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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cangaceiro Novo Tempo e o Oscar

A natureza humana é contundente quando se trata de sobrevivência. O homem tem um poder quase divino embora como diz o dito popular "para morrer basta estar vivo".

Com esse filme "O Regresso", que deu o Oscar a Leonardo DiCaprio, e que foi inspirado em eventos reais, é uma experiência cinematográfica imersiva e visceral que capta a épica aventura de um homem por sobrevivência e o extraordinário poder do espírito humano.

A estória é baseada em uma expedição pelo desconhecido deserto americano, com o lendário explorador Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) que foi brutalmente atacado por um urso e deixado como morto pelos membros de sua própria equipe de caça.

Em uma luta para sobreviver, Glass resiste à dor inimaginável, bem como à traição de seu confidente, John Fitzgerald (Tom Hardy). Guiado pela força de vontade e pelo amor de sua família, Glass deve navegar um inverno brutal em uma incessante busca por sobrevivência e redenção.

Com esse filme, LEMBREI do ocorrido com o cangaceiro chamado Novo Tempo, cunhado de Zé Sereno, chefe de grupo de Lampião, e irmão mais novo da cangaceira Sila.

Os relatos da odisseia de Novo Tempo, que se chamava Abdias, encontra-se nos escritos dos pesquisadores e historiadores do cangaço, Antônio Amaury e Alcino Alves, que contam em seus respectivos livros "Gente de Lampião" e "Mentiras e Mistérios de Angico" - embora se complementem, existem variações nos relatos, - mas contam o triste acontecimento com esse cangaceiro, atingido nos dois braços, varados pelas balas da Volante de Zé Rufino, no tiroteio chamado de "Fogo da Laginha, na Lagoa do Domingo João" - escapou com vida.

Passou três dias varando a caatinga para ir a uma das fazendas de Antonio Caixeiro e ao chegar quase morto pedindo socorro, foi traido por um dos cabras da fazenda chamado Zé Vaqueiro que ao lhe socorrer viu que ele estava mais pra lá que pra cá e lhe deu um tiro na cabeça.

Imaginem que o cangaceiro depois de levar balaços nos dois braços, inclusive ficou aleijado de um, arrastar-se por vários dias, terem seus ferimentos apodrecidos e comidos pelas larvas da Varejeira, ainda receber um tiro na cabeça, voltar a se arrastar para outro local e levar mais alguns dias nesse sofrimento, sobreviver!

Pois é... só mesmo um milagre né mesmo?

Esse cangaceiro também passou pelo ataque na Grota de Angico, escapando das balas das volantes, conseguiu fugir, e terminar seus dias em velhice, lá pras bandas de Minas Gerais.

Foi um sobrevivente! Merecia um Oscar.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

FEITOSA DOS INHAMUNS - Nertan Macêdo


Quando êle chegou em casa 
Seu pai botou-lhe a bênção. 
Deu-lhe um abraço e lhe disse: 
Meu filho do coração, 
Serás como teu avô, 
Que cento e tantos matou, 
E nunca foi à prisão. 

"História do Capitão Lampião" 
Autor anônimo



SE O PARENTESCO com Antônio Silvino foi uma invenção do povo, não o era certamente a consanguinidade que vinculava os Ferreira de Vila Bela aos valentes Feitosa do São João dos Inhamuns, no Ceará. Um velho amigo e vizinho dos Ferreira, cuja casa de morada não se distanciava cem braças da de Virgulino, como ele, também, afeito ao artesanato do couro, o vila-belense Venâncio Barbosa da Silva, sabia desse parentesco com os Feitosa. 

Venâncio morava numa fazendola, chamada Cipós, ao lado dos Ferreiras. A crônica mais antiga corrente nas redondezas, rezava que o bisavô paterno de Virgulino viera de Tauá, na serra do São João dos Inhamuns, bater com os costados em Vila Bela. Ali casara ou amancebara-se com uma parda, de nome Maria Jacosa, filha, talvez neta, de índios do sertão pernambucano. 

Trazia o bisavô um nome famoso, de guerra: Feitosa. E a tradição oral dessa descendência perdurou entre as gentes do lugar. É provável mesmo que esse antigo Ferreira fosse um Feitosa bastardo, dos muitos nascidos das índias preadas pelos poderosos senhores dos sertões cearenses. Ou fosse um Ferreira Ferro, fugido à sanha de um Monte ou da justiça do rei. De qualquer forma, um Feitosa, como se deduz do que a respeito desse ramo legou à posteridade o doutor Pedro Théberge, do Icó. 

Diz Théberge que o tronco Feitosa havia se passado do Engenho Currais de Serinhaém, Pernambuco, para os sertões do Ceará. Essa retirada se dera em virtude da participação profunda dessa gente de Serinhaém na Guerra dos Mascates, no Recife. Perseguidos ali, perseguição que se estendia no tempo a quantos brasileiros se houvessem metido naquele movimento, escaparam para o sertão cearense, fixando-se nas cercanias do Icó. 

O chefe, Lourenço Alves Feitosa, tomou, no Ceará, o título de Alferes Comissário. Ele havia casado com uma irmã do vigário de Goiana, no seio de uma família importante, Gondim. Outro seu cunhado era provigário do Recife. 

Os Gondim eram aparentados com os descendentes de André Vidal de Negreiros e assinala Théberge, "com uns Ferreira Ferro, moradores em Penedo, e por parentesco tão íntimo que um membro da família Feitosa sempre tomou até hoje este nome de Ferreira Ferro. 

Fugiu Lourenço para o Ceará na companhia de três irmãos, Francisco Alves Feitosa, o coronel Pedro Alves Feitosa e Manoel Ferreira Ferro. No Ceará, radicou-se Lourenço numa fazenda denominada Cachoeirinha, a seis léguas do Icó, molhada pelas águas do riacho Cariúzinho. 

A luta contra os Monte, com os quais se haviam ligado por um casamento, teve origem numa rixa familiar, de cunhado a cunhado, acrescida mais tarde de urna disputa feroz por terras, situadas na ribeira do riacho Jucá, afluente do Jaguaribe. 

O caráter dos Feitosa era marcado de orgulhosa altivez. Deles fala o doutor Théberge como sendo ricos, não menos orgulhosos que os Monte, mais práticos, mais civilizados, acostumados que eram a corromper as autoridades reinóis, ante as quais sabiam todavia, curvar-se, quando achavam oportuno; muito unidos entre eles e dominando, com mão de ferro, os índios Jucás, Caiús e Inhamuns. 

Dá-nos o mesmo cronista notícia de um oficial das milícias do tempo, de nome João Ferreira da Fonseca, que se reuniu aos parciais dos Feitosa e a um troço de oitocentos índios jenipapos, com os quais entrou a percorrer o interior roubando e massacrando os Montes e seus sequazes, praticando contra eles as violências das mais atrozes sem sem atenção nem a sexo nem a idades. Quase todo o ano de 1724 foi assinalado por estes atentados que se estenderam por todo o interior da Capitania. 

Com o passar dos anos, os Monte foram entrando em decadência, sepultando no esquecimento a crônica belicosa da família. 

