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quarta-feira, 6 de julho de 2016

Cangaceiros e Fanáticos - Gênese e Lutas - Parte I


Rui  Facó

Parte I

DESPERTAR DOS POBRES DO CAMPO

1 — Males do monopólio da terra
2 — A emigração em massa
3 — Os cangaceiros 
4 — Os "fanáticos" 
5 — O "fanatismo", elemento de luta 
6 — Distinção necessária 


Males do Monopólio da Terra

Uma série de crises de ordem econômica, ideológica, de autoridade — expressas em rebeliões
espalhadas em vastas áreas do interior do Brasil, abrangendo muitos milhares de habitantes do campo, é a característica principal do período de transição que compreende o último quartel do século XIX e o primeiro deste século em nosso País.

Que foram Canudos, Juazeiro, o Contestado, Caldeirão, Pau de Colher, Pedra Bonita, que precedeu a todos, com traços mais ou menos idênticos, ao lado do cangaceirismo, que se prolongou até os fins da década de 30? Para a nossa história têm sido encarados como fenômenos extra-históricos. 

Banditismo", "fanatismo" são expressões que os resumem, eliminando-os dos acontecimentos que fazem parte de nossa evolução nacional, de nossa integração como Nação, de nosso lento e deformado desenvolvimento econômico.

Mas, seriam simples criminosos esses milhares, dezenas de milhares de pobres do campo que se rebelavam nos sertões, durante um tão largo período de nossa história? Seriam apenas os "retardatários" da civilização, como os qualificava Euclides da Cunha?

Evidentemente, não. Constituiriam, se assim fosse, uma percentagem de criminosos de todo anormal, desconhecida em qualquer país, em qualquer época histórica. Eram muito mais frutos do nosso atraso econômico do que eles próprios retardatários. 

Hoje, compreendemos e sentimos que eles eram uma componente natural do nosso processo evolutivo, a denúncia do nosso próprio retardamento nacional, o protesto contra uma ordem de coisas ultrapassadas e que deveria desaparecer.

Tiveram, esses inúmeros surtos de "fanatismo" e de cangaceirismo, as suas causas internas e externas. As condições internas que os geraram vamos encontrá-las, precisamente e antes de tudo, no monopólio da terra, cujas origens remontam aos tem ­ pos coloniais, com a divisão do Brasil em capitanias hereditá­ rias e a subseqüente concessão das sesmarias, as quais deram origem aos latifúndios atuais. Estes constituem, de há muito, ao lado do domínio imperialista em ramos básicos da economia do País, um dos dois grandes obstáculos ao nosso pleno desenvolvimento econômico, social, político e cultural. 

O monopólio da terra, abrigando em seu seio uma economia monocultora voltada essencialmente para a exportação de alguns produtos, entravou brutalmente o crescimento das forças produtivas. Por mais de três séculos, baseou-se no regime do trabalho escravo, que se levantou como uma barreira à propaga­ ção do trabalho livre. Do trabalho escravo ainda hoje restam marcas evidentes em nossas relações de produção' no campo. É o trabalho semi-servil em vastas áreas do interior, particularmente no Nordeste.

O monopólio da terra e o trabalho escravo impediram, por sua vez, ou dificultaram muitíssimo o advento da tecnologia moderna. Só nos últimos vinte anos vêm-se efetuando mudan­ ças, com a mecanização da agricultura em escala razoável, mas ainda assim acompanhando a linha defeituosa do desenvolvimento desequilibrado de nossa economia: um Sul capitalista e um Norte mergulhado no atraso semifeudal.

Foi ainda o monopólio da terra que nos reduziu ao mais lamentável atraso cultural, com o isolamento, ou melhor, o encarceramento em massa das populações rurais na nossa hinterlândia, e que chamamos Sertão, estagnada por quatro séculos. Analfabetismo quase generalizado. Ignorância completa do mundo exterior, mesmo o exterior ao sertão, ainda que nos limites do Brasil. A única forma de consciência do mundo, da natureza, da sociedade, da vida, que possuíam as populações interioranas, era dada pela religião ou por seitas nascidas nas próprias comunidades rurais, variantes do catolicismo. 

