Bico de pena de Lauro Villares com retratos da época
Não querendo faltar com o respeito aos direitos autorais do Padre Maciel, mas solicitando todas as desculpas, transcrevo uma parte da vida e morte desse homem que passei a admirar, que foi José Ferreira e desta mulher que seguiu seu amado esposo, Dona Maria Lopes, em cuidados com seus filhos, e suportarem tantas injustiças, somente e grandiosamente, para proteção deles.Também fica registrado aqui nesse blog sem pretensão, a não ser no interesse em mostrar as perseguições sofridas por esta duas almas (que Deus as tenha), fatos acontecidos e testemunhados por pessoas que o autor entrevistou.
Quando li esses dois relatos escrito por esse autor, que pesquisou por 30 anos e somente por insistência de amigos, produziu essa preciosa obra, dividida em 6 livros, atinei em registar e incentivar os amigos a lerem essa obra.
Faço isso para aqueles que não tiveram a oportunidade que estou tendo em conhecer a história desde o princípio da saga guerreira de lampião e de seus irmão, Livino, Antônio e depois Ezequiel (quando se deu a morte da mãe e do pai, ele era menininho), que o acompanharam nessa aventura.
Fica também registrado o meu repúdio, aos perseguidores e destruidores de uma família humilde do sertão nordestino.
Vamos à história, pelas mesmas letras, do livro 'LAMPIÃO, SEU TEMPO E SEU REINADO' de Frederico Bezerra Maciel.
MORTE DE D. MARIA LOPES
21
de maio de 1920.
Ainda escuro, entre o primeiro e segundo canto dos galos,
reuniu José Ferreira a família e seus haveres — tão pouco: uma pequena trouxa
para cada um! — e partiu, de mudança pela terceira vez* — “os Proscritos!” Conduzia sua esposa enrolada em desgastado
cobertor, de algodão e montada no velho e serviçal Condave. Os seis filhos
atrás, olhos arregalados de pavor a que já estavam afeitos, pés no chão para
não acabar com as apragatas muito gastas e remendadas, tiritando de frio apesar
do exercício do caminhar.
No arrasto da vida e do destino escuros, quiném aquela
noite impenetrável, arrastava José Ferreira a família e a miséria. Seguia ele
na frente, trôpego, puxando o animal; na outra mão, levantada para alumiar o
caminho, o butirão aceso, feito de garrafa de meio litro, com gás e grossa
torcida de molambo fumacento.
Caminhava devagar como vagaroso era o seu maginar e raciocinar
diante da prepotência do destino nos enigmas das ditriminações divinas. Já
perto de chegar, voltou-se, consolador, para sua esposa e disse com resignação
e fé:
— "Maria, é
preciso aceitar a vontade de Deus!"
Ela, desde a chegada, continuava sempre amurrinhada. Não
se sabe se do cansaço da viagem, embora curta, ou porque sorrateiramente se
aproximava a sua hora derradeira. O certo é que, não fossem as tramas ocultas
dos perversos, atiçando perseguições e injustiças, não estaria ela assim
desacabando a saúde e a vida.
* A primeira mudança da fazenda Ingazeira (Vila- Bela)
para a fazenda Poço Negro (Floresta), a quatro léguas de distância; — a segunda,
do Poço do Negro para a fazenda Olho d'Agua de Fora (Água Branca, Alagoas),
vinte e duas léguas; — a terceira, de Olho d'Água dê Fora para a fazenda
Engenho (Mata Grande, Alagoas), quatro léguas; — total: trinta léguas ou sejam
cento e oitenta quilómetros! Perseguiram assim José Ferreira ponto por ponto
até matá-lo! Dal em diante a família Ferreira não teria mais descanso,
tornar-se-ia como Ahasvero, o judeu errante. A perseguição em cima, sem parar.
Que se perseguissem os três — Virgulino, Antônio e Livino — que se lançaram no
cangaço, compreende-se. Mas a familia que nada tinha a ver com isso?