Os Feitosa, não. Continuaram, diz o cronista, a viver a sós consigo mesmos, sem relação nem comunicação com o resto da população, e conservando sempre grande séquito de malvados, que acoitavam contra as perseguições da autoridade. Tinham os Feitosa uma parentela numerosa, não apenas no Ceará, como em Pernambuco, principalmente no Recife e no Icó. Na vila do Penedo do Rio São Francisco moravam primos célebres dessa gente, os capitães Manoel Ferreira Ferro e João Ferreira Ferro, sendo todas pessoas ligadas por laços de consanguinidade ou de afinidade, escreve o doutor Théberge, assim terminando a sua narrativa: "A família Feitosa ainda existe nos Inhamuns, na mesma ribeira do mesmo rio Jucá, quase no mesmo pé que seus antepassados, ligando-se pouco com outras famílias, e conservando ainda quase sem alteração os seus costumes de prepotência, riqueza e valentia". 

Virgulino Ferreira tinha assim por quem puxar. A ser verdadeira a doutrina tradicionista, que afirma ser a alma uma transmissão genética. Herdara do sangue português a coragem e o gosto pela solidão. Do índio, de língua geral, mais provavelmente de língua travada, ficou-lhe a astúcia, a rebeldia e o nomadismo guerreiro.(*) (**) 

(*) "Manuel Ferreira Gondim. E esse quem era? Em todos os atos públicos onde figura o seu nome encabeça a lista dos assinantes. Devia pela idade provecta e pela atuação respeitável merecer êste privilégio. Sabemos ser oriundo da estirpe pernambucana dos Gondins de Goiana, filho de um irmão do Sargento-Mor Francisco Ferreira Pedrosa, sobrinho de D. Antônia de Oliveira Leite, mulher do Comissário Lourenço Alves Feitosa e do Padre José Ferreira Gondim, Vigário de Goiana e Vice-Vigário do Recife. Sua mãe, Luzia Monte, pelo lado materno (Isabel Monte), e Feitosa, pelo lado paterno (Cel. Francisco Alves Feitosa), vinha dos tempos da dominação. Situado no rio do Umbuzeiro, onde possuía terras nas fazendas "Aroeiras", "Gameleira" e "Araras", tinha como vizinhos o Sargento-Mor Leandro Custódio Bizerril e o parente próximo Capitão-Mor José Alves Feitosa. Foi no Centro-Oeste cearense patriarca no verdadeiro sentido. Por tôda parte parentes seus têm destaque em todos os ramos de atividade humana. Desaparecendo aos 31 de dezembro de 1833, uma récua de filhos chorou a sua morte. Dez legítimos um natural, ao todo onze. Já na Bíblia encontramos Abraão, o patriarca de Israel, o preferido de Deus, também constituindo família com uma concubina —Ismael foi o produto destes amores, como JOSÉ FERREIRA o era do patriarca dos Inhamuns. Nos autos de inventário de Manoel Ferreira Gondim e sua mulher Isabel Alves está escrito: "Ajuntem os meios dotes e somem e repartam pelos onze herdeiros, incluindo o herdeiro José Ferreira, filho natural do falecido velho Gondim, que na regra de direito é herdeiro de seu falecido pai por isso que deve entrar na meação". A figura bíblica do homem de Hur identifica-se nos mesmos anseios com o Gondim das "Aroeiras". O mesmo destino a que ficam sujeitas as pessoas marcou-lhes, em sentido diverso, a passagem pela terra. O filho de Abraão, banido para o deserto, foi ter ao vale de Meca, o de Manoel Ferreira Gondim, na procura dos favores de parentes importantes, perdeu-se nos sertões agrestes de Pernambuco. De Ismael, descende Maomé, o místico que ainda reina nos corações de milhares de asiáticos. De José Ferreira, rezam as tradições, provém Lampião, o famoso bandoleiro que reinou nos sertões". — Gomes de Freitas, Novos Subsídios para a História dos Inhamuns, edição de "O Povo", Fortaleza, Ceará, 21-12-63. 

(**) "Filhos do português João Alves Feitosa, casado, como já ficou dito, com uma filha do Coronel Manoel Martins Chaves: 
1 — Comissário Lourenço Alves Feitosa, casado com Antônia de Oliveira Leite, irmã do Padre José Ferreira Gondim, Vice-Vigário do Recife e do Vigário de Goiana; 
2 — O Coronel Francisco Alves Feitosa, casado, em primeiras núpcias, com Isabel do Monte, irmã do Capitão-Mor Geraldo do Monte; em segundas núpcias com Catarina Cardosa da Rocha Resende Macrina, descendente da família Cavalcanti e Albuquerque, de Pernambuco, e, em terceiras núpcias, com Isabel Maria de Melo. 

Estas três mulheres eram viúvas e traziam filhos dos seus leitos anteriores. Dos filhos do primeiro casamento de Isabel do Monte, descendem grande parte dos Pinheiros, dos Meios e dos Fernandes Vieira, conforme o testemunho do Dr. Helvécio Monte ("Unitário", n. 2.168, de 4 de junho de 1916). 

Dos filhos do primeiro casamento de Catarina Cardosa da Rocha Resende Macrina, segundo uma tradição que sempre circulou, no seio da família Feitosa, descendem os Pereiras de Pajeú de Flôres.

— "O Coronel Francisco Alves Feitosa fundou a sua primeira fazenda no lugar Barra do Jucá, em terras do Rio Jaguaribe, à margem direita deste, cerca de uma légua de sesmaria abaixo da atual vila de Arneiroz, construindo ali uma Capela de taipa, e, por isso, com a edificação da Igreja de Arneiroz, por um neto do mesmo Francisco Alves Feitosa, ficou aquela fazenda com o nome de Igreja Velha (esta denominação já desapareceu com a demolição dos prédios antigos). 

Procedeu-se ao inventário do Coronel Francisco Alves Feitosa em Cococi; foi apenas uma partilha, porque não havia órfãos e o monte total orçou em NCr$ 12.000,00, isto é, perto desta importância, porque as avaliações foram muito baixas, conforme se vê, não havendo avaliações de posses de terra, e sim de sítios: um sítio São Nicolau, com 3 léguas de terra, avaliado por NCr$ 200,00; um sítio Figueiredo, com duas léguas, avaliado por NCr$ 400,00; o sítio Ôlho d'Águia do Urucu, por NCr$ 50,00; uma légua de terra, das extremas do Latão até a Estiva, por NCr$ 300,00; um sítio, com engenho, no lugar Engenho da Serra, por NCr$ 400,00; o sítio Pouco Redondo, com 3 léguas de comprimento e uma de largo para cada lado, por NCr$ 550,00, e assim por diante, outros sítios em Inhamuns, Quixelô, antiga Santana do Cariri e Rio de São Francisco, da Cachoeira de Paulo Afonso para baixo. Os bens semoventes tiveram as avaliações seguintes; um cavalo de fábrica, em Cococi, por NCr$ 5,00; as éguas, avaliadas a NCr$ 3,00; as vacas, a NCr$ 2,00; as novilhotas e novilhotes, a NCr$ 1,20; e os bezerros, a NCr$ 0,50. (Os escravos, de moleques a negros, tiveram avaliação de NCr$ 40,00 a NCr$ 80,00, mais disto um ou outro.) Esta partilha foi feita em Cococi, no dia 17 de junho de 1770, com assistência de todos os herdeiros e co-herdeiro do Capitão-Mor Arnauld de Holanda, casado com Francisca, neta do inventariado. 