No Nordeste, a situação agravou-se quando, na segunda metade do século XIX, o centro da gravidade econômica se foi transferindo gradativamente para o Sul, mais desenvolvido do ponto de vista capitalista. O Nordeste, com seus arraigados remanescentes feudais e acentuada debilidade técnica, foi perdendo terreno em todos os domínios. A valorização do café atraía para o Sul a mão-de-obra disponível no Nordeste, tanto de escravos como de trabalhadores livres. Enquanto isso, era o Sul que recebia a totalidade dos imigrantes europeus que, nos fins do século, vieram modificar a fisionomia econômica e social da fazenda paulista. 

A evolução do Nordeste, nessa época, caracterizava-se por sua extrema lentidão, própria de uma sociedade em estágio econômico seminatural, com uma divisão de classes sumária: o senhor de grandes extensões de terras e o homem sem terra, o semi-servo. A população da zona nordestina além da faixa litorânea não recebia sequer a influência bené­ fica das frágeis conquistas de tipo burguês que se operavam nas zonas marítimas urbanas. No Nordeste, a vida das cidades processava-se em ritmo tão lento (até 1930) que elas não exerciam atração sobre as populações despossuídas do interior a não ser em proporções mínimas. As levas de nordestinos sertanejos — flagelados — que nas épocas das longas estiagens, as secas, deixam o sertão, transitam rapidamente por essas cidades, que são para elas apenas um porto de em barque. Quando não conseguem passagem para a Amazônia ou para os cafezais de São Paulo, abrigam-se precariamente nos arrabaldes urbanos, e aí são pasto da fome e de toda sorte de doenças dela resultantes. Não há indústrias que possam absorver sequer uma parte insignificante dessa mão-de-obra expulsa pelo latifúndio em seus estertores acrescidos pela seca. As mesmas débeis indústrias alimentares ou têxteis têm sua situação agravada pelo fator climático, e em vez de admitir operários, despedem-nos.

Vemos então coexistirem, lado a lado, numa vizinhança incômoda, por longos períodos, os latifundiários semifeudais e a burguesia comercial e industrial, tão frágeis, ambos, que não têm outro recurso senão tolerar-se mutuamente. A burguesia sofre todas as limitações impostas pelo latifúndio semi-feudal, sem poder destruí-lo, sem poder mesmo diminuir sua influência. Esta situação resulta do enorme atraso das forças produtivas, e estas, por sua vez, encontram naquela imobilidade um freio ao seu desenvolvimento. Sabendo-se que o grau de desenvolvimento das forças produtivas determina a rapidez ou lentidão das transformações econômicas e do progresso social, aquela inércia dá a medida dessas transformações e desse progresso.

Além de tudo, uma séria crise de estrutura minava a economia agrária nacional. O regime escravista dera o que tinha de dar e vivia seus últimos alentos. "No período de 1879 a 1888 eram gerais e os protestos das classes produtoras [patronais] que clamavam contra as oscilações violentas nos pre­ ços do café, da borracha e algodão, a falta de elasticidade do meio circulante e as deficiências da organização do crédito. Mal-estar esse agravado com a promulgação da lei de 13 de Maio, pela forma como foi feita: ausência de indenização aos proprietários de escravos, falta de previdência quanto à desorganização completa do trabalho agrícola que a lei viria ocasionar e que de fato ocasionou, pois que não foi colhida metade das safras de 1888." (Roberto Simonsen, As crises no Brasil, São Paulo, s/d., págs. 35-36)

Não seria, naturalmente, a indenização pelos escravos libertos em cada fazenda que iria salvar a situação. A crise era de estrutura, crise de um sistema econômico que atingira a fase máxima de sua decadência, sem que na maior parte do País tivessem surgido, em larga escala, relações de produção de tipo superior, à base do trabalho livre. Não era só a crise do ins­tituto escravista, era também a crise do latifúndio pré-capitalista. Os trabalhadores livres importados da Europa em escala considerável, no decênio anterior, e que, depois da Abolição, entram numa média de mais de 100 mil por ano, até o fim do século, concentram-se quase exclusivamente em São Paulo, onde não se fazem sentir os tão alardeados efeitos calamitosos da lei de 13 de maio. Ao contrário, São Paulo, com o trabalho livre em suas fazendas, veria sua produção crescer, enquanto se arruinava a do Estado do Rio e sobretudo a do Nordeste. "No último decênio do Império o débito médio que pesava sobre os engenhos e algodoais do Norte era de 60%, pelo menos, do valor das terras, maquinismos e escravos, e que no Sul, das 773 fazendas de café, 726 estavam hipotecadas." (2 Oliveira Lima, O império brasileiro, 2.a' ed., S. Paulo, s/d., pág. 465) Estas cifras dão bem uma idéia da situação de decadência que atingira a economia agrícola do Brasil, a qual, na prá­ tica, já não pertencia aos que a exploravam.