Perseguição inominável! A familia vagueou por Águas Belas, Bom Conselho,
Juazeiro do Padre Cícero, Picos no Piauí E com Eurico de Sousa Leão caiu na
diáspora!
Não se adornava a natureza sua a uma vida assim acuada
por toda parte. Sentia-se desinfeliz, sem poder viver. Inda bem ali não chegara
e já as perseguições recomeçaram. Não tinha vindo para ali fugida delas? E
ei-las de novo! Sempre injustas, e agora grumitadas pela autoridade. Foi mesmo
muito pior ter vindo para Alagoas. O arreliado e vendido comissário de Matinha
de Água Branca, o famigerado Amarílio, querendo desarmar seus filhos dela para
desmoralizar, corregendo as casas e desassossegando as famílias, prendendo sem
motivo e torturando um inocente, botando emboscada, atacando à bala, doido para
ganhar mais dinheiro matando... Nessas aflições todas, teve durante o dia dois
passamentos. Botaram-lhe até vela na mão, maldando estivesse nas últimas e não
resistisse mais.
José Ferreira também agoniado, com as mãos apertando a
cabeça e sem encontrar canto para aquietar o juízo, exclamava: "Não! Não é
possível viver aqui! Não passo mais um dia nessa terra. Vou falar com o
delegado de Mata Grande, que é meu amigo, para poder ficar por lá". Diante
da melhora, súbita e surpreendente, da esposa, andando embora devagarinho e
pegada, comendo e conversando alegre — não sabia ninguém que era a "visita
da saúde" precedendo a morte! — resolveu José Ferreira, de madrugada,
selar dois burros e com seu filho João ir logo à Mata Grande trazer remédios e
falar com o delegado, seu amigo. Os três filhos mais velhos, tendo espalhado
antes que iriam ao brejo de Triunfo, na verdade continuavam ocultos no mato por
causa da policia.
Aproveitando a manhã, alegre e de esperança, daquele dia
22 de maio de 1920, conduziram as filhas a mãe para fora, no terreiro de frente
da casa, a modo de ela despairecer, tomar um arzinho e uns esquentes do sol
brando. Ficou ela sentada numa cadeira, distraindo-se feliz com Ezequiel e
Anália, os dois caçulinhas, a brincarem de pega no terreiro. Não demorou muito
tempo, deu-lhe nela inexplicável cansaço seguido de sonolência. As três filhas,
cada qual com um pote de barro na cabeça, tinham ido vexadas ver água na
cacimba. Naquele momento instante, voltando, notaram que sua mãe, de repente,
pendia a cabeça de lado e virava os olhos para cima, enquanto o queixo
afrouxava entreabrindo a boca.
Compreenderam
a evidência do desenlace...
Num sufragante, Virtuosa segurou a mãe pelas costas, levantando-a
um pouco para Angélica retirar a cadeira. Ali mesmo foi ela deitada, a cabeça
no colo de Virtuosa que se Sentara no chão. Posição essa mais favorável para
ajudar a doente a desafogar o peito e a respiração, fazendo passar a agonia.
Pela terceira vez — não sabendo que era a derradeira, Mocinha vigiou a vela
benta e lhe colocou acesa na mão.
Ezequiel e Anália agarraram-se ao regaço da mãe, chorando
e chamando:
— "Mamãe! Querida mamãe!"
Talvez para sua consolação, nesse instante derradeiro,
tenha ela ouvido dos lábios infantis de seus caçulas essa doce palavra que
traduzia inteiramente tudo o que ela fora na vida — mãe!
O semblante sereno, o olhar fugindo para a eternidade,
tendo diante de si a imagem do Senhor Crucificado apresentado por Angélica, que
a custo repetia entre soluços:
— "Meu Jesus, misericórdia”, entregou sua alma ao
Criador.
— "Sem o mínimo estremeço o modo de um
passarim!"