Os bens inventariados, por morte do Coronel Francisco Feitosa, atualmente teriam valor para algumas centenas de contos de réis. Não nos constam os nomes dos estados do Coronel Francisco Alves Feitosa do primeiro casamento. Do segundo casamento constam-nos os nomes dos seguintes enteados: 1 — Antônio Pereira do Canto, casado com Antônia, filha de Antônio Barbosa Galvão; 2 — Leonor, casada com o português, a quem chamavam Marinheiro José da Silveira, que cultivava a Serra, que ficou com o nome de Serra do Silveira; 3 — D. Rosa, da Boa Esperança, não teve casamento e nem descendência. Do terceiro casamento do mesmo só nos consta ter dois enteados: 1 — O Sargento-Mor Francisco Ferreira Pedrosa, que já vimos casado com Josefa Alves Feitosa, filha do seu padrasto; 2 — O marido de Luzia, filha do primeiro casamento do Coronel Francisco Alves Feitosa, cujo nome ignoramos". — Leonardo Feitosa — TRATADO GENEALÓGICO DA FAMÍLIA FEITOSA. — Tipografia Paulina — 1952 — Fort. — CE.

Como se vê do livro de Leonardo Feitosa, os Pereiras do sertão pernambucano são parentes dos Feitosa do Ceará. Não seria sem razão que Virgulino Lampião começara sua vida de cangaceiro à sombra de Sinhô Pereira, acostado, assim, ao poderoso clã do Barão do Pajeú. Os mesmos Pereiras são também aparentados dos Alencares, outra importante família sertaneja cearense. 


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A ALEGORIA DA CAVERNA

A alegoria da caverna, também conhecido como parábola da caverna, mito da caverna ou prisioneiros da caverna, foi escrita pelo filósofo grego Platão e encontra-se na obra intitulada A República (Livro VII). Trata-se da exemplificação de como podemos nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade, onde Platão discute sobre teoria do conhecimento, linguagem e educação na formação do Estado ideal.

O diálogo de Sócrates e Glauco

Trata-se de um diálogo metafórico onde as falas na primeira pessoa são de Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimanto, são os irmãos mais novos de Platão. No diálogo, é dada ênfase ao processo de conhecimento, mostrando a visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e do filósofo, na sua eterna busca da verdade.

Sócrates imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentadas, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construída um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. 

Seu amigo Glauco diz que está vendo, e Sócrates diz que agora ele imagine que ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. 

Glauco diz que é um quadro estranho e estranhos prisioneiros e Sócrates diz que assemelham-se aos dois. E, para começar, diz Sócrates; achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais da que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? 

Glauco em resposta diz que, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida, como? 

Acompanhemos o diálogo dos dois:

Sócrates — E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? 
Glauco — Sem dúvida. 
Sócrates — Portanto, se pudessem se comunicar uns com as outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? 
Glauco — E bem possível 
Sócrates — E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? 
Glauco — Sim, por Zeus! 
Sócrates — Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados. Glauco — Assim terá de ser. 
Sócrates — Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curadas da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer as olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos, sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os abjetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçada e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que as objetos que lhe mostram agora? 
Glauco — Muito mais verdadeiras. 
Sócrates — E se a forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? 
Glauco — Com toda a certeza. 
Sócrates — E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? 
Glauco — Não o conseguirá, pelo menos de Inicio.
Sócrates — Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homem e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu da que, durante o dia, o Sol e a sua luz. Glauco — Sem dúvida. 
Sócrates — Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é.
Glauco — Necessariamente. 
Sócrates — Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros, na caverna. 
Glauco — E evidente que chegará a essa conclusão. Sócrates — Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? 
Glauco — Sim, com certeza, Sócrates. 
Sócrates — E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em última lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? 
Glauco — Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira. 
Sócrates — Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? 
Glauco — Por certo que sim.
Sócrates — E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo? 
Glauco — Sem nenhuma dúvida. 
Sócrates — Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar, ponto por ponto, esta imagem ao que dissemos atrás e comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz da fogo que a ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão inteligível, não te enganarás quanto à minha ideia, visto que também tu desejas conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública.
Glauco — Concordo com a tua opinião, até onde posso compreendê-la. 
Sócrates — Pois bem! Compartilha-a também neste ponto e não te admires se aqueles que se elevaram a tais alturas desistem de se ocupar das coisas humanas e as suas almas aspiram sem cessar a instalar-se nas alturas. Isto é muito natural, se a nossa alegoria for exata. 
Glauco — Com efeito, é muito natural 
Sócrates — Mas como? Achas espantoso que um homem que passa das contemplações divinas às miseráveis coisas humanas revele repugnância e pareça inteiramente ridículo, quando, ainda com a vista perturbada e não estando suficientemente acostumado às trevas circundantes, é obrigado a entrar em disputa, perante os tribunais ou em qualquer outra parte, sobre sombras de justiça ou sobre as imagens que projetam essas sombras, e a combater as interpretações que disso dão os que nunca viram a justiça em si mesma? 
Glauco — Não há nisso nada de espantoso. 
Sócrates — No entanto, um homem sensato lembrar-se-á de que os olhos podem ser perturbados de duas maneiras e por duas causas apostas: pela passagem da luz à escuridão e pela da escuridão à luz; e, tento refletido que o mesmo se passa com a alma, quando encontrar uma confusa e embaraçada para discernir certos objetos, não se rirá tolamente, mas antes examinará se, vinda de uma vida mais luminosa, ela se encontra, por falta de hábito, ofuscada pelas trevas ou se, passando da ignorância à luz, está deslumbrada pelo seu brilho demasiado vivo; no primeiro caso, considerá-la-á feliz, em virtude do que ela sente e da vida que leva; no segundo, lamentá-la-á e, se quisesse rir à sua custa, as suas zombarias seriam menos ridículas do que se se dirigissem à alma que regressa da mansão da luz. Glauco — E a isso que se chama falar com muita sabedoria.
Sócrates — Se tudo isto é verdadeiro, temos de concluir o seguinte: a educação não é o que alguns proclamam que é, porquanto pretendem introduzi-la na alma onde ela não está, como quem tentasse dar vista a olhos cegos. 
Glauco — Mais uma verdade. 
Sócrates — Ora, o presente discurso demonstra que cada um possui a faculdade de aprender e o órgão destinado a esse uso e que, semelhante a olhos que só poderiam voltar das trevas para a luz com todo o corpo, esse órgão deve também afastar-se com toda a alma do que se altera, até que se tome capaz de suportar a vista do Ser e do que há de mais luminoso no Ser. A isso denominamos o bem, não é verdade? Glauco — É.
Sócrates — A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já a tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encará-lo na boa direção. 









quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Combate do "Fogo da Maranduba"

Quando estive nos campos de guerra do Fogo da Maranduba, nunca poderia imaginar o que realmente acontecera ali, se não fosse a ajuda de um mago da narrativa, em um de seus livros sobre essa odisseia chamada Cangaço. Em encantamentos presenciais, imagino o Caipira de Poço Redondo, Alcino Alves Costa, em pé, nessa rocha em que estive; olhando e se transportando para aquele dia nove de janeiro de 1932 às quatorze horas, quando se deu esse famoso combate entre os heróis Nazarenos com seus inimigos mortais, Lampião e seus cangaceiros. 

Eu não conseguia ver o que houvera naqueles campos, a não ser uma pequena cruz fincada no meio da caatinga, para marcar a sepultura inicial desses bravos que deram sua vida, para tentar acabar com aquelas feras que viviam fazendo perversidades pelo sertão. 

Antes, como visto pelo Alcino, em sua encantada presença ao dia do combate, onde visitou com os olhos da imaginação esse ermo que estamos vendo agora. Era uma mataria fechada. Hoje apenas um ermo quase sem vegetação alta. Mas ainda vemos alguns umbuzeiros da época.

