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domingo, 3 de abril de 2016

Luiz Antonio Barreto - Textos sobre o cangaço

Luíz Antônio Barreto
Jornalista, historiador 
Luíz Antônio Barreto (1944-2012) foi diretor do Instituto Tobias Barreto e membro da Academia Sergipana de Letras. Ele já foi secretário de Estado da Cultura,secretário de Aracaju da Educação, diretor da Galeria Álvaro Santos, secretário de Educação, assessor do Instituto Nacional do Livro (INL), superintendente e diretor do Instituto de Documentação Joaquim Nabuco, Diretor da Fundação Augusto Franco e Diretor do instituto de Filosofia Luso-Brasileira (Portugal).

Como jornalista, trabalhou no Correio de Aracaju,O Sergipe Jornal, Folha Popular, A Cruzada, Correio de Sergipe, Jornal da Cidade, Gazeta de Sergipe e Revista Perspectiva.

Abaixo temos os artigos a respeito de Lampião e cangaceiros, no Blog do escritor


Volta Seca, o Cangaceiro (sergipano) de Lampeão

"São desencontradas as informações sobre Volta Seca, cangaceiro sergipano e um dos mais conhecidos e destacados cabras do bando de Lampeão. Em 29 de abril de 1929, quando assistiu missa em Poço Redondo, com seus “rapazes,” o próprio Virgulino Ferreira da Silva entrega ao padre Artur Passos, então vigário de Porto da Folha, uma folha de papel pautado, escrita a lápis, com os nomes, os apelidos e as idades dos integrantes do seu grupo de dez cangaceiros.

No precioso papel, que é documento daquela que pode ser considerada a primeira entrada de Lampeão em Sergipe, o último a ser citado, com o nome de Antonio Alves de Souza, e a idade de 18 anos, com a observação “menino,”, e tem o apelido de Volta Seca.

Preso no início de 1932 e levado para a Casa de Detenção da Bahia, Volta Seca foi procurado por alguns sergipanos interessados em recolher informações sobre o cangaço no Nordeste e sua presença em Sergipe. Joel Macieira Aguiar, representando o Jornal de Notícias, acompanhado de Hernani Prata e de João Prado, estudantes de Direito na Bahia, encontrou Volta Seca tocando realejo, entrevistando-o, em começo de abril de 1932, fixando estes dados pessoais: sergipano, nascido no Saco Torto, povoado de Itabaiana, filho de Manoel Santos, que trabalhou no Engenho Contadouro, de propriedade de Antonio Franco, freqüentou o Engenho Central, onde trabalhava Antonio de Engraça, conheceu Aracaju, e conheceu bem sua terra, Itabaiana, e Malhador. Volta Seca declarou, ainda, que entrou para o cangaço com 12 anos, a convite do próprio Lampeão, em Gisolo, no sertão da Bahia.

12 anos depois, em março de 1944, Joel Silveira, já um jornalista importante no Rio de Janeiro, viaja a Salvador, e na Penitenciária da Bahia entrevista Volta Seca e outros cangaceiros presos, como Ângelo Roque, Deus Te Guie, Caracol, Saracura, Cacheado. Joel Silveira anota o nascimento de Volta Seca em Itabaiana e diz que ele entrou no cangaço com 14 anos. Um documentário sonoro, feito na década de 1950, gravado em 1957, narrado por Paulo Roberto, locutor da Rádio Nacional, afirma que Volta Seca tinha o nome de batismo de Antonio dos Santos, e que entrara para o cangaço com apenas 11 anos. A Todamérica grava o documentário comercialmente, apresentando Volta Seca como compositor e intérprete de diversas músicas que estão ligadas ao ciclo dos cangaceiros, como: Se eu soubesse; Sabino e Lampeão; Mulher Rendeira; Acorda Maria Bonita e outras.

