Translate

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Vulpiano Cavalcanti de Araujo


Quando Dr. Vulpiano e sua esposa, Ângela, vinham à nossa casa em Fortaleza, era uma alegria para todos. Como gostávamos desse médico e amigo de meus pais. À medida que íamos crescendo ouvíamos as estórias contadas por nossa mãe sobre esse grande homem e a admiração crescia mais ainda. 


O carisma dele era grande demais e em sua presença sentíamos sua importância. Era um anjo em visita a terra para ajudar aos menos amparados e sua saúde. Como todo servo de Deus na terra, as forças demoníacas de uma ditadura o perseguiam pois era bom demais e isso eles não suportam em um democrata.

As estórias de perseguição sofrida por esse grande amigo, nos deixavam tristes. Era perseguido por ser comunista, por querer uma sociedade mais justa, por disseminar uma ideologia que até os dias de hoje alguns não compreendem, ou por fazerem parte da massa humana que não se importa com seu próximo ou por serem da mesma natureza de seus algozes.

Contava-nos nossa mãe, que ele era um médico que auxiliava aos pobres. Certa vez, operando um paciente, as forças repressoras da ditadura chegaram para prende-lo. Ele saiu calmamente da sala de cirurgia, e conversou com o comandante da patrulha para que tivessem apenas um pouco de paciência enquanto concluía a operação e fechava o paciente, para que esse sobrevivesse.

Ao ser levado para a prisão, o torturavam, batiam-lhe principalmente nas mãos para que não exercesse mais seu mister de cirurgião. O colocavam em cubículo minúsculo e ali dentro perpetravam torturas tais como colocar em sua cabeça um balde debaixo de uma torneira que pingava no flandre para faze-lo enlouquecer. 

Abaixo lhes mostro alguns artigos daqueles que admiravam esse grande médico, por sua postura política, pelo seu caráter e pelo seu humanitarismo. Era um guerreiro do tempo. Tinha nascido para ajudar as pessoas. Nunca foi homem rico, mesmo sendo um dos grandes cirurgiões de seu tempo.

Memória Viva com Vulpiano Cavalcanti [Dr. Vulpiano] nos conta mais:

Carlos Lyra – Dr. Vulpiano, desculpe a ingenuidade, mas numa cela em que não podia ficar em pé, ou deitado, você teve algum instante de tranquilidade, de apoio?

Dr. Vulpiano – Nenhum, nada. Aliás, tinha um pássaro canoro que, ao amanhecer do dia, me lembrava, pela harmonia de seu canto, três notas do segundo movimento de uma sonata de Beethoven. {Sonata 21, opus 53].


Salinas de Macau - RN (autor não identificado)
Dr. Vulpiano em Macau – Vulpiano Cavalcanti, médico vinha a Macau nas décadas de 40 e 50 curar enfermos e plantar sementes da democracia. Na entrevista que fizemos com o militante político Zé de Damiana [janeiro de 2010], ele narrou um fato da presença marcante desse brasileiro especial. Dr. Vulpiano não cobrava pelo atendimento médico. Ele ficava hospedado numa pensão na Praça da Conceição e dali saía para atender os doentes e para as reuniões com os trabalhadores. Uma noite, em reunião debatiam as condições precárias da vida dos trabalhadores em Macau quando vieram chamar Dr. Vulpiano para socorrer um homem que passava mal. O homem era um conhecido “dedo duro” que vivia denunciando os trabalhadores à polícia. Dr. Vulpiano ouviu o que os companheiros disseram sobre o homem e falou para todos no mais puro espírito cristão: – É nosso irmão e precisa de ajuda! E virando para Zé de Damiana o mais exaltado, disse-lhe: E você vai como meu assistente! Na casa do enfermo, este, depois da dor cessada, apelou que Dr. Vulpiano atendesse sua filha que sofria há muitos dias com o seio inflamado. Ela estava amamentando e sofria ela e sua filhinha recém nascida. Dr. Vulpiano prontamente atendeu a mulher, acabando com a dor e o seu sofrimento. Dias depois, ambos estavam curados. E os trabalhadores de Macau aprendiam mais um ensinamento com Dr. Vulpiano: a solidariedade. - de Claudio Guerra para o baú de Macau



A publicação foi da Editora Universitária – UFRN e Nossa Editora. Os que trabalharam na edição foram: Maria de Fátima Pacheco F. Negreiros que fez a composição; Carlos José Soares, a diagramação; Angela Carreras Simões, a montagem e Francisco Nivaldo Mendes a impressão. A entrevista – novembro de 1983 – foi para o jornalista Carlos Lyra. Um texto introdutório lavrado pelo jornalista Vicente Serejo em agosto de 1986, encerra com o parágrafo: A entrevista que os leitores terão a partir de agora é um documento. Construído pela sensibilidade de Carlos Lyra no ofício da indagação. E onde Vulpiano Cavalcanti, entregando-se por inteiro à sua verdade, ergue, palavra por palavra, a sua grande história, que ele conta olhando a História de frente, olhos nos olhos, frente à frente, com a certeza de sua inenarrável condição humana: a paixão de ter sido sempre o que é.