A parcela da economia nordestina que conseguiu sobreviver ao maremoto da Abolição foi a agro-indústria do açúcar. Renovara-se tecnicamente na década que precedeu a extinção do regime servil. De 1875 a 1885 instalam-se umas cinqüenta usinas de açúcar, modernamente equipadas. Mas, por trás destas cifras há todo um drama. Elas expressam uma fase de arruinamento de um setor da agricultura brasileira que, desde os inícios da colonização, fora o sustentáculo de toda uma classe parasitária, cujo esplendor atingira o grau "máximo no Segundo Reinado. Era a classe dos senhores de engenho. Sem se renovar durante quatro séculos, não podia mais sustentar a concorrência da produção estrangeira no mercado internacional. A queda dessa classe coincidia com a queda do próprio Império e a Abolição da Escravatura, pois, era uma classe, por excelência, de escravagistas. Iria substituí-la uma nova classe, a dos usineiros. Com a ajuda dos capitais ingleses, criam-se, a partir da década de 70, as grandes fábricas de açúcar, as usinas. A nova classe que surge com elas é ao mesmo tempo de latifundiários e capitalistas. Mas os usineiros não empreendem nenhuma revolução na zona canavieira. Implantam a nova estrutura mecânica para a elaboração do açúcar, mas aproveitam ao máximo o arcabouço do velho latifúndio do antigo engenho. Coexistem por algum tempo, antes da emancipação dos escravos, os trabalhadores escravos, geralmente no eito, e os trabalhadores livres em geral na usina. Quando chega a Abolição, a mudança não é grande: todos são semi-servos do usineiro.

A classe dos senhores de engenho passa a plano secundário; sobrevive ainda, mas à sombra da usina, em situação agônica, que duraria muitos decênios. Como em outros m omentos da história econômico-social, vemos aí o lento perecer de uma ordem de coisas que só se enterra depois de podre. As forças revolucionárias que a sua degradação gerava tinham sido de tal forma dispersas pelo latifúndio monocultor que se haviam quase anulado como forças sociais atuantes. A imobilidade relativa da economia regional, com a conseqüente imobilidade social, permitia a sobrevivência dos antigos senhores de engenho como fornecedores de cana às usinas.

Notável particularidade do advento das usinas no fim do século XIX é o gigantismo do latifúndio canavieiro. Sua fome de terras não encontra limites. Compra os velhos engenhos bangüês e os aposenta. O que lhe interessa é a terra. E a usina vai estendendo ilimitadamente seus domínios. Intensifica-se assim o processo de monopolização das terras, que na região nordestina se concentram cada vez mais nas mãos de uma minoria. Segundo dados estatísticos da dé­ cada de 40 deste século, somente as 20 principais usinas de Pernambuco possuíam terras numa área superior a 270 mil hectares (Gileno De Carli, O processo histórico da usina em Pernambuco, Rio, 1942, págs. 57-58.). Era um fenômeno antigo. Um colaborador do Diá­ rio de Pernambuco, já nos meados do século XIX, acentuava que "a agricultura está cercada por uma barreira inacessível para o homem pouco favorecido... E qual esta barreira? A grande propriedade territorial. Esta entidade terrível que tem arruinado e despovoado [. . . ] esta região que se estende sobre todo o litoral da nossa província até uma profundeza de dez, doze, e às vezes quinze e dezoito léguas para o interior, se acha dividida em engenhos até duas, três, e até quatro e cinco léguas quadradas [. . .] Os proprietários se recusam a vender estes terrenos e até a arrendá-los!" E ainda: "Como é que se exige que esses infelizes [os agregados, gente pobre, foreiros] plantem se eles não têm certeza de colha? Que in ­ centivo existe que os induza a beneficiar um terreno, do qual podem ser despojados de um instante para outro? Nas terras dos grandes proprietários, eles não gozam de direito algum político, porque não têm opinião livre; para eles o grande proprietário é a polícia, os tribunais, a administração, numa palavra, tudo; e afora o direito e a possibilidade de os deixarem, a sorte desses infelizes em nada difere da dos servos da Idade Média" ( Cit. por Gilberto Freyre, Nordeste,."Rio, 1937, págs. 248-249)

