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domingo, 14 de agosto de 2016

CANGACEIROS: Perversidades e Violências

Comecei a ler e marcou-me a narrativa do autor, que conta-nos um acontecido que se deu nas entranhas da caatinga dos cardeiros espinhentos, do sertão das almas que pedem chuva e quando essa não vem, choram. Choro esse para molhar o chão ressequido que recebe aquela secreção de cor do sofrimento suspirado e salgado e salgado fica cada vem mais, o chão. 

Certo dia, conta-nos José Lins do Rego, apareceu na cidadezinha que estava perdida na caatinga do sertão pernambucano um homem com uma viola nas costas, um saco nas mãos e atravessado em seu peito uma rede de dormir servindo de colete. Era um cantador desses que o sertão já vira por diversas vezes perambulando pelas feiras populares.

O cantador chamava-se Deocleciano e em cada cidadezinha que passava, as pessoas conheciam sua força expressiva pois contava estórias que faziam aquela gente chorar, rir e admirar sua desenvoltura e que deixavam marcadas nas mentes como um ferro de marcar gado aqueles que o escutavam. "Fora amigo de cangaceiros. Não dizia nada para não ser tomado como espia. Deus o livrasse de cair na mão de uma volante, de tenente de polícia. Conhecia cangaceiro de verdade. Nem era bom falar."

Antônio Bento, que ajudava na igreja, como coroinha, se tornara seu amigo por admirar a vida de liberdade daquele menestrel vagabundo e ouvia atento suas narrativas. Só dizia tais para Bentinho (como todos o chamavam) para que ele pudesse avaliar sua força mostrada aos cangaceiros, cabras que gostavam de ouvir viola nas noites de lua, nos ermos da caatinga. Cantava para eles com paixão. 

"Lá para as bandas de Princesa estava aparecendo agora um Ferreira, que era um bicho danado. Diziam que ele estava vingando a morte do pai. E que não respeitava nem os coronéis do cangaço! - Menino, não queira ver cangaceiro com raiva. Dê por visto um demônio armado de rifle e punhal. Eu estava uma vez numa fazenda perto de Sousa. Chegara lá depois de dez léguas tiradas a pé. O homem me deu pousada. Dormi no copiar da casa, na minha rede.
No outro dia, mais ou menos por volta das duas da tarde, nós estávamos na mesa, na janta, quando vimos os cangaceiros na porta. A família correu para as camarinhas e eu e o velho ficamos mais mortos do que vivos, estatelados. Era Luís Padre com o bando dele. "Velho safado!", foi ele gritando logo, "se prepare para morrer." O homem se levantou e foi duro como o diabo: "Estou pronto bandido, faça o que quiser". 
Luís Padre perguntou pelas moças. Queria comer. O pessoal estava fome. E foi andando para o interior da casa. O velho pulou em cima dele como uma cobra. Nisto os cabras se pegaram ele. "Amarre esta égua", gritou Luís Padre. As moças e a velha correram para a sala de janta, fazendo um berreiro como se fosse para defunto. "Meninas", disse o chefe do bando, "nós queremos é de comer. Deixa a velha na cozinha. Nós queremos é conversar com vocês." 
Nisso a velha caiu nos pés de Luis Padre: "Capitão, respeite as meninas! Não ofenda as minhas filhas, capitão!" - "Ninguém vai ofender as meninas, velha cagona!" E foi uma desgraça que eu nem tenho coragem de contar. Os cabras estragaram as moças. Ouvi o choro das pobres, os cabras gemendo no gozo, o velho urrando como um boi ferrado. Foi o dia mais desgraçado de minha vida.
No começo eles quiseram me dar. Contei que não era dali. O homem me dera uma pousada. Eu era um cantador. Então botaram as moças quase nuas no meio da casa. Tinham que dançar. Nunca na minha vida vi cara de gente como a cara das moças. Estavam de pernas abertas até grudadas nos cabras. Toquei viola e cantei até de madrugada. Fiquei rouco, com fala de tísico. Depois eles deram uns tiros no velho e meteram o pau na na mulher. Tive que sair com o grupo até longe. Me disseram horrores. Se a polícia chegasse no Espojeiro, tinha sido coisa minha. Quando me vi solto na caatinga, estava como um defunto, nem podia dar dois passos. Era de noite. O céu do sertão era um lençol de algodão com a lua. Não tive mais coragem de andar. Estendi minha rede debaixo de um pé de umbú e dormi. Dormi tanto que acordei com sol na cara. A minha goela queimava como se eu, tivesse comido um punhado de pimenta. O meu corpo estava podre. E nem quis mais pensar na noite da desgraça. Menino, dois meses depois, ainda tinha na cabeça o velho esticado no chão, as meninas dançando, a velha chorando. Tive até medo de ficar doido. Foi ai que pus a história no verso. E na feira de Campina Grande, quando cantei a coisa pela primeira vez, vi gente chorando e mulher se benzendo. O dono do hotel mandou botar no jornal da Paraíba a cantiga que eu tinha feito. Um sujeito do Ceará mandou um recado. Queria que eu dissesse as coisas para ele passar no papel. O velho Batista da Paraíba fez umas loazinhas parecidas, igualzinhas aos versos que ele tirava para Antônio Silvino, e botou para vender nas feiras."

Essa narrativa, de José Lins do Rego, grande escritor da moderna literatura brasileira, é ficção das boas. Mas quem duvida que essas coisas aconteceram de verdade? Devem ter ocorrido diversas vezes, pois raça mais miserável e perversa que a de cangaceiros não existiu no sertão nordestino.