Vulpiano Cavalcânti: Um brasileiro nos mostra mais a a respeito desse grande homem:

Nascido em Fortaleza, no dia 15 de março de 1911, este mês completa 102 anos do seu nascimento. Seu nome: Vulpiano Cavalcânti de Araújo.

Homem de ideal socialista, formou-se em medicina no Rio de Janeiro, logo volta ao Ceará, atua como médico na cidade de Redenção. Naquele município começa sua atuação profissional, desde cedo dedicada ao atendimento de todas e todos, sem discriminação, marca de um profissional humanista, formado na base solidária.

Naquela época, já militante do Partido Comunista, enfrentou os velhos coronéis, denunciando a situação de exploração vivida pelo povo cearense, fruto da desigualdade social, uma sociedade marcada pela grande concentração de terras. O médico humanista vivencia as agruras do homem do campo nordestino.

Militante defensor de um mundo mais justo, pautou sua vida profissional na luta intransigente pelo direito de todos a uma saúde gratuita e de qualidade. Seus embates políticos no Ceará, o fará procurar outros lugares. Encontra então, a cidade de Mossoró, chega a cem terras Potiguares a convite do ex prefeito Duarte Filho.

Na capital do oeste potiguar Vulpiano Cavalcânti participa com Evaristo Nogueira, Joel Paulista, Antônio Tenório, Jonas Reginaldo Fernandes, Manoel Torquato, Chico Guilherme, José Moreira e Lourival Góis. Companheiros de ideais, atuam na organização do Partido Comunista, mesmo na clandestinidade.

Na terra de Santa Luzia sofreu sua primeira prisão no Rio Grande do Norte. Preso, foi transferido para Natal em um avião, durante toda a viagem sofreu diversas ameaças. Seu crime: atender bem seus pacientes. Médico-cirurgião, foi responsável por diversos casos bem-sucedidos registrados nos anais da medicina norte-riograndense.

Meu caro leitor, falar de Dr. Vulpiano é fazer uma referência ao médico, ao homem, ao militante social, aquele que não aceitou como natural as injustiças praticadas contra as camadas sofridas do povo brasileiro.

Em Memória Viva, Dr. Vulpiano relata um dos atos mais deploráveis praticados nas dependências de uma unidade militar. A Base Aérea de Natal, símbolo de combate as forças nazifascistas,  Natal cidade Trampolim da Vitória, teve sua história manchada pela dor e o sofrimento de um homem do bem.

O Dr. Vulpiano Cavalcânti, em seu relato ao jornalista Carlos Lyra, denuncia uma corja de covardes transvestidos de oficiais da aeronáutica.

Vejamos alguns trechos:

“Despido, fui espancado por eles a socos, pontapés e cassetetes de borracha. Tudo isso na presença do cel. Ferraz Koller, comandante da base. Foi a prisão mais dolorosa, mais torturada que passei”.

“Depois desse introito, fui jogado numa cela de quatro palmos de largura por sete palmos de altura, fechada a chapa de ferro [...] A maior ventilação que recebia era deitado, porque embaixo tinha algum ar nessa porta [...] Nessa prisão eu respirava, também, pelo teto, por um pequeno buraco, que servia para o tenente Câmara urinar, acertando sempre na minha face. Urina e fezes”.

É meu caro amigo leitor, estamos nos referindo a década de 1950, volto a repetir, em uma unidade militar nascida do esforço de guerra contra o autoritarismo. Natal conhecida por sua tradição na aviação aérea, tem infelizmente, a marca da insensatez praticada em nome de um poder que falava em liberdade do outro lado do Atlântico, enquanto  do lado de cá dos trópicos muitos eram torturados nos cárceres da Base Aérea de Natal.

A sociedade Potiguar, a sociedade Brasileira, tem o direito à verdade. Esperemos que saiam das trevas as violações dos Direitos Humanos praticados por aqueles que deveriam defender as garantias constitucionais dos cidadãos brasileiros.

Que a Comissão da Verdade resgate a história de Dr. Vulpiano: um brasileiro!


Dr. Vulpiano
Capistrano: O centenário de um bravo comunista artigo de Antonio Capistrano que foi reitor da UERN nos brinda com mais memórias sobre esse grande Brasileiro:

Vulpiano Cavalcanti de Araujo ou simplesmente, Doutor Vulpiano, um bravo comunista, nasceu na capital cearense no dia 15 de março de 1911, portando, no dia 15 de março de 2011 completa 100 anos do seu nascimento.

Quem conheceu doutor Vulpiano sabe da extraordinária figura humana que ele era. Pontificou na atividade médica e na militância político. Foi um bravo comunista e um grande médico. Como a maioria dos comunistas era humanista por principio.

Doutor Vulpiano estudou medicina no Rio de Janeiro, onde se formou. No final dos anos 30, já formado e ligado ao PC, veio residir no Rio Grande do Norte, passando a clinicar nos sindicados operários em Mossoró, Macau e Areia Branca, onde marcou a sua presença como competente profissional da medicina, depois se fixou em Natal.