Mas agora, todos nós contemplávamos uma cruz, indicando o local onde foram enterrados Elias Marques e os nazarenos João Cavalcante, Edelgício, Ercílio, Pedrinho e Manuel Ventura. Na ocasião também fora feito algumas orações e nesse pequeno documentário, vemos o Padre Augustinho, liderar as preces com a participação da maioria dos visitantes.

Convido os amigos a virem comigo apreciar o que Mestre Alcino viu com os olhos da imaginação e pelos diversos contatos que teve com alguns dos heróis nazarenos e com cangaceiros ainda vivos, quando talvez nessa mesma pedra, ou em qualquer das outras próximas aos sete umbuzeiros, seus sentimentos O tenha aproximado-se do "FOGO DA MARANDUBA!*

"O cerrado de Maranduba era, e ainda é, uma das mais faladas caatingas da região sertaneja de Sergipe, mataria grossa: o cipó de leite, bom nome, angico, aroeira, braúna, barriguda, umburana, quixabeira e umbuzeiro, morada do gato, da ema, do caititu, do tatu bola e do peba. 

Pastos onde só vaqueiros machos corriam atrás de bois, vaqueiros escolhidos e famosos como os Soares, o maioral Milinho, João Preto, os Teobaldo, os do Cuiabá e os de João Maria: Adolfo e Manezinho Cego, o famoso Manezinho de Rosara. 

Ali. Bem ali. Naquele emaranhado quase que intransponível, está o coito de Lampião. É ali onde as mulheres cangaceiras esperam seus homens que retornam de mais uma de suas costumeiras razias.

Os soldados vêm chegando. Chegam a umas pias. Espantados, vêem os pingos de água que caem dos paus em cima das pedras. Sinal de que os bandidos ainda estão por ali mesmo. Ao redor das pias, apenas uns quinze homens, os outros estão atrasados, alguns estão na casa velha do Maranduba e outros ainda nem lá chegaram. Mané Neto, louco por uma desforra, resolve não esperar os retardatários e seguir em frente, sabe que os homens de Lampião estão bem próximos, ali naquela mataria. 

No entanto, não sabe Mané Neto que a natureza havia presenteado aquela parte da caatinga com um extraordinário anel, formado por um maravilhoso círculo. Sete umbuzeiros circundam belamente as pias, é uma paisagem de raríssima beleza. É nesse anel formado pelos sete umbuzeiros que Lampião se refugia com seus homens. Havia chegado naquele mesmo momento, coisa pra menos de meia hora, demorara-se um pouco nas pias e agora espalhara seus homens pelas sombras dos umbuzeiros. A alegria é geral. Abraços e vivas fazem a felicidade de todos. Os bandidos formam uma só família. Vivem irmanados pela dor e pelo sofrimento. 

Apenas Lampião não tem alegria. Está taciturno e inquieto. Chama Luís Pedro e ordena:

— Avise ao pessoá qui enquanto nóis num preparar os sentinelas, eu num quero ninguém desequipado, quero todo mundo aperparado e pronto pra uma surpresa. Achu qui a quarquer momento a gente vai ser atacado. 

Mané Neto está saindo das pias e vagarosamente caminha na mataria. Os cangaceiros estão ali a menos de cinquenta metros. A hora da verdade chegou. Escutam as vozes alegres da cabroeira. Rápidos cercam, ou pensam que vão cercar o coito. Acham que os bandidos estão em um umbuzeiro. Jamais poderiam imaginar que ali existissem sete umbuzeiros e que os bandoleiros estivessem espalhados em todos, como também não imaginaram que os bandidos estivessem praticamente preparados para o combate, graças ao poder misterioso de Lampião que previu com precisão o momento do perigo. 

São exatamente duas horas da tarde. É o dia nove de janeiro de 1932. Estão frente a frente os inimigos mortais. Nazarenos e Lampião se enfrentarão, Liberato e sua força serão os coadjuvantes da tremenda desforra. A oportunidade de vingar-se do desastre da Serra Grande se apresenta e os nazarenos não poderiam deixar fugir esta grande chance. Serra Grande era uma marca dolorosa que feria profundamente a vaidade de Mané Neto; grandioso combate que ficara nos anais da guerra cangaceira, oportunidade em que as forças comandadas por nada menos que seis experientes comandantes, os temidos Arlindo Rocha, Zé Olinda, Gino, Domingos, Euclides Flor e Mané Neto, foram espetacularmente derrotados pelo iluminado cangaceiro da Ingazeira. 

Triste 26 de novembro de 1926, data em que as mortais balas dos bandidos deixam marcas indeléveis em suas pernas e quase o levam para o outro mundo. Agora, seis anos depois, surge a maior chance e ela precisa ser aproveitada. Serra Grande e Maranduba, além de Serrote Preto, foram na verdade as maiores vitórias e os maiores feitos do grande rei dos cangaceiros.

Nos cerrados de Maranduba, Lampião dá o alarme. Grita:

— Cuidado mininos. Os macacu cercaru a gente. 

Nesse momento, o inferno como que desaba naqueles ermos. Não existe nada comparável à violência e aos estrondos do combate e do tiroteio. O ribombar ecoa longe, muito longe. Parece que o inferno transportou para aquela esturricada terra os horrores e agonias de suas profundezas. 

Os das volantes, valentes, vaidosos, confiantes e destemerosos, atiram e avançam enlouquecidos e alucinados. A ordem de Mané Neto é avançar e avançar sempre. Liberato está ao seu lado; ele e mais alguns entre os quais Mané Véio, Elias Marques e o filho Procidônio estão na vanguarda, ao lado de Mané Neto. Querem mostrar que são verdadeiros machos, verdadeiras feras, que nada ficam a dever à força pernambucana. 

Os soldados gritam: Mistura! Mistura! 

A vitória parece certa. Já estão misturados, juntos, dentro do coito. Os retardatários vêm chegando, tudo vai ser muito mais fácil, a animação da tropa é sem igual, aquele está sendo um feliz combate. Lampião não tem como safar-se do cerco que lhe fizeram. É hoje ou nunca.

É para Mané Neto a justa recompensa de tantos anos de luta e sofrimento, desde aquele já distante 1923, quando juntamente com o amigo e conterrâneo Odilon Flor ingressaram nas tropas do governo, persegue o infeliz inimigo, e vem sendo sistematicamente derrotado. Alí não é Serra Grande. Naquele combate, apesar de Lampião ter enfrentado seis destemidas volantes, com mais de trezentos homens e sair vencedor, contava com a vantagem de ser o atacante, de estar fortemente preparado e bem entrincheirado esperando as volantes impossibilitadas de sair da arapuca. 

Agora a situação é totalmente inversa, tudo é diferente; apesar do número de soldados ser muito menor, todos os trunfos estão do lado das volantes. Acham que Lampião havia sido atacado de surpresa, e o local, embora muito fechado, era raso, em um plano que muito beneficiava os atacantes; tudo favorecendo as forças. 

Mas do outro lado, o herói, o titã do nordeste, o guerreiro ímpar dos sertões. Imediatamente, dos sete umbuzeiros estrondam furiosas as armas da cabroeira. Rápidos formam um envolvente bloqueio. Procuram de todas as maneiras fazer frente aos da volante. Experientes, calejados e preparados, os veteranos bacamarteiros, dentro da mais perfeita ordem, procuram se alargar pelo cerrado, numa manobra altamente tática e envolvente, deixando os atacantes sem saber para onde dirigir o combate. Começam então a aparecer as primeiras dificuldades, aquele combate que parecia dominado e à mercê dos soldados, está se apresentando como um difícil e tremendo confronto. 

