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sábado, 9 de abril de 2016

Padre Cícero

O Santo do Cariri

A história do Padim não termina com a sua morte, em 1934. Pelo contrário. A devoção e a fé do povo perpetuam-se até os dias de hoje, já que o Padim agora "vive" uma nova fase: a reconciliação com a Igreja Católica, deliberada no final de 2015 pelo Vaticano. Conheça as histórias do passado e o que ainda pode acontecer com a trajetória de fé perante o Padre Cícero.
Por Janaína Flor e Larissa Viegas (TEXTOS)Por Mateus Monteiro (FOTOS)
A história do homem que é considerado pelo povo como um santo começou no Crato, em 1844. De família local, o menino Cícero Romão Batista já mostrava apego aos ritos e devoções da fé católica na infância. Ainda na juventude, escolheu a vida religiosa. A decisão de ir para o Seminário da Prainha, administrado por padres lazaristas da França, em Fortaleza, aconteceu pouco tempo depois da morte do pai, vítima de cólera. Cícero ordenou-se padre em 1870. Segundo o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho, ele era tido no Seminário como opiniâtre, palavra francesa que pode ser traduzida como "cabeçudo", obstinado, perseverante. “[Ele] Não era visto com bons olhos. Dava para antecipar uma relação que seria marcada pela tensão.”
A volta para a família, no sul do Ceará, aconteceu no fim de 1871, já ordenado como padre, mas sem função eclesiástica. Na região, Padre Cícero foi convidado por uma família para celebrar a missa de Natal em um distrito do Crato, o mesmo lugar que viria a ser Juazeiro do Norte. A mudança para a pequena vila aconteceu em 1872, quando Padre Cícero fundou uma capela e começou a exercer trabalho pastoral, preocupando-se com questões que atingiam, principalmente, os mais pobres.
“Padre Cícero ficou para os romeiros e nordestinos como um homem que teve uma projeção muito justificada por aquilo que, muitos anos depois, a Igreja propaga como opção preferencial pelos pobres”, explica o professor e historiador Renato Casimiro.
Padre Cícero ganhou influência no lugar e foi um dos principais responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento de Juazeiro do Norte. Por ser também muito culto, era procurado não só por gente simples, mas também por pessoas que tinham poder entre o povo. Dava atenção tanto aos pobres quanto aos ricos. Segundo Casimiro, o trabalho pastoral do Padim era reconhecido por Luis Antonio dos Santos, o primeiro bispo do Ceará, e por grandes autoridades religiosas do Estado. Por 17 anos, de 1872 a 1889, foi uma figura importante e respeitada no catolicismo cearense, até acontecer o que é chamado de Milagre de Juazeiro.