Tive o privilegio de conhecê-lo, de ir, diversas vezes, ao seu consultório na Avenida Rio Branco, no mesmo prédio onde funcionava a Casa Rio, pertinho da Livraria Universitária. Participei com ele de diversas reuniões do Partido. Lembro de uma dessas reuniões, em plena ditadura militar, 1971, saí de Natal em um Volks, fui encapuzado para não saber o caminho nem o local do encontro, questão de segurança, atitude comum na época. Muitos anos depois tomei conhecimento do local da reunião, foi em Ceará Mirim, em um sitio de Oswaldo Guedes, outra grande figura do PC.

Doutor Vulpiano era um homem alegre, espirituoso, brincalhão. Apesar de toda a perseguição sofrida e das medievais sessões de tortura a que foi submetido nas muitas prisões que sofreu, era um homem sem ressentimentos. Ele era maçom.

O professor Moacyr de Góes, amigo e companheiro de prisão de Vulpiano, no livro “Sem Paisagem: Memórias da Prisão” – Sebo Vermelho, 2004, pág. 76 - faz um belo relato sobre a figura de Vulpiano Cavalcanti. Peço permissão à professora Maria Conceição Pinto de Góes, viúva e companheira de luta de Moacyr de Góes, para transcrever-lo nesse singelo registro do centenário de nascimento desse bravo comunista e grande médico. Vamos ao relato de Moacyr de Góes:

Vulpiano

Na primeira semana de prisão aprendi que o Coletivo tinha um decano, um guia, uma mão que orientava. Não precisava haver eleição. A liderança emergia como flui um rio, natural como a mudança do vento, quando chegam as barras do dia.

Seu ânimo, de uma alegria de criança, colocava o astral lá em cima. Do seu conhecimento de História e do marxismo brotava uma tranqüilidade e transpirava segurança para ensinar sobre o papel que desempenhávamos naquela prisão.

Construíra a vida sem dissociar a prática da teoria. Pelo contrario: uma, retroalimentava a outra. Por isso, sua segurança. A experiência de uma dezenas de Cáceres anteriores (o crime, um só: ser comunista) fazia com que o seu gesto fosse sempre tranquilo. A palavra mansa não frouxa. Pelo contrário: dura como aço, sem fazer concessões, na hora precisa. Tudo, porém, num quadro de bondade humana. A solidariedade, como nunca vi superada.

Com ele aprendi a ver o papel do comunista na sociedade. Sem proselitismo, sem doutrinações, ele narrava a vida do Partido e também a sua vida: as duas coisas se confundiam, na maioria das vezes.

A alegria de viver não escondia na vulnerabilidade de sua vida na clandestinidade ou semiclandestinidade, como naqueles anos 60.

As torturas a que fora submetido não lhe marcaram a alma com ressentimentos. Ele era a antítese de Tibério. Seria um grande contraponto para a obra de Gregório Maranõn. As seqüelas eram físicas. Nos anos 50, levara meses fazendo tricô para voltar a articular os dedos e poder operar, novamente, nas cirurgias. Durante as sessões de tortura, na Base Aérea de Natal, a ordem era explícita: bate nos dedos, que esse comunista filho da puta não vai operar nunca mais.

Graças ao tricô e à força de vontade voltou à sala de cirurgia. Contava. Os olhos límpidos de um São Francisco. Encanecido pelo sofrimento. Nunca perdeu a alegria.

Conheci, também, a experiência do velho “Partidão”. Enquanto a AP não conseguia mandar um recado para fora do cárcere, porque não tinha quem recebesse a mensagem, entre os comunistas, caía a primeira linha e a segunda ocupava o lugar, depois, a terceira, etc. Para deixar o país, as rotas mais seguras eram as do PCB e da Igreja, a primeira com mais experiência, a segunda através de sua rede de instituições.

Voltando ao homem. Revejo-o em seus horários perfeitamente organizados: o tempo da leitura, o tempo da caminhada na cela, o tempo do lazer possível. Na época estudava a Lei da Relatividade de Einstein. Com seus gestos, quase invisíveis, o Coletivo se organizava.

Acompanhava-o na caminhada na cela. Conversávamos. Para passar mais tempo junto a ele, resolvi estudar taquigrafia, metodologia na qual ele era mestre. Ele marcou a hora, como se não tivéssemos horas de sobra: - A aula começa às 16 horas. Ah! Vulpiano Cavalcanti, quantas lições de vida me deste.

DOCUMENTOS DA DITADURA SOBRE DR. VULPIANO ENCONTRADOS POR MIM EM PESQUISAS A RESPEITO DE DR. VULPIANO.








Esse grande homem, admirado por todos que o conheceram, morreu em novembro de 1988, vítima de pneumonia.

Viveu tempo suficiente para ver seu partido legalizado em 1985 e promulgada a nova Constituição, na qual foram estabelecidas não só as liberdades políticas, como também garantias sociais que melhoraram a vida de milhões de brasileiros.

A liberdade é a condição necessária para a construção de um Brasil assentado nos valores da igualdade e da fraternidade, e nisso esse grande médico cearense, Dr. Vulpiano, contribuiu.