Há, portanto, divergência de nome, idade e data de entrada de Volta Seca no grupo de Lampeão.
Considerado valente, tendo brigado com o próprio chefe, Volta Seca não mereceu elogios do padre Artur Passos, no encontro de Peço Redondo em 1929. O padre, que demonstrou simpatia com Moderno (Virgínio Fortunato, cunhado de Lampeão) e com o próprio Virgulino, não gostou de Volta Seca, e sobre eles diz: “Não têm, inclusive Lampeão, cara repelente, como imaginamos nos bandidos em geral, devendo frisar, porém, o olhar especial de um deles, o fedelho de 16 a 18 anos, que os acompanha.”  

No contato com Joel Silveira, Volta Seca, sob o testemunho de antigos companheiros, reafirmou sua coragem, disposição, e narrou episódio de uma briga com o chefe, em 1931, por causa de um socorro dado a Bananeira, ferido em combate. Lampeão achava que o atraso poderia ocasionar problemas sérios, de confrontos com a polícia, enquanto Volta Seca agia solidariamente, sem querer deixar para trás o companheiro atingido por tiros. O ambiente ficou tenso, e por pouco os dois cangaceiros não se enfrentaram. A fama de valentia, contudo, ampliou-se dentro e fora do grupo, apesar de Volta Seca ganhar, também, uma imagem lúdica, de compositor e de cantor, responsável por salvar parte do repertório dos grupos de cangaceiros. O disco da Todamérica é um bom exemplo, e foi reproduzido, em parte, décadas depois, por um álbum, long-play, dos Estúdios Eldorado, de São Paulo, com o título de A Música do Cangaço. Nele, além das canções atribuídas e cantadas por Volta Seca, já citadas, figuram artistas como Luiz Gonzaga, Sérgio Ricardo, Teca Calasans e  Antonio Carlos Nóbrega.

Além de tocar realejo, compor e cantar, Volta Seca foi submetido, na prisão, ao trabalho forçado de fazer flores e outras artesanias, predominantemente feitas por mulheres. Ele não se abateu, casado, pai de um filho, ele esperava cumprir sua pena de 20 anos, para deixar a prisão e recomeçar a vida. E o fez pela música, ainda hoje uma referência, tomada por empréstimo por Luiz Gonzaga e por outros artistas nordestinos, que concorreram para fixar uma estética do cangaço, da qual Frederico Pernambucano de Mello é especialista."

Lampeão e Zé Baiano em Alagadiço 

Virgulino Ferreira da Silva
apelidado de Lampeão

Virgulino Ferreira da Silva morreu na Gruta do Angico, no atual município de Poço Redondo, em 28 de julho de 1938,...

Virgulino Ferreira da Silva - apelidado de Lampeão
Virgulino Ferreira da Silva morreu na Gruta do Angico, no atual município de Poço Redondo, em 28 de julho de 1938, mas tem memória viva em todo o Estado de Sergipe, por onde circulou, anos seguidos, com seus “rapazes”, também conhecidos como “cabras”, desde que entrou em território sergipano, em Carira, provavelmente em 1º de março de 1929. Foi uma entrada curta e logo o cangaceiro retornou à Bahia. Voltaria no mesmo mês de março, e no dia 29 passava por Ribeirópolis, depois por Pinhão e finalmente chegava ao Alagadiço, no município de Frei Paulo, parecendo que procurava alguém. Frei Paulo passou a contabilizar outras entradas, fornecer gêneros, incluindo peças de cutelaria, e enfrentar Zé Baiano com seu ferro quente, marcando as suas vítimas, até vencê-lo pelas mãos do grupo de Antonio de Chiquinho, no Alagadiço.
A visita do dia 19 de abril, logo pela manhã cedinho, pegou desprevenida a pequena povoação de Poço Redondo, onde assistiu Missa, celebrada pelo padre Artur Passos, vigário de Porto da Folha. Foi um encontro marcante. De um lado, Lampeão deixando no papel pautado a lista dos integrantes do seu grupo – nome, apelido e idade, e alguma informação de parentesco -, de outro lado o padre, refeito do susto, guardando a impressão que teve, levando-a para pequenos jornais do interior de Sergipe e de Alagoas.