Mocinha apagou a vela. Soprava uma aragem macia e
refrescante aliviando aquelas almas transidas de dor... Uma poeira de luz
emoldurava aquele quadro de tragédia em terra estranha e de exílio... Lá para o
meio-dia chegaram José Ferreira e João, simultaneamente com os três chamados de
seus esconderijos. Encontraram a morta deitada numa cama de vento, amortalhada,
com os lábios sorrindo para a morte, de vez que há muito deixara de sorrir para
a vida!... Na dor e na lágrima lamentaram todos a desdita. Os três filhos
perseguidos, às pressas colheram cravos amarelos e bugaris, enfeitaram o leito
da mãe defunta e se esconderam de novo. Não podiam ficar velando.
Somente à noite, assim mesmo cismados e precavidos,
voltariam para o velório. A família e vizinhos entre lágrimas e soluços de
todos, inteiraram a noite fazendo a sentinela com os cânticos lúgubres das
incelenças e o ofício das almas.
No dia seguinte domingo, pela manhã, conduzida numa rede
pelos filhos, que se revezavam, foi feito o enterro, estrada a fora rezando, e
sepultada numa cova do cemitério do povoado de Santa Cruz do Deserto*, após lhe
terem o esposo e filhos beijado o rosto frio. Três coroas, lembranças do
esposo, dos filhos e dos parentes, além de muitos buquês levados pelos
acompanhantes, floriam a sepultura, que mais parecia um canteiro de festa, e de
vida.**
* Povoado de Santa Cruz do Deserto no município de Mata
Grande (cfr. cap. 24).
** Enviado, cor urgência, de Engenho para Vila Bela, um
pombeiro, a fim de avisar aos Ferreiras das ribeiras do Pajeú e do São Domingos
esta morte. Dona Mariquinha Ferreira, filha do Cândido Ferreira e prima de
Virgulino, ao receber a dolorosa notícia — e ela bem se recorda que ainda na
penúltima semana de maio de 1920 — exclamou, os olhos rasos de lágrimas: —
"Tá! Maria Lopes morreu..." E ela mesma afirma que José Ferreira foi
morto trinta e oito dias depois.
MORTE
DE JOSÉ FERREIRA (29 de junho de 1920)
Penúria...
O pobre do José Ferreira, com tanta coisa amarga e
trágica sem trégua se sucedendo, ficou desatinado, abatido, sem gosto pra nada
na vida, curtindo os penares da dor e da saudade e os sobressaltos de uma
desgraça ameaçadora e iminente. Chamou os três filhos que continuavam ocultos,
e lhes disse: — "Vocês aqui não podem mais ficar. Vão para Pernambuco que
depois eu tomo o mesmo caminho". Não podia, de súbito, se afastar de perto
da sepultura da finada esposa. Seguiram os três filhos para Espírito Santo do
Moxotó, onde ficaram; trabalhando na propriedade de seu Terto. José Ferreira
vendeu os dois burros para comprar roupa de luto para todos de casa.
A
diligência do diabo...
Cartas do delegado de Água Branca — comprado por Zé
Saturnino — ao Chefe de Polícia de Alagoas, carregando em cores os assucedidos
mais recentes: a revolta dos Porcinos; a invasão de "perigosos
bandidos" vindos de Pernambuco, onde cometeram "muitos crimes";
o caso do soldado Jagunço em Mata Grande; a desfeita à polícia em Água Branca
quando ela, "com bons modos", procurou desarmar aqueles
"criminosos bandidos", os quais ao depois desfeitearam o comissário
de Paricônia;. um "bandido, ainda jovem, comprando armas"; "a
ameaça e o terror ganhando as populações"... Alarmado diante de tudo isso,
resolveu o Governo cortar pela raiz todos esses males. Para tal, determinou ao
delegado de Viçosa, 2° Tenente José Lucena, famoso por excessos de severidade,
fazer uma diligência por aquelas bandas conflitadas. Ao chegar em Água Branca,
foi Lucena inteirado de tudo o que ocorrera. Inclusive por carta de Zé
Saturnino tivera conhecimento do nome dos "três perigosos bandidos e criminosos":
os irmãos Virgulino, Antônio e Livino, além de Antônio Matilde, que, armados,
haviam descido do Navio para aquele município alagoano. De primeiro, dirigiu-se
Lucena à fazenda Chupete, para perguntar ao Capitão Sinhô pelos irmãos
Ferreiras. — "Despachei eles para o Coronel José Abílio, de Bom Conselho;
não costumo ter bandido comigo" — descartou-se o capitão. Carecia não se
inocentar. Lucena não ofendia coronel e protegido da política de cima. Mas
somente cabra solto, isolado ou de grupo. Seguiu, então, Lucena, na pista
deles, em direção de Santa Cruz do Deserto.*
* Da fazenda Chupete seguiu Lucena no sucaro dos
Ferreiras guiado por Zé Batista Quirino e outros mais da mesma família. Zé
Batista sabia exatamente paro onde se havia mudado o velho José Ferreira.