O momento do flagrante já passou. Estarrecidos, os soldados sentem que não conseguiram a vantagem esperada e ainda se dão conta de que já não são os atacantes; sofrem uma medonha investida. O ímpeto e ferocidade dos bandidos são inigualáveis. Começam a ficar desnorteados. Aquilo que parecia ser o início de uma gloriosa vitória começa a ser um terrível e inesperado pesadelo. A luta é de uma atrocidade impressionante. Ali está a nata dos valentões sertanejos. Verdadeiras feras. Verdadeiros suicidas. 

Mané Neto, o lendário vesgo de Nazaré, mostra-se realmente um valentão. A sua vaidade, a sua soberba, na verdade são nascidas de seu temperamento de ferro e de sua incomparável coragem. Liberato não deixa por menos, é também um gigante sertanejo. Juntamente com o Mané Fumaça, formam uma dupla de desassombrados comandantes que não sabem qual é o significado da palavra medo.

Mas apesar da valentia dos comandantes e de seus soldados, o destino da batalha estava selado. A derrota havia se afigurado desde o início da perseguição quando o despeito entre as volantes havia decretado aquele desastre que, no momento do tiroteio, estava se consumando. O verdadeiro e maior desastre foi a chegada dos retardatários. 

Com o estrondar do pesado fogo eles reúnem suas últimas forças e correm para ajudar os companheiros. Não contam com a experiência de Lampião e seu bando que se haviam espalhado deixando os soldados sem saber para que lado atirar. 

Quando também se envolvem com a luta não discernem o alvo a ser atingido e, na ânsia de socorrer seus companheiros, disparam naqueles que se aproximam, confundidos com os inimigos. 

Angustiados percebem o fortíssimo e nutrido fogo em que se encontram. O desastre e a tragédia se configuram. Desesperados, Mané Neto e Liberato tentam parar o fogo cerrado de seus próprios comandados. O impossível está acontecendo, desgraçadamente seus melhores homens estão dentro de um corredor mortal, cujo tapete era o sangue de sua própria gente. 

As baixas começam assustadoramente a subir. Os primeiros ata-cantes estão sendo dizimados, os homens de Mané Neto são os mais atingidos. Desenha-se o quadro monstruoso de mais uma desastrada derrota.

Dos da Bahia estão na linha da frente, além de Liberato, os valentes de Santa Brígida; Elias Marques, seu filho Procidônio e Mané Véio, os quatro baianos brigam juntos. Um pouco mais ao lado, brigam Mané Neto e João de Anízia, outros estão espalhados e amparados nos troncos das árvores. 

Os bandidos estão enlouquecidos. Avançam como se fossem feras, atiram e adiantam, negaceiam e progridem, gritam e atiram. Rifles e mosquetões estão em brasa, a sede é torturante, os cangaceiros em cima, endemoniados. 

De repente, Elias é baleado, Procidônio pergunta se o ferimento é grave, o ferido é um titã, quer lutar ao lado do filho. Responde que não. Foi apenas um ferimento no braço. A luta continua, minutos depois Mané Véio vê Elias caído, corre e ampara o tio colocando-o sobre suas pernas. Antes viu um cangaceiro como um louco pular na frente dos atiradores, parecendo que queria pegar Mané Neto à mão. 

bandido está tão próximo que, sem dificuldade alguma, atira e o cangaceiro cai a seus pés. Aproveita e da cabaça do próprio bandoleiro bebe água; retirando a caneca dependurada na mesma cabaça, enche-a de água. Quando sorve o precioso líquido sente um gosto muito grande de sangue. Não se incomoda. Como está morrendo de sede torna a encher a caneca e aí vê a mesma se tingia com o sangue que pingava da cabeça do cangaceiro morto: Sabonete. 

O ferimento de Elias, a princípio, aparentemente sem a menor gravidade, agora lhe retira a vida. Nos braços de Mané Véio e de Procidônio, esvai-se em sangue. O filho também está baleado em uma perna. A situação torna-se dramática e desesperadora. Entre os nazarenos, a tragédia ainda é maior. Mané Neto e os seus, debaixo de um verdadeiro massacre, assiste à queda de seus homens numa constância alarmante.

Muitos feridos e vários mortos. Já estão sem vida os irmãos Edelgício e Ercílio de Sousa Novais, filhos de Conrado Ferraz Nogueira, da fazenda Ema, e irmãos de Aurelino e Herculano. Também tomba sem vida o sargento João Cavalcante, conhecido como João de Anízia da Ipueira, além de Antônio Benedito, Pedrinho e Manuel Ventura. 

Dos cangaceiros morrem apenas Sabonete e Caatingueira. Aquela tão sonhada desforra, aquela gloriosa vitória, torna-se em uma retumbante derrota, parecendo que as duas volantes serão aniquiladas pelos verdugos de Lampião. 

Mané Neto está enlouquecido, não se conforma com o desastre e renega a sua própria sorte. Alucinado, contempla seus homens estirados, sem vida naquela caatinga. Procura pelo companheiro João de Anízia, o valoroso sargento de sua Nazaré, até que o encontra morto no pé de uma braúna, não nota ferimento e nem sangue; só depois de revirá-lo é que descobre o grande furo deixado pela bala em suas costas. Não é possível que aqueles homens tão destemidos e valentes estejam alí sem vida. O que dirá aos pais, irmãos, esposas e filhos quando para Nazaré retornar? Alí mortos estão os homens que nasceram, cresceram e viveram sempre juntos, todos praticamente de uma mesma família, todos enfrentavam e quase sempre eram derrotados por um dos seus, por um dos que também viveram toda sua vida naqueles campos secos e bravios dos sertões de Vila Bela. 

A batalha do Maranduba, como a de Serra Grande, foram os maiores pesadelos da história romanesca daqueles que perseguiam os asseclas nordestinos e a total desmoralização dos cabras de Nazaré, a partir desse fatídico dia, não mais conseguiram ímpetos e nem ânimo para guerrear com Lampião e sua gente. Maranduba e Serra Grande são, portanto, os dois maiores marcos, os dois maiores feitos da guerra cangaceira."

* Do livro MENTIRAS E MISTÉRIOS DE ANGICO - Alcino Alves Costa

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Filme Real - Lampião e Benjamin Abrahão

Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, foi um cangaceiro brasileiro, que atuou em todo o Nordeste, exceto no Piauí e Maranhão, ficando conhecido como Rei do Cangaço, por ser o mais bem sucedido líder cangaceiro da história.


domingo, 21 de fevereiro de 2016

Lampião e Zé Rufino os marechais do sertão e outros valentes






A comparação desses dois homens que se engalfinharam mortalmente nas caatingas nordestinas, feita por Alcino Alves Costa, em livro bastante controvertido, - Mentiras e Mistérios de Angico - onde


teceu algumas argumentações a respeito da história do cangaço, com raciocínios excelentes, desenvolvidos para colocar conflitos nas mentes dos estudiosos da saga. São bastantes criteriosas quando efetua um confronto paralelo de duas personalidades violentas em lados opostos. Um representava a lei e o outro a desordem. 

Qual dos dois era mais violento? 

É a aproximação dos dois, em termos entre os quais existiu alguma relação de semelhança, a violência, como metáfora. A comparação, porém, é feita por meio de um conectivo (os homens violentos de além mar) e busca realçar determinadas qualidades do meio termo (liderança, coragem e inteligência) desses dois grandes homens, que viveram uma vida de sobressaltos.