A situação dos pobres do campo no fim do século e mesmo em pleno século XX não se diferenciava daquela de 1856. Era mais do que natural, era legítimo, que esses homens sem terra, sem bens, sem direitos, sem garantias, buscassem uma "saída" nos grupos de cangaceiros, nas seitas dos "fanáticos", em torno dos beatos e conselheiros, sonhando a conquista de uma vida melhor. E muitas vezes lutando por ela a seu modo, de armas nas mãos. Eram eles o fruto da decadência de um sistema econômico-social que procurava sobreviver a si mesmo. Os passageiros surtos econômicos neste ou naquele ramo da agricultura serviam para evitar uma explosão de todo o sistema. É o caso, por exemplo, do florescimento da borracha na Amazônia, entre as duas últimas décadas do século XIX e a primeira deste século. Depois, é o fragoroso baque, com profúndas repercussões sobre o Nordeste — sem falar no Norte — e sobre a corrente migratória de seus "excedentes" demográficos.

Este esboço de quadro seria incompleto se não levasse em conta, entre as causas externas da ebulição no Nordeste, no período em foco, o surto de criação de indústrias leve e de alimentação e a construção ferroviária que se verificam nos anos que antecedem imediatamente a emancipação dos escravos e o advento da República, bem como sua repercussão no domínio da ideologia. Mesmo com toda a diversidade de formações econômicas que começavam a chocar-se no País, 

havia entre elas uma certa acomodação. O Nordeste não vivia uma vida estanque. Sobretudo a partir das primeiras vias férreas e da navegação de cabotagem, a unidade nacional se acentua. O crescimento econômico favoreceu-o. Somente no lustro que precede a Proclamação da República, fundam-se cerca de 250 estabelecimentos desse gênero, ocupando aproximadamente, 55 mil operários.

Essas cifras, que hoje parecem insignificantes, devem ser encaixadas num Brasil atrasado em todos os aspectos, cujas classes dominantes se vangloriavam de ele ser "um país essencialmente agrícola", ou se conformavam com isto, e cuja população, num imenso território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, totalizava 14 milhões de almas. Apenas uma parcela insignificante vivia nas cidades, menos de 20 por cento.

Semelhante incremento das iniciativas industriais, ferroviárias, bancárias tinha o efeito de uma sacudidela, um poderoso estímulo em toda a economia nacional. Acordava for­ çosamente o interior do Brasil, por mais entorpecido que ele estivesse sob o guante do latifúndio semifeudal. Era o capitalismo que tentava mais uma vez impor sua presença na economia e na sociedade brasileira, o primeiro grande impulso que se verificava desde as malogradas tentativas encabeçadas por Mauá nos meados do século XIX. A burguesia procurava tomar iniciativa no domínio econômico, não obstante o enorme obstáculo que se levantava diante dela: a grande propriedade territorial pré-capitalista resistindo a qualquer mudança, porque voltada unicamente para o mercado externo. É verdade que grande parte dessa burguesia industrial nasce umbilicalmente ligada ao latifúndio semifeudal. Mas, até mesmo por instinto de classe, ela reconhecia que, sem se operarem m odificações na estrutura agrária, nem que fosse contornando-a ou adaptando-a às novas condições, a industrialização estaria condenada ao malogro, seus objetivos limitados, seu campo de ação reduzido.

Terá sido talvez o reconhecimento, ainda que instintivo, desse processo inevitável, que levou alguns dos mais eminentes ideólogos de nossa burguesia de então a suscitarem, de maneira ampla e vigorosa, a questão da necessidade de transformar a estrutura agrária do País.  