Lampeão entraria em Capela e tornaria o ano de 1929 a marca cronológica de sua presença, freqüente, em Sergipe, fazendo amizades, criando uma rede de coiteiros, durante 9 anos, até tombar na Gruta do Angico, ao lado da mulher e de alguns dos seus companheiros de cangaço. A fama de Lampeão espalhou-se rapidamente, e já em 1930 apareciam, em Porto da Folha, algumas pessoas que se diziam emissários do capitão e de Corisco, recolhendo dinheiro de pessoas incautas. Em janeiro de 1931 Manuel Luiz de Jesus, antes conhecido como Manuel dos Cajueiros, nascido no Cágado, município de Frei Paulo. “Corisco Preto” ou “Corisco Negro”, como passou a ser identificado, formou com irmãos e amigos um grupo que roubava.em Frei Paulo, até ser preso na Penitenciária de Aracaju, de lá fugindo e voltando ao crime, sendo novamente preso em Simão Dias, em 1935, e mandado de volta ao xadrex, até a década de 1940. O próprio Virgulino Ferreira da Silva, em setembro de 1931, foi denunciado em processo, tendo sua prisão decretada, pelo Juiz Municipal de Nossa Senhora das Dores, e confirmada pelo Juiz de Direito interino de Japaratuba, Carlos Vieira Sobral, acusado de matar o lavrador José Elpídio dos Santos, em  Cruzeiro das Moças, e ter seqüestrado duas mulheres, como ato de vingança.

As andanças de Lampeão em Sergipe, seu trânsito livre em certas e determinadas áreas, suas amizades, seus companheiros recrutados em Poço Redondo e em outros lugares sergipanos, ainda provocam interesse dos pesquisadores e estudiosos do País, notadamente do Nordeste, onde a saga dos cangaceiros vive no imaginário popular, incorporada à memória social. O Encontro Cultural de Alagadiço (Frei Paulo), reunindo alguns estudiosos, capitaneados por Frederico Pernambucano de Melo, a família de Lampeão, especialmente Expedita Ferreira e Vera Ferreira, filha e neta do Capitão Virgulino, e outros interessados,  bem demonstra a atualidade do ciclo.

Com 69 anos de morto, Virgulino Ferreira de Silva ainda é um personagem essencial à compreensão da sociologia e da cultura do Nordeste. È preciso que o contexto nordestino seja melhor conhecido e entendido, antes que se avolumem os clichês que fazem da imagem do cangaceiro um pêndulo, entre o heroísmo e a maldade, como se não fosse possível retratá-lo, com suas contradições, como alguém que transitou entre a natureza e a cultura, entre o passado e o futuro, entre o poder delegado e o mando próprio, insurgente, ilegal. Ao cobrar vingança, Lampeão estava estribado numa velha pena portuguesa, ao marcar, com suas iniciais JB, o rosto de mulheres de cabelo curto ou de vestido curto, Zé Baiano também valia-se de outra pena portuguesa, constante das Ordenações do Reino, aplicada comumente contra os mouros, banida pelo Rei D. João III, conhecido como O Piedoso, por Alvará de 27 de fevereiro de 1523, mas que voltou a vigorar com as Ordenações Filipinas, conjunto de leis e penas utilizadas durante o domínio espanhol em Portugal. Diz a lei:

            “Mandamos que nenhum cristão, que fosse convertido da Lei dos Mouros à nossa, sendo forro, nem mouro forro, de quaisquer partes que sejam, venha nem entre nestes Reinos e Senhorios, posto que diga, com vem com intenção de negociar, sob pena de, sendo eles achado das arraias (limites) para dentro, ser cativo de quem o acusar, publicamente açoitado, e ferrado no rosto, para se saber como é cativo, e perderá sua fazenda ( seus bens).”