O Milagre

A data 6 de março de 1889 guarda o acontecimento que, sem dúvidas, é o mais marcante na história religiosa de Padre Cícero. O fenômeno chamado de Milagre de Juazeiro mudou a forma como o sacerdote era visto pela hierarquia da Igreja Católica, e também foi o fato responsável, inicialmente, por atrair numerosas romarias a Juazeiro do Norte.
Na capela de Nossa Senhora das Dores, a hóstia colocada por Padre Cícero na boca da beata Maria de Araújo transformou-se em sangue. O fenômeno repetiu-se até o ano de 1891, segundo Renato Casimiro, e os comentários de que era um sangue miraculoso corriam entre o povo da região. Esse, no entanto, não teria sido o primeiro milagre de Padre Cícero, de acordo com a irmã Annette Dumoulin, doutora em psicologia e devota do santo popular. “Sabemos que Padre Cícero tinha dons especiais, por exemplo, de ajudar um louco a sair da loucura. Ele tinha uma certa capacidade de profetizar, anunciar o que estava acontecendo em outro lugar. O fato com a beata foi o impacto maior”, afirma.
O acontecido só chegou ao conhecimento do então bispo do Ceará, dom Joaquim, meses depois, conforme relata Casimiro, e uma comissão de inquérito foi nomeada para examinar o fenômeno. “A comissão nomeada pelo bispo foi a Juazeiro do Norte, assistiu às transformações, examinou a beata, ouviu testemunhas e concluiu que o fato era realmente de origem divina. Mas o bispo, influenciado por clérigos que rejeitavam a ideia de milagre, nomeou outra comissão, que foi a Juazeiro, convocou a beata, deu a comunhão, e nada de extraordinário aconteceu. Então, foi concluído que não houve milagre.”
Foto: Mateus Monteiro
Padre Cícero, o povo da região e padres que acreditavam no milagre protestaram, mas isso foi visto como desobediência ao bispo, que enviou relatório à Santa Sé, no Vaticano, e esta confirmou a decisão contrária ao fenômeno, em 1894. Os padres, que não quiseram perder direitos eclesiais, se retrataram, e Padre Cícero foi acusado de manipulação da fé, ficando proibido de celebrar missas. Foi a partir desse momento que Padre Cícero e Maria de Araújo passaram a ser vistos pela Igreja Católica como embusteiros. 
Segundo dom Fernando Panico, bispo da Diocese do Crato, a eucaristia é o tesouro da Igreja, o símbolo mais precioso. É por isso que em relação ao Padre Cícero e do suposto milagre da hóstia, a Igreja ficou receosa. “Na época do suposto milagre, houve uma admiração pelo fenômeno, mas, ao mesmo tempo, houve um certo receio, dúvida por parte da hierarquia local. A dúvida gera desconfiança, que pode gerar oposição até chegar a condenação, e foi o que ocorreu com o Padre.”
Para a irmã Annette Dumoulin, Padre Cícero é considerado santo “porque foi fiel e ficou ao lado do povo, ajudou em dimensões além da espiritual, como grande conselheiro, como defensor ecológico, como médico da medicina natural. Ajudava o povo a se defender da seca, da fome, ensinava a trabalhar. E isso é o que está guardado fielmente na memória do povo nordestino.”
Discriminação e fanatismo
Tanto os estudiosos do assunto quanto religiosos concordam que, na época, o Milagre de Juazeiro foi logo tido como forjado, principalmente por preconceito e discriminação. Para a irmã Annette Dumoulin, o fenômeno ter acontecido em um lugar pobre, com uma beata analfabeta e negra, impulsionou a ideia de que se tratava de um embuste. “Não se aceitou que podia acontecer um milagre aqui. O padre francês Pierre-Auguste Chevalier, reitor do Seminário da Prainha, dizia: ‘Não se pode imaginar que Deus vai deixar a França para fazer um milagre desse no interior do Ceará’.”
Geraldo Menezes Barbosa, 91 anos, é o único escritor vivo contemporâneo de Padre Cícero. O jornalista conta que, aos dez anos de idade, lembra da figura do Padim pelas ruas, mas que só entendeu o que acontecia na época quando começou a trabalhar com o pai, também jornalista. De acordo com o escritor, o Padre foi afastado da Igreja por uma questão política particular do grupo católico do Crato, por atrair mais gente para Juazeiro do Norte e deixar a cidade do Crato com menos população. E também por ter sido motivo de muita atração, para evitar o que a Igreja chamava de fanatismo.
“Eu via o povo beijando a mão do Padre e ele recuando para que não beijasse porque o bispo havia proibido, mas os romeiros pegavam e beijavam a batina. Ele estava sempre rodeado de romeiros. Eu perguntava: ‘Papai, por que é que o povo não deixa o Padre Cícero caminhar?’ E ele dizia: ‘Meu filho, é porque ele é um santo, está aqui cumprindo uma missão, e o povo vem pedir graças’”, lembra Barbosa.
Foto: Mateus Monteiro