Tinham os Quirinos transações com os Ferreiras em razão do carguejamento de
mercadorias. A aproximação dos Ferreiras com os Marcos, inimigos dos Quirinos,
levou estes à denúncia de traição. Além de seus soldados, compunham a tropa de
Lucena alguns cachimbos, juntamente com Amarílio e os Quirinos.
O
assassínio...
Na casa de José Ferreira, só tristeza. Tinha ele ido ao
cemitério e não compreendia por que desta vez chorara muito mais do que das
outras. Revelara aos filhos o que dissera à falecida, já na cova enterrada, que
não havia mais sentido para ele continuar a viver. Queria ir pra de junto dela.
Repassou, de minúcia e fagueiro, os bons tempos de antanho, de paz e ternura.
Recordou particularmente a última festa; do Senhor São João, há dois anos
atrás, em que a finada, tão bonita e saudável, tão vistosa e alegre, dançara
com ele... Hoje, era ele mais morto do que ela morta! No dia seguinte, 29 de
junho, terça-feira, precisamente 38 dias depois da morte de D. Maria Lopes, de
manhãzinha, o tempo chuviscoso, ele com mais João e as três meninas fora
adjutorar, como alugados, os trabalhos de um roçado vizinho, a modo de trazer
para casa alguma coisa de ganho para o de-comer carecente. Voltara logo para
casa José Ferreira, cansado e escanchado em Condave, trazendo dependurados, de
cada lado das ancas do velho burro, dois sacos contendo quatro mãos de milho
plantado em São José e colhido agora para o São João.*
* A mão de milho em Alagoas: 25 espigas não debulhadas;
em Pernambuco: 50.
Ao chegar no terreiro de frente da casa, bem perto do
lugar em que a esposa falecera, apeiou-se. Correram pressurosos e choramingando
de fome os dois menores e lhe tomaram a bênção. Abraçou-os o pai, afetuosa e
longamente, acarinhando e beijando. Em seguida tirou os sacos e derramou as espigas
num balaio. De cócoras, apanhava as espigas, tirava a palha, que avoava para
Condave comer. Debulhava o milho numa gamela para depois fazer xerém no pilão,
facilitando assim o trabalho das meninas que, ao regressarem, era só preparar o
angu. O qual dessa vez não seria comido puro. Tinha ele comprado um bom taco de
carne de bode e um litro de farinha. O "café" (almoço) seria
sustancioso.
Estava José Ferreira dessa maneira entretido quando,
escornetando a concha da mão na orelha, ouviu um tropel. Com mais, estava sua
casa cercada de soldados. A uma distância de três braças gritou Lucena para o
velho José Ferreira: — "Cadê os seus três filhos bandidos?" Ferido em
seus brios e honra, José Ferreira retrucou, com todo o desassombro e altivez,
alto, firme e pausadamente: — "Não, sinhô! Bandidos, não! Meus filhos não
são bandidos. Querem forçar eles a ser. Mas eles são é home!..." — "É
assim que responde a um oficial, velho malcriado, cachorro da mulesta"
revidou furioso Lucena.
