isso ao Padre Cícero, ou teria sido uma cidade como tantas outras aqui do sul do Ceará. Foi o primeiro prefeito da Cidade, foi quem organizou a Cidade dentro dos critérios mais modernos. Uma Cidade que nasceu da fé, que nasceu da devoção do povo e continua crescendo por causa desses motivos.”
Um novo momento
A irmã Annette não poderia ser mais clara na hora de explicar o que aconteceu no dia 13 de dezembro de 2015, quando o bispo dom Fernando Panico anunciou a carta que recebeu de Roma, assinada pelo papa Francisco. “Não é uma reabilitação, não é uma canonização. É um reconhecimento dos valores, das virtudes do Padre Cícero a partir da fé do romeiro, a partir da realidade de hoje, dos frutos da ação pastoral dele.” Na ocasião, a notícia foi recebida com muitos aplausos e com uma festa por parte dos romeiros. Para a Irmã, era como se eles dissessem: “Eu já sabia que a igreja reconheceria as virtudes do Padre Cícero”.
“Apesar de ser popular a fé que os romeiros vivem, é também a fé da Igreja Católica, verdadeira, autêntica, como o papa Francisco falou na carta que me enviou”, explica o bispo dom Fernando Panico. O processo, segundo ele, iniciou-se, formalmente, em 2006, quando o próprio apresentou ao papa Bento XVI mais de oito volumes cheios de documentos, memórias e a história do Padre Cícero. O processo foi introduzido depois de anos de estudos de uma comissão pedindo ao papa a reabilitação do Padim.
Com a chegada do documento de reconciliação do Vaticano, a igreja local comemorou por se tratar de uma reconciliação histórica, que leva em conta todos os aspectos da história do Padre Cícero como ser humano e sacerdote. “No ano da misericórdia, o papa falou em reconciliação. É uma graça maior do que a graça que pedimos”, diz o bispo.
Nos bastidores
Segundo Renato Casimiro, o pedido de reabilitação do Padre Cícero chegou, primeiramente, às mãos do papa Bento XVI, bem antes de ele ser papa. “Durante muito tempo, a gente ficava mandando correspondências, petições, abaixo-assinados, às vezes, juntavam-se milhares de assinaturas para que Roma analisasse a questão do Padre Cícero, e isso foi chegando lá.”
Em paralelo aos pedidos de perdão à Igreja, Juazeiro do Norte conquistou a simpatia do mundo. Franceses, belgas, americanos, alemães e outros estudiosos produziram (e produzem), conforme conta Casimiro, conteúdos relacionados ao Padre Cícero. “Há um tratamento diferenciado hoje no sentido de realmente aproximar mais a Igreja do Juazeiro a essas relações da igreja universal”, completa Casimiro.
Beatificação e canonização
Após a reconciliação da Igreja com o Padre Cícero, uma pergunta paira no ar: seria o próximo passo a beatificação e, em seguida, a canonização do Padim? Segundo a irmã Annette, nada é citado na carta recebida em 2015, mas, a partir do momento que a Igreja dá esse passo, é possível, com o tempo e as circunstâncias, que sejam reavaliadas as ações do Padre Cícero como sacerdote, deixando de lado os pontos mais controversos e evidenciando aspectos positivos de sua vida e de sua figura.
“É a partir da fé do povo que se reavalia a personalidade e ação do Padre Cícero. O papa é extremamente concreto, ele não desvaloriza as pesquisas científicas e históricas, mas ele diz que o que importa é ver os resultados da ação pastoral/sacerdotal do Padre Cícero.” Assim, a partir dessa nova visão da Igreja em relação ao Padre Cícero, pode ou não haver o pedido de um processo de beatificação e canonização do Padim por parte do bispo do Crato, seja de dom Fernando ou de seu sucessor.
Passo a passo para se tornar santo
O primeiro passo do processo de beatificação e de canonização é, segundo Renato Casimiro, a declaração pública de que a Igreja considera Padre Cícero servo de Deus.
Para que ela seja feita, é necessário que o bispo do Crato emita uma petição acerca do tema. Segundo o bispo, não existe um tempo pré-determinado para que esse passo seja dado e, no caso do Padre Cícero, seria necessário complementar o trabalho que foi feito no pedido da reabilitação. “Já estamos com o trabalho quase pronto. Então é só aprimorar, formatar tudo que já temos e que não pode ser inventado, [tudo] deve ser fidedigno aos documentos. Uma vez completado o processo diocesano, mandaremos para Roma e, lá mesmo, sem a necessidade de vir alguém para cá, [a Igreja] dará continuidade. A menos que Roma sinta falta de informação e nos diga: ‘estuda melhor esse ponto, veja melhor esse aspecto’.”
Em seguida, o Padim deve se tornar venerável. Casimiro diz que, até hoje, a Igreja ignora de certa maneira que exista essa devoção. “A devoção do povo nordestino pelo Padre Cícero é uma coisa ilegítima, porque ainda depende de nós.”