Vamos então mostrar como foi que esse famoso autor da saga cangaceira levou a termo, sua apreciação por esse dois comandantes guerrilheiros:


Lampião e Zé Rufino os marechais do sertão 

Na história deste velho mundo, sempre haverá um lugar reservado, um espaço para os predestinados, excepcionais mortais que se destacam em suas atividades e tornam-se históricas personagens que o passar dos anos não consegue levar para o esquecimento; homens que receberam da divindade este DOM que os caprichos da mãe natureza delega aos seus prediletos filhos. 

Em todos os campos da atividade humana existem as sumidades: química, física, medicina, enfim em todos os caminhos da vida, e, como não poderia deixar de ser, também existem aqueles que foram sumidades do crime e da violência. Não sei se podemos classificar Lampião e Zé Rufino como astros do crime e da violência. Sou de opinião que ambos deveriam ser classificados como gênios táticos de uma luta onde foram mestres, em uma arte onde eram insuperáveis, heróis que possuíam uma rara e sem igual habilidade em conduzir seus homens nas mais difíceis empreitadas, exercendo uma liderança sobre seus comandados que era qualquer coisa de fazer inveja aos exércitos mais disciplinados. 

Os cabras de Lampião e os contratados de Zé Rufino lhes obedeciam cegamente. Eram realmente inacreditáveis as façanhas dos dois chefes, homens praticamente incultos, sem a mínima experiência militar, que mantinham sob seus comandos homens rudes que mais pareciam feras, filhos do sertão bravio, onde a maior lei era o chicote do coronel. Quase todos perversos criminosos, nascidos e criados naquela região hostil, onde não se conhecia o mais elementar costume de boas maneiras e educação, levados por uma estranha e misteriosa força, acatavam até as últimas consequências, até se possível à morte, as ordens e as vontades emanados dos dois grandes comandantes. 

Ao acompanharmos, com os detalhes e as minúcias que a complexa história do cangaço requer, e em particular a odisseia Lampião e Zé Rufino, iremos claramente perceber, através dos tempos, os violentos eventos que abalaram o mundo e que mereceram destaque por seus extraordinários efeitos e causas. Muitos desses, ou todos eles, originados pela doentia mente de seus idealizadores, não os retiram da categoria de homens de brilhantes inteligências, tais como Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler e tantos outros que levaram a humanidade aos clamores da guerra, guerreiros que implantaram a tirania escudados pelos fluidos negativos de suas raríssimas inteligências. 

Exemplo disto é a guerra particular disputada pelos inigualáveis Erwin Vom Rommel, o famoso e genial marechal de campo do África Korps do exército alemão e o não menos brilhante marechal Bernard Law Montgomery, o célebre Montgomery of Alemain, do exército britânico, que no deserto da África travaram o mais espetacular duelo no jogo de xadrez da guerra nazista, vendo-se de um lado o fenomenal Vom Rommel, com suas temidas e afamadas divisões Panzer, e de outro a refinada técnica do insuperável Mont. 

Em que pesem os tributos pagos com vidas humanas, não se pode esquecer a excepcional habilidade dos dois marechais. A luta dos titãs dos países do além-mar, era uma dimensão sem limite, do tamanho do próprio mundo, mas, guardadas as devidas proporções, luta igual foi travada nos campos ressequidos do sertão brasileiro, com bravura, coragem, sabedoria e maestria pelos marechais caboclos Lampião e Zé Rufino. 

É claro que não se pode fazer comparações entre as duas causas. Uma a do sertão, era a luta dos fracos, dos injustiçados que, ao sofrerem as piores humilhações, as mais injustas perseguições, rebelaram-se e enfrentaram os donos do sertão de igual para igual, levando, na maioria das vezes, a melhor. A outra, a guerra nazista, o destempero e a loucura de um ensandecido homem, que não titubeou em empapar de sangue toda a humanidade. Verdade seja dita: o sertão, — pode-se perfeitamente dizer, — tem ou teve o privilégio de ter dado ao Brasil e, possivelmente, ao mundo dois de seus maiores estrategistas e guerreiros. É fora de qualquer dúvida que Lampião e Zé Rufino foram, na acepção da palavra, dois gênios na ciência dos combates e na tática de ataque e defesa; dois mágicos conhecedores profundos dos segredos da dura guerrilha que participavam. 

Em suma, possuíam os dois fenomenais sertanejos toda a clarividência dos grandes e lendários guerreiros dos remotos tempos. Não se pode, também, desconhecer os anos de suas lutas particulares, quando os dois bravos mestiços travaram o mais espetacular duelo da sangrenta guerra do cangaço nordestino; cangaço que teve seu início nas primeiras vinditas dos clãs povoadores dos sertões, desde os tempos do Brasil Colonial indo até os colonizadores do Inhamuns, nas barrancas do Jaguaribe, em terras do Ceará, passando pelos sertões do Piauí e Paraíba até chegar aos campos desertos e bravios de Pernambuco. 

Além desse fator primordial, as vinditas e pendengas, que geraram desafrontas por anos sem fim, varando toda a sertania com esta feroz e sanguinolenta disputa de força, poder e domínio, havia também aquelas disputas pessoais onde o único motivo era o despeito e vaidade de determinado potentado contra o outro. 

E assim, todo o sertão foi palco de extraordinárias medições de forças e demonstrações de inimagináveis bravuras que, apesar de muitas vezes trágicas, eram ao mesmo tempo belas, heroicas e românticas. Ficaram nos livros da história sertaneja a valentia desses sanhudos e embravecidos sertanejos que não se cansaram de mostrar todo o valor de suas nunca desmerecidas coragens e o valor e peso de suas temidas armas. 

Lamentavelmente, os protagonistas dessa tenebrosa luta, como Lampião e Zé Rufino, não percebiam que viviam a se matar em uma luta sem o menor sentido e sem nenhuma razão de ser; eram heróis, gigantes, verdadeiros titãs que viviam a porfiar, carregando nessa esteira um grande número de inocentes caatingueiros que não atinavam e nem percebiam os perigos a que se expunham nessa tremenda luta.
Infelizmente a matutada não sabia que estava sendo marionete que, a cada dia, mais ficava a mercê dos coronéis, os senhores do sertão. 

É difícil imaginar tudo isso no sertão do Padre-Mestre lbiapina, o lendário Padre José Antônio de Maria Ibiapina, antes Juiz de Direito de Quixeramobim e velho protetor dos Maciéis, na luta desses com os Araújos. Deixando a vida de magistrado para tornar-se sacerdote e protetor dos pobres no dia 14 de novembro de 1835, Ibiapina tinha-se demitido de sua condição de Juiz no dia 10 de dezembro de 1834, um ano depois de ter sido nomeado, no dia 12 de dezembro de 1833. 

Também é o sertão do grande peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel, o Bom Jesus Conselheiro, de Canudos; sem se falar naquele que foi o maior dos sacerdotes dos sertões, o padre Cícero Romão Batista, o protetor do Juazeiro, pelos quais toda a sertanejada nutria o nobre conceito de santos.

Espanta como os sertanejos ainda se deixavam envolver por pequenas intrigas que só beneficiavam os grandes e poderosos coronéis e fazendeiros. Ora, nesse sertão, apesar de inculto e primitivo, havia a palavra altamente acreditada dos pregadores.