E, sem mais, descarregou ele próprio a pistola no peito
daquele pobre velho, pacifico e indefeso, que caiu, por estranha coincidência,
ali, no mesmo chão onde falecera sua esposa. Na queda, de chofre e de bruços,
por cima do balaio, o corpo esparramado, o braço direito estirado segurando na
mão um cabucé, torceu o rosto de lado e balbuciou:
— "Coma... coma..."
Pareceu, nessa única palavra, que a derradeira
preocupaçao de seu coração paterno era desafaimar 'as crianças. Elas, as
crianças, apavoradas, dispararam, aos berros, por dentro do mato. Um soldado
para agradar ao comandante deu na direção delas um tiro de fazer medo,
provocando gargalhadas nos seus companheiros de selvageria. Lucena vasculhou a
casa de Zé. Ferreira, encontrando de arma apenas um quicé!
Ao retirar-se notou dois homens ,vindo, desconfiados e
irriquietos, na sua direção. Sem saber nem perguntar quem eram, ordenou uma
descarga de fuzil, matando um e ferindo o outro, que correu. Uma senhora e u'a
moça que vinham a certa distância ficaram levemente feridas. Não era ele o
senhor absoluto da vida e da morte?!
Os dois eram o velho Fragoso e seu irmão Zequinha.
Aquele, viúvo e dono da fazenda Engenho, onde, por caridade, cedera uma humilde
casa de morador para José Ferreira ficar até que resolvesse seu destino. A
senhora era a dona da casa e a moça sua filha. Atentando nos disparos, tinham
ido ver, desarmados, o que acontecia, sendo seguidos pelas duas mulheres.*
* É absolutamente autêntica, _ com todos os seus
pormenores, a descrição. 'assassínio doi. pobre; manso e indefeso velho José
Ferreira., assim como das outras circunstâncias. Em vez de debulhando milho,
alguém fantasiou José Ferreira tirando leite de uma vaca ...
Vezo da polícia, para justificar seus crimes: alegar que
houve "resistência". Assim fez Lucena: O cúmulo do grotesco: o
alquebrado velho José Ferreira enfrentando sozinho uma formidável volante e
"tiroteiando" com uma quicé, isto é, com um toco do facas Quando João
Ferreira, filho da vítima, em entrevista, usou a palavra "tiroteio",
entendeu dizer que houve tiros de um lado, o da volante.
Quase profético o Padre Epifânio Moura, vigário de Água
Branca: — "Esse crime vai trazer muita desgraça para o sertão". O
povo: — "Mataram dois cidadãos de bem só pru gosto de matar!" —
"É do esperar que não fique nisso, não". E, de fato, o povo não se
enganou. Tão revoltante crime lançou Virgulino e seus irmãos no cangaço. Criou
Lampião! A situação piorou. Diante do ressurgimento do cangaceirismo, agora em
forma diferente, recrudescido e desafiador. Chamou o Governador alagoano aquele
homem de sua confiança, o único, a seu ver, que enfeixando poderes absolutos e
indiscriminados, poderia liquidar, de um golpe, todo aquele mal, muito embora
enegrecendo o seu nome e o da História. Este homem: — Segundo Tenente José
Lucena de Albuquerque Maranhão. Esteve confabulando no Palácio do Governo, em
Maceió, no dia 4 maio de 1921. Depois destituído da delegacia policial de
Viçosa, iria com carta branca, acabar com o banditismo em todo o estado. E
assim e vexado com uma poderosa volante de vinte e quatro homens, deixaria no
dia 10 de maio, a cidade de Palmeira dos Índios “na direção do sertão.” A ação
repressiva de Lucena chegou a ser "desumana", conforme ele próprio
reconheceu. (Cfr. Adendo ao capítulo 45.)
A
desolação da abominação! *
Alarmados pelos tiros, João Ferreira e as três irmãs
abalaram para casa.