De Roma vieram até decretos de excomunhão do Padre, como conta Casimiro, embora não tenham sido aplicados, e novas sanções com ordem de restrição também eram mandadas de lá. Havia esforço para combater o acontecimento em Juazeiro, como se o lugar fosse um antro de fanatismo que depunha contra a pureza da religião católica no Ceará. Os paninhos litúrgicos, que foram manchados de sangue durante as transformações da hóstia na boca de Maria de Araújo, foram perseguidos e destruídos pela Igreja, apagando possíveis provas. Ralph Della Cava, pesquisador sênior adjunto do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Columbia University, em Nova York, e autor do livro Milagre em Joaseiro, destaca que mesmo sendo "afastado" pela hierarquia por sua crença nos milagres, o Padre nunca se afastou da Igreja. “Ao contrário, [ele] obedecia aos duros decretos impostos por Roma e pelas autoridades eclesiásticas locais e não parou de procurar a restituição de suas ordens sacerdotais.” Durante toda a vida, Padre Cícero tentou revogar a pena, tendo ido até o Vaticano em 1898, mas não conseguiu.
Posicionamento da Igreja
O Brasil, principalmente o Ceará, era visto como lugar de uma religiosidade pouco desenvolvida, mas a fé do povo não procurou entender as questões dogmáticas da Igreja, e a romaria crescia mesmo com a antipatia de alguns religiosos. Os romeiros vinham para Juazeiro, ocupavam a igreja e diziam: ‘Viva o Padre Cícero’. Mas nenhum padre ousava entoar junto porque cometeria uma desobediência grave. 
O nordestino chegava no Juazeiro, mesmo sem falar do milagre porque era proibido falar, mas com a certeza que se tratava de uma terra sagrada, um lugar sagrado, e assim se multiplicavam as romarias. Enquanto isso, a Igreja continuava fazendo restrições ao Padre, e além da questão do fenômeno com Maria de Araújo, também advertia sobre o acúmulo de riquezas, já que ele tinha muitas terras que foram doadas para os Salesianos, uma congregação da Igreja Católica, após sua morte.
Afastado da Igreja até o fim da vida, o Padre Cícero dedicou-se à política, procurando desenvolver a cidade fundada por ele mesmo. Faleceu em 20 de julho de 1934, aos 90 anos, e está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Na visão do pesquisador Gilmar de Carvalho, Padre Cícero foi e é o pastor que cuida e se preocupa com seu rebanho, estando sempre acima de qualquer rótulo. “Não adiantou a resignação, a tolerância, a paciência. Ele poderia ter liderado um cisma, mas preferiu se submeter às normas da Igreja. Ele foi humilhado, desautorizado, rejeitado. Mas manteve-se fiel até a morte”, destaca.
Após a morte do Padim, Della Cava destaca que “era do Padre que se pedia uma graça e, quando essa era alcançada, era a ele que se pagava a promessa”. De forma gradativa, a Igreja local passou a enxergar o Padre, que fora tão combatido outrora, como um exemplo de sacerdote, ressaltando a bondade do homem sereno, a preferência pelos pobres do pastor solidário e o estar próximo do povo que o caracterizam como santo popular.
A mudança do posicionamento da Igreja, de acordo com Carvalho, foi resultado da atuação pioneira e atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, que foi por quase 50 anos vigário do Juazeiro. A ousadia do monsenhor abriu portas para aqueles que vieram trabalhar depois a imagem do Padre
A beata
Não se sabe tanto sobre a beata Maria de Araújo como se sabe da vida de Padre Cícero. Sua personalidade é marcada pelas características que contribuíram, na época, para a discriminação da igreja com o suposto milagre. Sabe-se que era negra, pobre e analfabeta. Foi, de acordo com Della Cava, uma das moças que viveram em uma das 22 Casas de Caridade do Padre Ibiapina, missionário da região, e daí também vem o título de beata.
Após o acontecimento do milagre, foi exigido que ela fosse para Barbalha, depois para o Crato, onde ficou enclausurada em uma casa. “A primeira coisa que a Igreja fez foi dar esse reforço de discriminação sobre a figura da protagonista e as características de sua personalidade terminaram por facilitar a posição da Igreja em martirizá-la, até com tortura física”, conta Renato Casimiro.
O túmulo da Beata, que morreu em 1913 e foi sepultada no interior da Capela Senhora do Perpétuo Socorro – hoje Paróquia Nossa Senhora das Dores Basílica Santuário -, foi violado e não há indícios de onde estejam seus restos mortais. Mesmo com tanto mistério e polêmica, dom Panico afirma que “se é para falar de milagre, é a beata Maria de Araújo que teria mais participação e influência neste acontecimento”. Na visão dele, o Padre Cícero pode ter sido um instrumento, mas não é possível afirmar que o milagre veio dele, e acrescenta: “Um milagre nunca é obra do homem ou da mulher, é sempre obra de Deus”.