Após a veneração, é possível iniciar o processo de beatificação, o caminho mais seguro em torno da santificação e, portanto, da canonização. Casimiro explica, porém, que esse processo depende de trâmites legais e mais formais, que analisam fatos históricos e memoráveis, inclusive se há milagre atribuído ao candidato.
A duração do processo de beatificação é imprevisível; a sua solicitação também. Mas, segundo Casimiro, a postura do homem religioso e nordestino é “não deixar por menos, porque ele tem estratégias importantes, uma estratégia é a expressão sincera dessa devoção”. Um exemplo que o historiador cita foi o retorno da imagem do Padre Cícero para a Igreja Matriz de Juazeiro do Norte (Paróquia Nossa Senhora das Dores Basílica Santuário), três dias antes da Romaria das Candeias, em 2 de fevereiro de 2016.
Esperança
Mesmo sem nenhuma certeza acerca do processo de beatificação e de canonização do Padre Cícero, na opinião do historiador, essas etapas devem acontecer. Segundo análise de Casimiro, o papa Francisco tem dado continuidade ao que os papas anteriores têm feito: beatificar e canonizar um grande número de pessoas. Questões heroicas, de pessoas que deram a vida pela defesa da religião e de suas convicções marcam esses “novos” santos. Já o bispo pede paciência e uma melhor "digestão" dessa “conquista” atual, a reconciliação do Padre Cícero.
Para Renato Casimiro, independente de haver ou não um processo de beatificação, a relação do nordestino com a Igreja não irá mudar. “A gente sempre escuta dos romeiros: ‘Mas, me diga uma coisa: será que o Santo Padre não sabe que o Padre Cícero é santo? Por que não disseram ainda que ele é santo?'” Segundo o historiador, essa convicção popular só aumentou com o passar dos anos. “A rigor, a conduta do sertanejo, do romeiro, vai continuar a mesma, agora um pouco mais inflamada.”
Curiosidades
A beatificação é o primeiro passo para tornar alguém santo; a canonização é o segundo e último. “Primeiro a pessoa se torna bem-aventurada e depois, santa. Uma vez que o papa declarou beata uma pessoa, Roma, então, pode dar continuidade ao processo para torná-la santa”, resume dom Fernando. A declaração da santidade de uma pessoa é atribuição do papa. Caso ele não possa ir pessoalmente à cidade, ele delega outra pessoa, geralmente o cardeal. No pronunciamento, conforme explica o bispo, ele afirma que, a partir daquele dia, a pessoa declarada santa recebe a veneração e admiração que são devidas a ela.
A celebração da beatificação ou canonização acontecia na sede de origem do pedido e, em Roma, acontecia apenas a canonização. Algumas mudanças, porém, aconteceram. “Roma apropriou-se da glória de poder proceder, seja beatificação ou canonização”, explica o bispo dom Fernando Panico. Quando o papa Bento XVI assumiu, mais uma alteração, que segue até hoje: os beatos são declarados na cidade onde eles viveram e morreram.
Pontos de vista
O que estudiosos e historiadores dizem acerca da possível beatificação e canonização do Padre Cícero:
As rodas das burocracias andam bem devagar. As do Vaticano não são nada diferentes. Por exemplo, a recente reconciliação do Padre Cícero levou pelo menos um decênio de petições e precisou da intervenção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, do bispo diocesano do Crato e de delegações ao Vaticano de numerosos fiéis do Juazeiro e do Cariri. Tais iniciativas datam a partir de 1898!
O elemento mais positivo e alentador foram as palavras do papa Francisco. Segundo o que foi citado nos jornais, o Papa da Misericórdia disse que o Padre Cícero era “um padre exemplar”, um sacerdote para a “Igreja que está emergindo” e para uma igreja “de nossos tempos”. É que ele será logo ou mais tarde beatificado ou canonizado? Tampouco ninguém pode prever. Mas, por enquanto, Padre Cícero é para os seus devotos o que ele sempre foi: o Santo do Juazeiro.
A reconciliação era inadiável. Demorou muito. Do meu ponto de vista, esta reconciliação é fruto de muitos esforços. Ressaltaria a atuação pioneira e atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, por quase 50 anos vigário do Juazeiro. Monsenhor Murilo pedia palmas e dava vivas ao Padre, celebrava a Missa dos Chapéus, reforçava o uso do rosário e sedimentava uma imagem do Padre Cícero, a partir dos valores da "nação romeira". Depois dessas ousadias e quebras das arestas, ficava mais fácil trabalhar a imagem do Padre, pelos que viriam depois.
O romeiro sempre santificou o Padre Cícero e recorreu a ele nos momentos difíceis. Não vai ser difícil beatificá-lo ou canonizá-lo. Os milagres são numerosos. Estão no rol dos ex-votos, nos folhetos de feira, nas narrativas orais. Para os romeiros, Cícero sempre foi santo. A reconciliação com a Igreja é mais importante para a Igreja nestes tempos de avanço do pentecostalismo evangélico. Cícero é uma preciosa “arma” junto aos segmentos populares, que mantêm com ele uma relação de paixão e fé.