Uma sociedade burguesa em crescimento enfrenta forçosamente o problema da terra se ele não está adaptado a seus interesses. E o problema da terra na sociedade burguesa busca como solução o desenvolvimento do capitalismo no campo: Certamente por isso uma parcela da intelectualidade brasileira dos fins do século passado adotou uma posição que se pode considerar radical para a época em relação ao problema da terra. 

Em 1883, no apogeu da campanha abolicionista, Joaquim Nabuco denunciava os privilégios, que considerava inadmissíveis, reclamados pelos grandes fazendeiros: "A chamada grande propriedade — dizia ele — exige fretes de estradas de ferro à sua conveniência, exposições oficiais de café, dispensa de todo e qualquer imposto direto, imigração asiática, e uma lei de locação de serviços que faça do colono, alemão, ou inglês, ou italiano, um escravo branco. Mesmo a população nacional tem que ser sujeita a um novo recrutamento agrícola" (O abolicionismo, S. Paulo, 1938, 182-83).

Era um libelo contra o latifúndio semifeudal. É ainda esse ardente defensor da liberdade do escravo quem cita valioso documento sobre a situação da lavoura na Bahia em fins do século XIX, o parecer de uma comissão nomeada pelo Governo para estudá-la. Dizia a comissão em seu relatório: "O antigo e vicioso sistema de sesmarias e do direito de posse produziu o fenômeno de achar-se ocupado quase todo o solo por uma população relativamente insignificante, que não o cultiva nem consente que seja cultivado, enquanto a população 'livre' que trabalha na terra por favor, dos donos da terra vive em estado de contínua dependência" (Idem, págs. 147-48.). 

Já nos últimos alentos do Império, logo após o ato de emancipação dos escravos, André Rebouças dizia pessoalmente ao Imperador ser "a abolição do latifúndio completamente indispensável à abolição do escravo" (Diário e notas autobiográficas, Rio, 1938, pág. 330. ). Na mesma época, em artigo no jornal Cidade do Rio de Janeiro, fala Rebou­ças a respeito da "elevação do negro pela propriedade territo­rial, único meio de impedir sua reescravização" ( Ibidem.). Suas cartas do exílio estão repletas de referências condenatórias ao monopólio da terra, aos monopolizadores da terra, aos landlords, afirmando (em 1893) sua determinação de "trabalhar em alguma idéia de Progresso e de Liberdade, de combate aos monopolizadores da terra" ( Ibidem, pág. 406. ).

Pode-se argüir, talvez, que Joaquim Nabuco e André Rebouças seriam vozes isoladas em relação à mudança da estrutura agrária do País para completar-se a obra da abolição do trabalho servil. Mas, não. Havia toda uma corrente de pensamento favorável a uma reviravolta nas relações de produção no campo. Essa corrente começara a expor seus pontos de vista ainda nos meados do século XIX, certamente impulsionada pelas audazes iniciativas industriais de Mauá. 

Na década de 60 do século passado, sem adotar uma posição extremada, Tavares Bastos sugere medidas em favor da pequena propriedade, achando mesmo que "há casos em que mais convenha ao Estado ceder gratuitamente a terra para quem se proponha a cultivá-la" ( Memória sobre a emigração (1867), Rio.). Em todos os seus trabalhos está sempre presente, embora da maneira mais cautelosa, a questão agrária. Mas o simples fato de, já naquela época, debater o problema, indica que ela inquietava uma parcela das classes possuidoras. Tavares Bastos apontava o exemplo de países capitalistas mais adiantados, que deveríamos seguir: Estados Unidos, Inglaterra e França. E o assunto continuaria na ordem do dia. 