No maior desespero reviraram o cadáver, fecharam-lhe os
olhos e o conduziram para dentro de casa. — "Mas, cadê Ezequiel e
Anália?" — "Onde estavam escondidos?" — "Ou será que foram
roubados?" — perguntavam-se angustiados uns aos outros, noutro desespero
somado. . Feito loucos, saíram João e Angélica às procura deles, chamando-os
repetidamente com toda a força dos gritos. Encontraram, enfim, os coitadinhos,
com bem cem braças, num estado horrível, assombrados e atordoados, rasgados dos
espinhos e tocos de pau, sujos de terra, quase sem mais falar de tão roucos,
caídos no chão, semimortos de fome e pavor! Tragédia de rara concepção ou de
difícil visualização nesse quadro desumano de miséria e barbaridade! —
"Pareciam (as crianças) dois filhotes de ema perdidos no mato, piando de
fome!..." Atirados os irmãos aos ombros, retornaram às pressas. No
entanto, o grave da situação era que ninguém cia vizinhança, com medo de
Lucena, queria se aproximar, para amortalhar e sepultar as vítimas. João
Ferreira mandou comunicar o triste acontecido ao delegado de Mata Grande,
Maurício de Barros** que atendeu prontamente e pessoalmente veio ao local,
providenciando, por sua conta e risco, o enterro, mas de um modo tão
atabalhoado, dadas as circunstâncias de terror, que João Ferreira nem viu
quando os corpos, altas horas da noite, candeeiro aceso na frente, foram
levados! - "José Ferreira também era filho de Deus e não bicho para os
urubus..." — dissera Maurício, essa destemida autoridade e mais tarde
integrante da polícia pernambucana. Sem que, ninguém da família assistisse,
José Ferreira foi sepultado numa cova do cemitério de Mata Grande, na manhãzinha
do dia 30 de junho de 1920, a última quinta-feira do mês.***
Unidos à mesma gleba do Pajeú, que os viu nascer, unidos
numa vida de vinte e seis anos de amor conjugal; unidos ao mesmo chão do Moxotó
em que expiraram o último alento, deveriam seguir o mesmo destino de continuar
diante de Deus.
* Naquela época, culto sacerdote-vigário, corajosamente
vergastou do púlpito e censurou severamente, condenando esses abomináveis
fatos, tomando por tema de confronto as Sagradas Escrituras no famoso texto,
cap. 9, v. 27, do profeta Daniel": — "O maldito Coronelismo,
simbolizado no deus pagão-político, prepotente, cruel e desumano foi erigido
sobre o altar da Justiça — divina por natureza — sob à qual procuravam se
abrigar os humildes e ofendidos, os pobres e fracos, cuja vida é um perpétuo
holocausto de seus direitos sagrados! Profanação, na linguagem bíblica chamada
de "abominação da desolação" ou desoladora e horrorosa
abominação".
**. Maurício Vieira de Barros. Lampião, a 29 de novembro de
1930, o prendeu juntamente com um soldado, nas Negras (Aguas Belas), quando
ainda estavam deitados e dormindo. Levou-os presos até Pau Ferro (hoje Itaíba)
município de Águas Belas. A porta da casa de Maurício, disse Lampião: —
"Vou matar o soldado. Você não, porque lhe devo um grande favor: enterrou
meu pai! Lhe poupando a vida, paguei a dívida. Se continuar a me perseguir e eu
lhe pegar você não tem jeito, não. Morre, visse?!" Apesar das súplicas de
Maurício, Lampião matou ali mesmo o soldado e soltou o prisioneiro. Maurício
havia verificado praça na Polícia Militar de Pernambuco, chegando a ser
sargento. Foi comandante de volante. Era perverso, cometendo muitos crimes.
Etelvino Lins, Interventor do Estado, expulsou-o da polícia. Chamava a atenção seu
bigodão, Ainda vive com seus noventa anos.
*** Defronte da igreja de Santa Cruz do Deserto visitou o
autor deste livro um velho, em sua casa, o qual ajudou no enterro e, sem
registro de óbito, no sepultamento de José Ferreira em Mata Grande, território
da jurisdição policial do delegado Maurício Vieira de Barros. O nome do velho,
o autor não guardou, mas tem como testemunhas o Dr. Tarcísio de Freitas então
engenheiro chefe do DNOCS, emt Palmeira dos Índios.