Portanto, a fé era criteriosamente programada e intensamente voltada para a fanatização dos ingênuos mateiros, e o que é de se estranhar é que homens, como esses missionários, com tamanho carisma, não tenham conseguido afastar Lampião, Zé Rufino, Luís Mansidão, Cassimiro Honório, Antônio Matilde, Tenente, Sabino Gomes e uma legião de facinorosos e valentões que espalharam o terror e o medo nos campos nordestinos; mesmo sabendo-se que todos esses enegrecidos homens guardavam no fundo de seus corações o mais puro, mesmo que primitivo e embrutecido, sentimento religioso. 

A verdade é que todos sentiam verdadeira admiração, respeito e veneração pelos mensageiros de Deus, como assim eles julgavam os pregadores. Era realmente belo e romântico ver os bravos e heróicos bacamarteiros assistirem contritos e ajoelhados, embevecidos e humildes, aos fulgurosos e apaixonantes sermões de então. 



sábado, 20 de fevereiro de 2016

Zé Rufino o maior dos comandantes

Zé Rufino
Alcino Alves Costa foi um dos grandes pesquisadores do cangaço e em seu livro "Mentiras e Mistérios de Angico" traz o seu reconhecimento desse bravo pernambucano que combateu o banditismo e através de raciocínios lógicos, nos faz ver que realmente esse grande soldado, combatente de cangaceiros, foi também um excelente estrategista, e exemplo de coragem e inteligência. 

Quando comecei a estudar e pesquisar sobre o cangaço, inicialmente via Zé Rufino com reservas, sua caçada ao cangaceiro Corisco, foi finalizada de uma forma que podemos enxergar como prepotente, pois Corisco estava rendido e sem condições de enfrentar a força da volante comandada por ele. Não me atenho aqui às acusações que fizeram contra ele, em estar em busca de uma pequena fortuna que achava, se encontrar com o cangaceiro. 

Mas sim, a forma em que abateu um homem sem forças, praticamente aleijado, e que não podia sustentar o peso de uma arma. Morreu Corisco por talvez não querer ser preso. Sua mulher, Dadá, mulher de coragem e guerreira, baleada veio a perder uma das pernas, mas que Zé Rufino em respeito não permitiu que seus homens fizessem com ela e com o marido morto, o que comumente faziam, cortar as cabeças.

Sei que alguns ainda odeiam a esse homem corajoso e guerreiro, por sua perseguição a Lampião. Mas devemos entender que os cangaceiros eram bandidos e tinham que ser caçados, presos ou mortos nos combates, pois a sociedade sertaneja já não suportava as investidas muitas vezes bárbaras de tais homens.

Aqui temos uma entrevista concedida pelo famosos Comandante de Volante Policial, Coronel Zé Rufino ao Jornalista Paulo Gil Soares em 1964.

Abaixo, temos então o comentário de Alcino Alves Costa, sobre o célebre José Osório de Farias, o lendário Zé Rufino, que pode ser considerado o maior do comandantes de volante, e perseguidor de cangaceiros.

Zé Rufino o maior dos comandantes 

Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas , Sergipe e Bahia foram os Estados brasileiros que guerrearam anos sem conta os grupos bandoleiros que infestaram todo o chão nordestino. Tropas e mais tropas vagaram pelos ermos das caatingas, na perseguição incessante, expostos e sujeitos a toda espécie de perigos que o rigor da campanha fatigante os fazia enfrentar. 

Luta sangrenta que via varar anos e mais anos, aumentando, cada vez mais, o sofrimento e agonia do homem do campo, assim como os responsáveis pela manutenção da ordem que padeciam sentindo o orgulho ferido, sem poderem nada realizar para impedir a crescente força, cada vez maior, das grandes estrelas do cangaço. Esses mantenedores da lei não possuíam condições e nem meios para exterminar o grande flagelo oriundo do banditismo. Lendários e famosos, respeitados e temidos, receberam de seus superiores a delicada incumbência de comandar forças militares que adentravam as caatingas com o nome temível e violento de "Volante do Governo". 

Homens que, como os maiores do cangaço, se tornaram lendas na odisseia cruenta da guerra cangaceira. Poderíamos citar nomes e mais nomes de bravos chefes de volantes, heróis de envergadura de Clementino José Furtado, alcunhado de "Quelé do Pajeú", que em outros tempos havia sido um famanado cangaceiro lá das bandas de Triunfo, para depois servir ao governo de Pernambuco, comandando uma volante famosa e extraordinária, apelidada de "Pente Fino". 

Ninguém esquece as façanhas dos dois nazarenos: Manoel de Sousa Neto, o falado Mané Neto e Odilon Flor. Ainda: Luís Mariano da Cruz, Teófanes Ferraz Torres, que se celebrizou por ter sido o autor da prisão do luminar Antônio Silvino, o grande Rifle de Ouro do Nordeste; João Bezerra da Silva, célebre matador de Lampião; o baiano Liberato de Carvalho, destemido comandante de forças daquele Estado; José Lucena de Albuquerque Maranhão, afamado chefe das torças alagoanas de repressão ao banditismo e cruel matador de José Ferreira da Silva, pai de Virgulino. 

Ainda David Jurubeba, Arsênio de Sousa, Optato Gueiros e tantos outros que pelejaram com os facinorosos dos sertões; uns realmente caçando bandidos e muitos outros se espalhando pela imensidão das caatingas, adentrando matas e cerrados, sem pensar em caçar cangaceiro, mas com o intento único de beneficiar-se da caótica situação reinante nos campos pisados pelos bandoleiros, em nome de uma lei que, indignamente, se arvoravam de representantes, espoliavam e maltratavam ao máximo o homem e a vida daquele inculto e desconhecido mundo. 


Pernambuco, meca dos volantes, paraíso das grandes vinditas, é o Estado natal daquele que pode ser considerado o maior do comandantes de volante, o célebre José Osório de Farias, o lendário Zé Rufino. Nascido a 20 de fevereiro de 1906, na cidade de São José de Belmonte, seus pais se chamavam Osório Gomes de Farias e Maria Rufino da Conceição, residentes na fazenda "Vai Querendo". Família egressa da terra bravia do Ceará, vitimada por velhas e perigosas pendengas com os Bezerras, gente forte que os obrigara a abandonar seu solo e procurar vida nova nas regiões sertanejas do grande Estado nordestino. 

Um misterioso "causo" dava conta que Zé Rufino e Lampião vinham do tronco de uma mesma árvore genealógica cearense, ambos, porém, nascidos no sertão pernambucano. Se verdade ou lenda, o que se sabe, com absoluta certeza, é que os dois notáveis caboclos possuíam elos dos mais íntimos. Como se sabe, suas famílias foram egressas do Ceará, sendo que Lampião tinha apenas o pai, filho daquele Estado, uma vez que sua mãe, dona Maria Vieira Lopes, era filha de Manoel Pedro Lopes e dona Maria Jacosa Vieira, todos filhos do Pajeú. 

Possuíam, também, uma aparência física verdadeiramente impressionante: eram iguais na cor, na estatura, no formato, nos modos, na valentia, além de uma inteligência fora dos padrões normais daquela gente. Ainda tocavam fole, faziam perneiras e gibão, sapatos e rolós; ambos extraordinariamente bons no coice do mosquetão. Segundo declarações do próprio Zé Rufino, a Paulo Gil Soares, em seu livro "Vida, Paixão e Morte de Corisco o Diabo Louro", 
página 52, depois de convidado por Lampião para engajar-se no cangaço, recusa. 