Lampeão e as Ordenações do Reino

Zé Baiano
Tornou-se comum entre jornalistas e escritores a reprodução de parte de um discurso desfavorável sobre Virgulino Ferreira da Silva, pernambucano nordestinado no cangaço, que morreu há 68 anos, em Sergipe (gruta de Angicos, município de Poço Redondo, 28 d
 Tornou-se comum entre jornalistas e escritores a reprodução de parte de um discurso desfavorável sobre Virgulino Ferreira da Silva, pernambucano nordestinado no cangaço, que morreu há 68 anos, em Sergipe (gruta de Angicos, município de Poço Redondo, 28 de julho). Atribui-se, generalizadamente, a ele a “perversidade” de marcar com ferro quente o rosto dos desafetos, quando os episódios documentados dão autoria a Zé Baiano, como registram Ranulfo Prata na primeira edição de Lampião (Rio de Janeiro: Ariel, 1934) e Frederico Pernambucano de Mello em Guerreiros do Sol (São Paulo:  A Girafa Editora, 2004). Desde o escritor sergipano, que corre mundo uma foto de uma mulher, negra, marcada no lado esquerdo do rosto, com as iniciais JB, reproduzida por Frederico Pernambuco de Mello.

Não se trata de anomalia comportamental dos cangaceiros de Lampeão. Marcar o rosto com a brasa do ferro era uma pena antiga, do reino português, que Dom João III, o piedoso (1521-1557) extinguiu, através do Alvará de 27 de fevereiro de 1523, mas que voltou a vigorar com as Ordenações Filipinas, conjunto de leis e penas vigorante durante a ocupação espanhola em Portugal. Diz a lei: 

 “ Mandamos que nenhum cristão, que fosse convertido da Lei dos Mouros à
nossa, sendo forro, nem Mouro forro, de quaisquer partes que sejam, venha,
nem entre  nestes Reinos e Senhorios, posto que diga, que vem com intenção
de negociar, sob pena de, sendo eles achado das arraias (limites) para dentro,
ser cativo de quem o acusar, publicamente açoitado, e ferrado no rosto, para
se saber como é cativo, e perderá sua fazenda (bens).”

As motivações portuguesas para a pena de ferrar o rosto com ferro em brasa são religiosas, políticas e jurídicas, ainda que no sertão nordestino do Brasil o fundo moral prevaleça, justificando o uso da pena por integrantes do ciclo do cangaço. Para as populações assustadas que viveram os anos turbulentos do cangaceirismo, a pena parecia remédio para certos pecados cometidos pelas mulheres, como cabelo curto, saia ou vestido curto, que depreciavam a imagem feminina.

Outras leis e penas, transplantados para o Brasil – Ordenações Manuelinas, Filipinas, Afonsinas, Leis Extravagantes de D. Duarte – vigoraram tanto tempo que terminaram folclorizadas pelo uso social. Nas academias ainda ensinam que o costume é fonte do Direito e que em conseqüência existe um Direto Consuetudinário. O enunciado tem validade, mas é preciso observar que no Brasil as Ordenações do Reino vigoraram por tanto tempo que terminaram, em muitos aspectos, fonte do costume, como no caso do ferro no rosto, como pena.

Outra pena, a de projetar vingança nos membros da família, quando o desafeto não é encontrado, freqüentou o elenco de práticas dos cangaceiros, capitaneados por Lampeão. São muitas as estórias que circulam na oralidade, dando conta que ao não encontrar um adversário que procurava para cobrar dinheiro ou tomar satisfações, o cangaceiro humilhava, feria ou matava quem encontrasse, que fosse do mesmo sangue. Em Olindina, antes Nova Olinda e mais remotamente Mocambo, na Bahia, onde o Conselheiro construiu igreja e cemitério, conta-se que o grupo de Lampeão obrigou as moças a dançarem a “dança do dedo”, usando os dedos das mãos, alternadamente, entre a boca e o cu, enquanto a rapaziada cantava, dando ritmo ao movimento das mãos. Dizia-se, também, que um velho morador daquele lugar ficou de quarto, recebeu sela, e foi esporado por um dos rapazes do grupo. 