Política e Cangaço

Proibido de celebrar missas, o Padre Cícero entrou na vida política buscando desenvolver Juazeiro do Norte, que era um distrito da cidade do Crato, incentivado por pessoas do comércio, da política local e por proprietários de terra. Os moradores não viam retorno dos impostos que pagavam e não havia sinais evidentes de progresso, exceto os que o Padre Cícero havia plantado, como traçados de ruas.
Com a emancipação, Padre Cícero assume o cargo de prefeito por um longo período, de 1911 a 1926, com uma pequena interrupção. “A cidade passou a ter vias de tráfegos, dezenas de veículos já circulavam, tinha energia elétrica. Entre essa fase da política até o final da vida, ele gozou do afeto e carinho do povo nordestino que, gradativamente, o elegeu à condição de um santo, de um homem bom, puro, alguém que realmente merecia confiança”, explica Renato Casimiro.
Em 1911, o Padre Cícero foi escolhido como líder de conciliação sobre a violência do Cariri, com o Pacto dos Coronéis, por isso ganhou essa designação. Para o pesquisador Gilmar de Carvalho, ele não teve nada a ver com os clichês dos coronéis sertanejos. “Ele os reuniu porque era hierarquicamente superior, e visto como um sacerdote, mesmo com toda a máquina da Igreja pronta para triturá-lo. Não usou a política para benefícios próprios, nem para auferir vantagens. Passou pelo autoritarismo sem se deixar contaminar.”
O professor e escritor Ralph Della Cava acrescenta que o coronelismo marca a história do Padre Cícero de maneira exagerada e até injusta. “Tal distorção se atribui a uma literatura composta desde os primórdios da história de Juazeiro como ente independente, seja por ressentidos políticos, seja por ‘modernistas’, seja por jornalistas à procura de um furo.”
Prefeito Cícero e Juazeiro
A história de Juazeiro do Norte se confunde com a história de Padre Cícero, já que o religioso com Floro Bartolomeu, médico baiano que se mudou para a localidade, são apontados como os principais responsáveis pelo desenvolvimento do Município.
Ralph Della Cava explica que Juazeiro do Norte se tornou alvo de retirantes, migrantes e de refugiados de conflitos e disputas violentas entre coronéis rivais do Nordeste inteiro. Vieram também os desamparados da lavoura de cana-de-açúcar em falência e da indústria amazônica de borracha. “Com este influxo humano a Juazeiro, o Padre dava não só conselhos, mas também emprego”, enfatiza.
O pesquisador Gilmar de Carvalho acrescenta que alguns romeiros pediam autorização para se fixarem na Cidade e, mais ainda, pediam para que o Padre desse a eles uma ocupação. “Eram destinados à lavoura regional, à construção de açudes, barragens, estrada de ferro e rodovias; às artes e indústrias que floresceram como em nenhuma outra parte do Estado, permeando e fazendo crescer a cidade a uma velocidade inusitada”, afirma Della Cava.
Dom Panico, bispo do Crato, reconhece Padre Cícero como o homem que está no alicerce da transformação de um vilarejo em uma cidade. “Se, hoje, Juazeiro é o que é, deve isso ao Padre Cícero, ou teria sido uma cidade como tantas outras aqui do sul do Ceará. Foi o primeiro prefeito da Cidade, foi quem organizou a Cidade dentro dos critérios mais modernos. Uma Cidade que nasceu da fé, que nasceu da devoção do povo e continua crescendo por causa desses motivos.” 