Tempos depois recebe uma mensagem do coronel João Novais, que o induz a seguir para o Estado da Bahia, justamente para perseguir e combater o famoso conterrâneo que se bandeara para os sertões sergipano e baiano. E lá se vai o rapaz de São João do Belmonte com mais três parentes para o Estado da Bahia, mais precisamente para a cidade de Jeremoabo, sede, naquele Estado, da campanha de repressão ao banditismo. Vem daí o começo da guerra particular e feroz travada entre os dois pernambucanos, numa medição de forças que durou longos anos, espetacular disputa onde caçado e caçador mostravam toda grandeza de suas proezas e bravuras. 

Em pouco tempo vemos Zé Rufino comandando uma volante, já então iniciado nos caminhos da fama. Usando sua rara inteligência, escolhe vinte homens para com ele trabalhar. Os escolhidos eram destemidos e valentes, portadores mesmo de uma coragem muito acima dos limites da normalidade e da imaginação humana, todos experientes mateiros que, sob o comando seguro e capaz do filho de seu Osório, escreveram páginas repletas de heroísmo e glórias, escritas pelo fogo ardente e mortal expelido pela boca negra de suas temidas armas.
Homens Que Atuaram Nesta Famosa Volante 

Levando-se em conta que nem todos começaram e terminam juntos toda a campanha, de uma forma geral, a maioria sempre esteve junta, formando no mesmo grupo, com apenas uma ou outra mudança que o passar dos anos exigia. Os grandes nomes da volante foram os seguintes: Além do notável comandante, haviam: dois cabos; Artur Figueiredo e Miguel Bezerra, também conhecido como Miguel de Contânça; Gervásio, que era o rastejador, aliás, um dos melhores; os soldados Leonídio, Besouro, Capão, João Doutor, Joao Severiano, Zé Serra Negra, Paulino de Belo (Paulo de Tavinha), Bentivi, Alípio, Zé Monteiro, Jovino Juazeiro, Ercílio Novais, João Fuisso, João Venâncio, Zé Firmino de Matos, Valdemar e João Redondo. 

Nessa volante trabalhou também Badu Feitosa que poderia ter sido um dos mais famosos, mas foi expulso da volante (ver capítulo sobre o mesmo) 

Zé Rufino e seus comandados eram aquartelados no então povoado Serra Negra, no Estado da Bahia, nas divisas com o Estado de Sergipe, berço do clã dos Carvalhos, descendência familiar completamente diversa dos lendários Carvalhos de Pernambuco, que sustentaram a tenebrosa guerra com os Pereiras comandados pelos famosos Padre Pereira, Luís Padre, Sinhô Pereira, Né Dadu e tantos outros bravos. 

Os Carvalhos de Serra Negra eram senhores de cutelo e baraço, e o tenente João Maria era o grande chefe do clã, do povoado e das redondezas. Nesse povoado, Zé Rufino fez o seu ponto de partida para as ferozes batalhas contra os grupos de bandoleiros que infestavam os sertões da Bahia e de Sergipe. 

Zé Rufino e seus homens foram um dos grandes pontos de referência que ajudavam a alimentar as rezas, as crendices e o misticismo da gente sertaneja. Toda a sertanejada achava e ainda acha que os componentes dessa volante viviam protegidos pelas mandingas e rezas fortes da negra velha da serra, famosa pelas suas orações e patuás, razão pela qual os dessa volante jamais saíam feridos dos combates. 

Contam-se verdadeiros milagres acontecidos durante perigosos tiroteios, quando somente uma proteção superior ajudava os valentes de Zé Rufino a se livrarem das mortíferas balas dos medonhos inimigos. O massacre dessa volante era o grande sonho, não só de Lampião, mas de toda cangaceirada. 

O que se sabe, dentro do critério da mais pura verdade, se pelas rezas e crendices, ou ainda por qualquer outro mistério, é que os membros daquela lendária volante, homens que destemidamente enfrentavam, na guerra medonha dos sertões, os valentões do cangaço, vivendo quase sempre expostos aos enormes perigos dos mortais recontros, milagrosamente, nenhum deles foi morto ou sequer baleado. 

Portanto, não se compreende qual a força ou o poder dessa volante que tanto brigou, tanto guerreou, tantos bandidos matou ou feriu, sem sofrer qualquer baixa. Que estranho poder envolvia e amparava Zé Rufino e os seus? Por que as balas inimigas não atingiam o comandante e nem os seus comandados? 

Este foi caso único em toda história da guerra cangaceira. Para o povo tudo não passava das rezas daquela negra protetora da volante ou, talvez, a mão divina auxiliando e guiando Os bravos componentes da volante. Mas é claro, se deve reconhecer, dentro de toda essa sorte ou proteção maior, via-se a apurada técnica e maestria do genial comandante, que sabia, como poucos, enfrentar os mais duros combates, usando perfeitas táticas e magistrais manobras. 

Zé Rufino quase sempre conduzia a sorte para o lado de sua volante. Ao contrário de tantos outros comandantes, Zé Rufino procurava sempre se esmerar e se fazer respeitar não só pelos bandoleiros, mas por todos que nos sertões viviam e, mais ainda, pelos seus subordinados e superiores. 

Zé Rufino é um daqueles que fazem parte da gloriosa dinastia dos bravos guerreiros da história sangrenta, daqueles que de um lado ou de outro se enfrentaram na guerra sertaneja. É um dos lendários titãs cujos bacamartes faziam todo o sertão apequenar debaixo de suas duras ameaças. 

As grandes estrelas da valentia nordestina foram: Alexandre da Silva Mourão, o famanado dos Mourões; José de Barros Melo, apelidado de Cascavel, uma das feras dos irmãos Meios; o inimigo capital dos Mourões, parente muito próximo do famoso André Vidal de Negreiros, que foi um dos baluartes da luta contra os holandeses, o famoso bailarino e tocador de viola, Vicente Lopes Vidal de Negreiros, lendariamente conhecido como Vicente da Caminhadeira. 

Bravos como ele foram: Simplício Pereira da Silva, um dos ferozes homens dos Pereiras, apelidado de "Peinha de Mão"; Né Dadu, que formou com seu irmão Sinhô Pereira, as maiores bandeiras dos Pereiras; Os destemidos e heroicos defensores dos Carvalhos, inimigos mortais dos Pereiras, João Lucas das Piranhas, Jacinto Alves de Carvalho, o Celebrado Cindário; José e Antônio, das Umburanas; Cirilo do Lagamar, Luís Nunes de Souza, o famanado Luís do Triângulo; João e Manoel Marcelino, que eram, respectivamente, os cangaceiros Vinte e Dois e Bom de Vera; José Bernardo, que é o José Piutá ou ainda Casa Velha; Jesuíno Brilhante, que na vida comum se chamava Jesuíno Alves de Melo Calado, um dos maiores e mais afamados cangaceiros de Afogados da Ingazeira; o grande Rifle de Ouro dos Sertões, António Silvino, sem se falar na maior e mais luminosa estrela, o grande rei, Virgulino Ferreira da Silva. 

Portanto, não seria exagero juntar-se a essa plêiade de titãs, homens como o próprio Zé Rufino, Miguel e Artur, os dois cabos de sua perigosa volante; Mané Véio ou Antônio Jacó — a fera de Santa Brígida, Os nazarenos Mané Neto e Odilon Flor, os baianos Besouro e Leonídio e tantos outros que formaram nesta constelação que iluminou o universo cruento das terríveis lutas, pendengas e batalhas, que estão escritas no livro rubro da história sertaneja.