Também se ouvia dizer que o próprio Virgulino Ferreira da Silva aprendeu ali a tocar concertina, pequena sanfona de 8 baixos, também conhecida como “pé de bode”, usada para animar as festas das noites luarentas do Nordeste. Atribuiu-se, ainda, a Lampeão a frase amando e querendo bem, que parece ter origem numa sextilha recitada pelo cabra Mariano, depois de uma incursão pela Fazenda Belém, no município de Porto da Folha:

         “Rapazeada de Belém
         quando os macacos chegarem
         digam que eu vou por aqui
         por este sertão além
         cantando, gozando,
         amando e querendo bem.”

A informação foi dada no jornal O Rosário, de 30 de outubro de 1936, pelo padre Artur Passos, que foi vigário de Porto da Folha e conheceu Lampeão e seus rapazes em Poço Redondo, em 1929.

68 anos depois de morto, Lampeão vive na memória do povo.

LAMPIÃO EM SERGIPE *

Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião como assinava, morreu em Sergipe em 28 de julho de 1938. Atacado de surpresa por força alagoana na Gruta do Angico, município de Poço Redondo no sertão...
Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião como assinava, morreu em Sergipe em 28 de julho de 1938. Atacado de surpresa por força alagoana na Gruta do Angico, município de Poço Redondo no sertão “sanfranciscano”, seu corpo, depois de decepada e levada a cabeça como troféu de guerra, ficou exposto naquela região sergipana com o da sua companheira Maria de Déa, ou Santinha, a Maria Bonita, e cangaceiros- uma dezena deles - que participavam da reunião dos grupos naqueles dias de desconfiança. A cena da morte de Lampião aconteceu quase dez anos depois das suas primeiras e famosas incursões em Sergipe, em 1929, que representam um capítulo especial na vida do cangaceiro e das quais se ocuparam, mais recentemente, Oleone Coelho Fontes da Bahia, Antonio Amaury de São Paulo e Vera Ferreira, filha de Expedita e neta de Virgulino e de Maria Bonita, de Sergipe. Carira, no oeste sergipano, vizinho ao sertão baiano, parece ter sido o primeiro ponto da presença de Lampião com seu grupo, em Sergipe em 1º de março de 1829 e marcaria um roteiro de visitas por vários municípios do Estado, no vai e vem cíclico que ainda não foi devidamente mapeado e nem registrado textualmente como deveria. A visita de Lampião a Carira foi rápida, precedida de uma comunicação ao Delegado e indicava uma viagem maior chegando até Frei Paulo. Na madrugada do dia 2 de março, depois de conversar com o povo, dar sua versão de como entrou no cangaço e zombar da Polícia, que chegava nos lugares sempre depois de sua saída, Lampião acompanhado de 6 homens, voltou para o interior baiano passando pelas terras do Coronel João Sá, chegando já com 10 homens na Fazenda Capitão, em Jeremoabo. A visita seguinte, a Poço Redondo em 19 de abril de 1929, permitiu um encontro de Virgulino Ferreira da Silva com o padre Artur Passos, Pároco de Porto da Folha então celebrando missa naquele povoado como fazia periodicamente. Um diálogo duro entre o cangaceiro e o padre, marcou a presença do grupo em frente da Igreja quando Lampião pediu permissão para assistir missa com seus “rapazes”. Para o padre celebrante, virando-se do altar para o povo viu além do sol fora da capela, cabeças descobertas, sem armas, de braços cruzados, atentos, respeitosos, olhos pregados nele (o Capitão), “Esses homens cujas vidas têm sido um amontoado de crimes, delitos e abominações, mas homens todavia”. Lampião tomou lápis e papel e fez uma lista dos seus homens informando nome, apelido, idade e entregando-a ao padre com observações de defesa. Tinha Lampião 29 anos e estava acompanhado do seu irmão Ezequiel, o Ponto Fino, de 20 anos, Virgínio Fortunato, o Moderno, com 28, Luiz Pedro da Silva, o Esperança, com 24, Cristino Gomes da Silva, o Corisco, com 23, Mariano Gomes da Silva, o Pernambuco, com 25, Hortêncio Gomes da Silva, o Arvoredo, com 24, José Alves dos Santos, o Fortaleza, sem indicação de idade, José Vieira da Silva, o Lavareda, com 27, e Antonio Alves de Souza, o Volta Seca, com 18. Diante de