Um novo momento

A irmã Annette não poderia ser mais clara na hora de explicar o que aconteceu no dia 13 de dezembro de 2015, quando o bispo dom Fernando Panico anunciou a carta que recebeu de Roma, assinada pelo papa Francisco. “Não é uma reabilitação, não é uma canonização. É um reconhecimento dos valores, das virtudes do Padre Cícero a partir da fé do romeiro, a partir da realidade de hoje, dos frutos da ação pastoral dele.” Na ocasião, a notícia foi recebida com muitos aplausos e com uma festa por parte dos romeiros. Para a Irmã, era como se eles dissessem: “Eu já sabia que a igreja reconheceria as virtudes do Padre Cícero”.
“Apesar de ser popular a fé que os romeiros vivem, é também a fé da Igreja Católica, verdadeira, autêntica, como o papa Francisco falou na carta que me enviou”, explica o bispo dom Fernando Panico. O processo, segundo ele, iniciou-se, formalmente, em 2006, quando o próprio apresentou ao papa Bento XVI mais de oito volumes cheios de documentos, memórias e a história do Padre Cícero. O processo foi introduzido depois de anos de estudos de uma comissão pedindo ao papa a reabilitação do Padim.
Com a chegada do documento de reconciliação do Vaticano, a igreja local comemorou por se tratar de uma reconciliação histórica, que leva em conta todos os aspectos da história do Padre Cícero como ser humano e sacerdote. “No ano da misericórdia, o papa falou em reconciliação. É uma graça maior do que a graça que pedimos”, diz o bispo.
Nos bastidores
Segundo Renato Casimiro, o pedido de reabilitação do Padre Cícero chegou, primeiramente, às mãos do papa Bento XVI, bem antes de ele ser papa. “Durante muito tempo, a gente ficava mandando correspondências, petições, abaixo-assinados, às vezes, juntavam-se milhares de assinaturas para que Roma analisasse a questão do Padre Cícero, e isso foi chegando lá.”
Em paralelo aos pedidos de perdão à Igreja, Juazeiro do Norte conquistou a simpatia do mundo. Franceses, belgas, americanos, alemães e outros estudiosos produziram (e produzem), conforme conta Casimiro, conteúdos relacionados ao Padre Cícero. “Há um tratamento diferenciado hoje no sentido de realmente aproximar mais a Igreja do Juazeiro a essas relações da igreja universal”, completa Casimiro.
Beatificação e canonização
Após a reconciliação da Igreja com o Padre Cícero, uma pergunta paira no ar: seria o próximo passo a beatificação e, em seguida, a canonização do Padim? Segundo a irmã Annette, nada é citado na carta recebida em 2015, mas, a partir do momento que a Igreja dá esse passo, é possível, com o tempo e as circunstâncias, que sejam reavaliadas as ações do Padre Cícero como sacerdote, deixando de lado os pontos mais controversos e evidenciando aspectos positivos de sua vida e de sua figura.
“É a partir da fé do povo que se reavalia a personalidade e ação do Padre Cícero. O papa é extremamente concreto, ele não desvaloriza as pesquisas científicas e históricas, mas ele diz que o que importa é ver os resultados da ação pastoral/sacerdotal do Padre Cícero.” Assim, a partir dessa nova visão da Igreja em relação ao Padre Cícero, pode ou não haver o pedido de um processo de beatificação e canonização do Padim por parte do bispo do Crato, seja de dom Fernando ou de seu sucessor. 

Passo a passo para se tornar santo

O primeiro passo do processo de beatificação e de canonização é, segundo Renato Casimiro, a declaração pública de que a Igreja considera Padre Cícero servo de Deus.
Para que ela seja feita, é necessário que o bispo do Crato emita uma petição acerca do tema. Segundo o bispo, não existe um tempo pré-determinado para que esse passo seja dado e, no caso do Padre Cícero, seria necessário complementar o trabalho que foi feito no pedido da reabilitação. “Já estamos com o trabalho quase pronto. Então é só aprimorar, formatar tudo que já temos e que não pode ser inventado, [tudo] deve ser fidedigno aos documentos. Uma vez completado o processo diocesano, mandaremos para Roma e, lá mesmo, sem a necessidade de vir alguém para cá, [a Igreja] dará continuidade. A menos que Roma sinta falta de informação e nos diga: ‘estuda melhor esse ponto, veja melhor esse aspecto’.”
Em seguida, o Padim deve se tornar venerável. Casimiro diz que, até hoje, a Igreja ignora de certa maneira que exista essa devoção. “A devoção do povo nordestino pelo Padre Cícero é uma coisa ilegítima, porque ainda depende de nós.”
Após a veneração, é possível iniciar o processo de beatificação, o caminho mais seguro em torno da santificação e, portanto, da canonização. Casimiro explica, porém, que esse processo depende de trâmites legais e mais formais, que analisam fatos históricos e memoráveis, inclusive se há milagre atribuído ao candidato.
A duração do processo de beatificação é imprevisível; a sua solicitação também. Mas, segundo Casimiro, a postura do homem religioso e nordestino é “não deixar por menos, porque ele tem estratégias importantes, uma estratégia é a expressão sincera dessa devoção”. Um exemplo que o historiador cita foi o retorno da imagem do Padre Cícero para a Igreja Matriz de Juazeiro do Norte (Paróquia Nossa Senhora das Dores Basílica Santuário), três dias antes da Romaria das Candeias, em 2 de fevereiro de 2016.
Esperança
Mesmo sem nenhuma certeza acerca do processo de beatificação e de canonização do Padre Cícero, na opinião do historiador, essas etapas devem acontecer. Segundo análise de Casimiro, o papa Francisco tem dado continuidade ao que os papas anteriores têm feito: beatificar e canonizar um grande número de pessoas. Questões heroicas, de pessoas que deram a vida pela defesa da religião e de suas convicções marcam esses “novos” santos. Já o bispo pede paciência e uma melhor "digestão" dessa “conquista” atual, a reconciliação do Padre Cícero.
Para Renato Casimiro, independente de haver ou não um processo de beatificação, a relação do nordestino com a Igreja não irá mudar. “A gente sempre escuta dos romeiros: ‘Mas, me diga uma coisa: será que o Santo Padre não sabe que o Padre Cícero é santo? Por que não disseram ainda que ele é santo?'” Segundo o historiador, essa convicção popular só aumentou com o passar dos anos. “A rigor, a conduta do sertanejo, do romeiro, vai continuar a mesma, agora um pouco mais inflamada.” 
Curiosidades 
 A beatificação é o primeiro passo para tornar alguém santo; a canonização é o segundo e último. “Primeiro a pessoa se torna bem-aventurada e depois, santa. Uma vez que o papa declarou beata uma pessoa, Roma, então, pode dar continuidade ao processo para torná-la santa”, resume dom Fernando. A declaração da santidade de uma pessoa é atribuição do papa. Caso ele não possa ir pessoalmente à cidade, ele delega outra pessoa, geralmente o cardeal. No pronunciamento, conforme explica o bispo, ele afirma que, a partir daquele dia, a pessoa declarada santa recebe a veneração e admiração que são devidas a ela.
A celebração da beatificação ou canonização acontecia na sede de origem do pedido e, em Roma, acontecia apenas a canonização. Algumas mudanças, porém, aconteceram. “Roma apropriou-se da glória de poder proceder, seja beatificação ou canonização”, explica o bispo dom Fernando Panico. Quando o papa Bento XVI assumiu, mais uma alteração, que segue até hoje: os beatos são declarados na cidade onde eles viveram e morreram.
Pontos de vista
O que estudiosos e historiadores dizem acerca da possível beatificação e canonização do Padre Cícero:
Foto: Ralph Della Cava, pesquisador da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos
Ralph Della Cava, pesquisador da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos

As rodas das burocracias andam bem devagar. As do Vaticano não são nada diferentes. Por exemplo, a recente reconciliação do Padre Cícero levou pelo menos um decênio de petições e precisou da intervenção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, do bispo diocesano do Crato e de delegações ao Vaticano de numerosos fiéis do Juazeiro e do Cariri. Tais iniciativas datam a partir de 1898!
O elemento mais positivo e alentador foram as palavras do papa Francisco. Segundo o que foi citado nos jornais, o Papa da Misericórdia disse que o Padre Cícero era “um padre exemplar”, um sacerdote para a “Igreja que está emergindo” e para uma igreja “de nossos tempos”. É que ele será logo ou mais tarde beatificado ou canonizado? Tampouco ninguém pode prever. Mas, por enquanto, Padre Cícero é para os seus devotos o que ele sempre foi: o Santo do Juazeiro.
Foto: Gilmar de Carvalho, pesquisador e jornalista da Universidade Federal do Ceará
Gilmar de Carvalho, pesquisador e jornalista da Universidade Federal do Ceará

A reconciliação era inadiável. Demorou muito. Do meu ponto de vista, esta reconciliação é fruto de muitos esforços. Ressaltaria a atuação pioneira e atrevida do monsenhor Murilo de Sá Barreto, por quase 50 anos vigário do Juazeiro. Monsenhor Murilo pedia palmas e dava vivas ao Padre, celebrava a Missa dos Chapéus, reforçava o uso do rosário e sedimentava uma imagem do Padre Cícero, a partir dos valores da "nação romeira". Depois dessas ousadias e quebras das arestas, ficava mais fácil trabalhar a imagem do Padre, pelos que viriam depois.
O romeiro sempre santificou o Padre Cícero e recorreu a ele nos momentos difíceis. Não vai ser difícil beatificá-lo ou canonizá-lo. Os milagres são numerosos. Estão no rol dos ex-votos, nos folhetos de feira, nas narrativas orais. Para os romeiros, Cícero sempre foi santo. A reconciliação com a Igreja é mais importante para a Igreja nestes tempos de avanço do pentecostalismo evangélico. Cícero é uma preciosa “arma” junto aos segmentos populares, que mantêm com ele uma relação de paixão e fé.

Infográfico

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