Virgulino Ferreira da Silva, o padre Artur Passos diz: “Alto, acaboclado, robusto, andar firme e compassado, cabeça um tanto inclinada, o olho direito inutilizado, com uma grande mancha branca, olhos brancos de aro de ouro, ou metal dourado, um sinal preto na face direita. Na cabeça, grande, alto, vistoso chapéu de couro, ainda novo, bem trabalhado, a imitar os antigos chapéus de dois bicos, com as pontas para os lados, tendo as largas abas da frente e de detrás erguidas e enfeitadas. Uma estreita tira de couro, ornada, o prende a testa, uma outra à nuca, e uma terceira, o barbicacho, aos queixos. Este chapéu fica, assim, bem seguro e apesar da altura não deve cair com facilidade. Cabelos estirados, cortados à Nazarena, inteiramente bem barbeado. Blusa e calças - perneiras de caqui. Aos pulsos – guarda – pulsos – de couro, de uns quatro dedos de largura. Anéis em todos os dedos, teria na ocasião uns 5 ou 6 na mão direita e uns 6 ou 8 na mão esquerda.” Padre Artur Passos dá em seu testemunho dos jornais, longa descrição da figura quase cavalheiresca do cangaceiro, já integrada ao imaginário do povo brasileiro, especialmente nos estados do Nordeste, onde era tido como “governador” e como “interventor” do sertão. O vigário de Porto da Folha continua construindo a imagem que fez de Lampião: “Duas grandes cartucheiras de um lado e duas iguais do outro, cruzam-se sobre o peito. A cintura, à quisa de cinturão, uma larga cartucheira com dois ou três ordens de cartuchos. Tudo bem enfeitado de ilhoses e placas de metal. Na mão, inseparavelmente, a arma terrível que tantas mortes já vomitou, no rápido crepitar, no lampejar contínuo do qual, segundo consta, se origina o seu nome de guerra. Esta arma não é rifle. É sim um mosquetão de cavalaria, ou coisa semelhante, arma de cinco tiros que tem o ponto curvo. A frente, passando entre as cartucheiras, o já conhecido punhal, de uns três palmos, cabo e bainha de metal branco, arma forte, bonita, mau grado a aplicação que tem, de ótima têmpera. Ao lado e às costas, pendentes de fortes bandoleiras, as sólidas mochilas, bem recheadas de balas, formando uma larga e saliente roda, de grande peso. Tudo isto liga-se ao corpo de modo tal, que forma uma couraça fixa, sem lhe prejudicar os movimentos rápidos. Ao voltar-se para qualquer parte e em qualquer posição, nada desse arsenal se desloca. Usa uma espécie de sapatos de grossas solas e bem feitos. Traz esporas e rebenque e, ao montar, calça umas luvas de pano marrom que cobrem apenas as costas das mãos. Anda sempre bem barbeado. Em tudo guarda serenidade e presença de espírito. Este o homem.” Descrevendo todo o bando, padre Artur Passos diz: “Estes dez homens, moços, fortes, robustos, musculosos, formam um verdadeiro esquadrão sui generis, assim, mais ou menos, igual e formidavelmente uniformizados. Diversos deles, nomeadamente o Moderno, trazem, além dos guarda – pulsos de couro, pulseira nos pulsos e pendentes dos dois bicos quue formam as abas dos grandes, altos e vistosos chapéus. Cabelos bons, cortados à Nazarena, barbeados todos. Trazem muitos anéis em todos os dedos, mas nem os anéis e nem as pulseiras são de grande valor. Alguns trazem cobertas, ou cobertores, bem bordados, sob as cartucheiras, ornadas, bem como as correias das armas, de ilhoses brancos e rodelas de metal. Tal a sua disciplina, que formam um tanto compacto e homogêneo. Alguns são calados e reservados. Não mostram, porém, face carrancuda, nem os vi com maus modos. Não têm, inclusive Lampeão, cara repelente, como imaginamos nos bandidos em geral, devendo frizar, porém, o olhar especial de um deles, o fedelho de 16 a 18 anos, que os acompanha. Estão bem armados, todos, trazendo alguns 2 ou 3 revólveres e, ao que parece, bem municiados. Apenas uns 3 ou 4 estão armados a rifles, os demais, como Lampeão, trazem mosquetão de cavalaria. Observei bem que são destemidos e valentes.” (continua) * Trecho do ensaio O Encontro de Lampeão com o Padre, do livro O Incenso e o Enxofre. Permitida a reprodução desde que citada a fonte "Pesquise - Pesquisa de Sergipe / InfoNet"

LAMPIÃO EM SERGIPE (II)

Antes de chegar a Poço Redondo em 29 de abril de 1929, Lampião esteve em Ribeirópolis, Pinhão e no povoado do Alagadiço, pertencente a Frei Paulo. Parecia procurar alguém ou reconhecer um terreno...
Antes de chegar a Poço Redondo em 29 de abril de 1929, Lampião esteve em Ribeirópolis, Pinhão e no povoado do Alagadiço, pertencente a Frei Paulo. Parecia procurar alguém ou reconhecer um terreno onde contava com amigos, como Otoniel Dória, de Itabaiana, terra de Volta Seca. A amizade entre Lampião e Otoniel Dória certamente evitou a entrada do cangaceiro e do seu grupo em Itabaiana. No dia 21 de abril Lampião estava em Ribeirópolis, de lá foi para o Pinhão, voltou para Ribeirópolis, foi a Alagadiço, seguindo viagem até chegar a Poço Redondo, a terra que mais contribuiu com gente, homens e mulheres , para os bandos de cangaceiros. Entrando e saindo de Sergipe, Lampião escolhia a dedo o roteiro e o lugar de suas visitas. A sua presença em Capela, em novembro daquele mesmo ano, é a mais conhecida e relatada, graças aos depoimentos de Jackson Alves de Carvalho, incluindo o relato que fez ao conterrâneo Nelson de Araújo, publicado no jornal A Tarde, da Bahia, e aos artigos de Zózimo Lima, no Correio de Aracaju e na Gazeta de Sergipe. Os dois informantes foram protagonistas dos acontecimentos na Capela e mereceram de Lampião toda a atenção. Um deles chegou a ser procurado no cinema da cidade. Zózimo Lima era dos Correios e Telégrafos, posto chave para evitar que a notícia da presença ali do cangaceiro fosse comunicada às autoridades. Antes e depois de Capela, o capitão esteve em Nossa Senhora das Dores. A rota de Virgulino Ferreira da Silva em Sergipe era guardada por um grande círculo de amizades, transformadas quase sempre em coitos e em fornecimento de víveres, armas, munições, animais, dinheiro e outras coisas necessárias à sobrevivência do chefe e do seu bando. Um dos bons amigos de Lampião foi o capitão médico Eronídes de Carvalho, que depois da revolução de 1930 passou a ser figura destacada da vida política sergipana, ocupando o Governo da Interventoria e sendo, com a constitucionalização de 1934, Governador do Estado. Em agosto de 1929, ano que Lampião passou quase todo em Sergipe, na fazenda Jaramantaia no município de Gararu, houve um encontro entre os dois amigos. Foram longas conversas documentadas pela câmera fotográfica de Eronídes de Carvalho, em fotos que o cangaceiro usa perneiras, o que era raro. Além de ser amigo do militar, Virgulino Ferreira da Silva tinha fortes laços com Antonio Carvalho, o Antonio Caixeiro, pai de Eronídes e influente senhor de terras em Canhoba, Gararu e Porto da Folha e em outros locais do sertão do São Francisco. A notória amizade estimulava os comentários de que a família de Eronídes de Carvalho fornecia armas e munições novas, modernas, tornando Lampião melhor armado do que as forças que o perseguiam. O rio São Francisco era a ponte para Lampião, seu grupo, e os grupos de outros chefes, como Zé Sereno e Corisco, que freqüentemente andavam em solo sergipano. Sendo comum a travessia, nem sempre foi fácil fixar com precisão, quantas foram e quando foram as visitas dos cangaceiros a Sergipe. O que se sabe é que Sergipe foi bem freqüentado e viveu dias de medo, e sobressalto, debaixo da presença sempre surpreendente dos cangaceiros. Sabe-se também, que os senhores de terra e de engenhos davam quantias significativas a Lampião, atendendo aos seus pedidos, quase sempre escritos em cartões de visita com sua foto ao lado, ou em simples pedaços de papel. Antes de ter encontrado com o padre Artur Passos em Poço Redondo, Lampião pode ser assistido missa em Canindé, o arruado antigo que desapareceu do mapa para que surgisse, com a barragem do rio, uma nova cidade. No entanto, não houve o registro nos moldes do que foi feito pelo padre Artur Passos. A presença de Lampião em Sergipe permaneceu no noticiário dos jornais e nas conversas das cidades, povoados, nas feiras e nas ruas e estradas sergipanas, até sua morte na gruta de Angicos, nos domínios geográficos de Poço Redondo, no dia 28 de julho de 1938. O ataque da força alagoana atraiu a imprensa do Brasil, enquanto por coincidência ou não, Eronídes de Carvalho, na chefia do Governo, novamente como Interventor, pagava matéria publicitária de Sergipe, nos jornais do Rio de Janeiro. A morte de Virgulino Ferreira da Silva não encerrou o ciclo. Corisco, que escapou do massacre por ter chegado atrasado para o encontro com Lampião, vingou o chefe degolando moradores de fazendas da margem sergipana do rio São Francisco. O rei do cangaço mereceria ainda, a atenção de escritores sergipanos, como Ranulfo Prata e Joaquim Góis. O primeiro era médico, escritor premiado como contista e como romancista, autor de Dentro da Noite, Navios Iluminados, Lírio da Corrente, escreveu Lampião, documentário editado em 1937 (Rio de Janeiro: Ariel) quando ainda vivo Lampião alimentava o imaginário social com suas façanhas. Joaquim Góis, investigador de polícia, integrante de uma das volantes sergipanas, revelou-se excelente narrador ao escrever Lampião – O Último Cangaceiro (Aracaju: Sociedade de Cultura Artística de Sergipe, 1966). Outro sergipano, José da Costa Dória, radicado na Bahia, testemunha ocular da presença de Lampião no sertão baiano, deixou inédito Vida e Morte do Cangaceiro Lampeão. Padre Artur Passos fez registro do seu encontro com Lampião em Poço Redondo em série de artigos publicados em pequenos jornais de Penedo, Alagoas e de Rosário do Catete e outros lugares de Sergipe. O jornalista baiano radicado em Aracaju, Juarez Conrado é o autor de A Última Semana de Lampião, publicado em 1983, adaptado para especial na televisão. O acadêmico e magistrado José Anderson do Nascimento escreveu Cangaceiros, Coiteiros e Volantes, editado em 1998. Sila: Uma Cangaceira de Lampião é o livro de Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, mulher de Zé Sereno, com seu depoimento sobre as andanças dos grupos pelo Nordeste. E Alcino Alves Costa, político de Poço Redondo, tem contribuído com informações e análises para a compreensão do fenômeno do cangaceirismo e especialmente sobre a presença de Lampião em Sergipe. Depois de publicar Lampião Além da Versão, em 1996, acaba de lançar O Sertão de Lampião, ambos editados sob os auspícios da Secretaria de Estado da Cultura. Vera Ferreira, filha de Expedita e neta de Lampião e de Maria Bonita tem pesquisado e estudado o cangaço, publicando livros esclarecedores, sozinha ou em parceria com o incansável Antonio Amaury Corrêa de Araújo, odontólogo e escritor radicado em São Paulo. Permitida a reprodução desde que citada a fonte "Pesquise - Pesquisa de Sergipe / InfoNet"