Na década de 70, antes, portanto, da grande expansão territorial das usinas de açúcar, o presidente da província de Pernambuco, Domingos Velho Cavalcanti de Albuquerque, constatava o quanto era nefasto o domínio do latifúndio e algumas de suas conseqüências sociais. Dizia ele: "Realmente, há uma parte de nossa população profundamente desmoralizada, perdida até: mas resta uma grande massa de onde podem sair bra­ ços úteis. Que garantia, porém, acha esta para seus direitos, que segurança para os serviços que presta, que incentivo para preservar nas boas práticas? A constituição de nossa propriedade territorial, enfeudando vastas fazendas nas mãos dos privilegiados da fortuna, só por exceção permite ao pobre a posse e domínio de alguns palmos de terra. Em regra ele é rendeiro, agregado, camarada ou que quer que seja; e então sua sorte é quase a do antigo servo da gleba" (Paulo Cavalcanti, Eça de Queirós, agitador no Brasil, São Paulo, 1959, págs. 50-51.).

E já Rebouças apoiava-se em predecessores seus para reforçar a tese em favor da mudança da estrutura agrária, da liquidação do monopólio da terra. Em carta a Joaquim Nabuco, de março de 1897, cita palavras do senador Nabuco de Araújo que constituem uma condenação categórica do latifúndio: "A nossa propriedade — dizia Nabuco de Araújo — está tão concentrada, tão mal dividida, tão mal distribuída, que neste vasto império, afora os sertões e os lugares incomunicáveis, não há terras para serem cultivadas pelos brasileiros e estrangeiros, que não têm outra esperança senão nas subdivisões tardias que a morte e as sucessões podem operar." Comentava Rebouças: "Na verdade, são estas palavras admiráveis síntese que resume todos os males produzidos pelo monopólio territorial no Brasil. Quanta satisfação em reconhecer que exímios estadistas do Império precederam-nos na campanha contra o latifúndio e na propaganda para a subdivisão da terra, para a pequena propriedade e a Democracia Rural" (André Rebouças, Diário, pág. 442. ).

Na mesma carta, em pós-escrito, refere-se André Rebou­ ças amargurado, a "essa bárbara insurreição de fanáticos do sertão da Bahia", sem perceber, longe, na Europa, que Canudos se originava precisamente dos males do monopólio da terra, do regime latifundiário que ele condenava com tanta veemência... 

Também no fim do século XIX e nos últimos dias do Império, um homem que não era entusiasta de mudanças radicais e revolucionárias na economia e na sociedade, Sílvio Romero, dava o seguinte quadro, condenatório, por si mesmo, da situa­ ção em nosso meio rural: "Lançando as vistas sobre o Brasil por este lado, vejo que possuímos hoje uma lavoura arruinada, um comércio quase todo estrangeiro, uma pequena indústria nos centros mais populosos, de que nem se deve falar, e em duas ou três províncias a criação de gados. Quanto à primeira, fundada em grandes propriedades, que têm os nomes extravagantes de fazendas e de engenhos, retalhou o País em vastos lotes, verdadeiros restos das antigas capitanias, onde algumas dúzias de enfatuados baxás moviam ainda há pouco o azorrague nos agregados. Estes são uma espécie de boêmios sem domicílio certo, pois que ao menor capricho do senhor das terras, têm de por os trastes às costas e mudar-se; uma grande cota de seus produtos é para os fazendeiros e senhores de engenho [... ] Assim, pois, não temos a pequena lavoura organizada. A grande, rotineira e pervertida, é uma extorsão cruel feita aos proletários rurais. Latifundia perdidere Italiam, disse Plí­ nio; as fazendas e os engenhos estão perdendo o Brasil, é o brado que sai, com razão, de todos os lados" (História da literatura brasileira, t. I, Rio, 1888 pags. 115-116).

Atente-se bem para as últimas palavras de Sílvjo Romero, que datam de 1888: reconhecimento generalizado, à época, de que a grande propriedade semifeudal estava arruinando o País. Então, não é estranhável que, conforme relata André Rebouças, em seu Diário, seis meses antes da queda do Império, convidado para ocupar uma pasta ministerial, o Visconde de Taunay impusesse, entre outras condições, ao Imperador, a decretação do "imposto territorial, parcelamento das terras, pequena propriedade" (André Rebouças, Diário, pág. 337, nota. ).

 É claro que não iria para o Ministério... 

O problema continuou a existir, insolúvel. 

O Império cairia meio ano depois e a República não se atreveria a reformar o status da propriedade territorial. Ao contrário, quando se impõe a mobilização da maior parte do Exército brasileiro para esmagar um foco insurrecional de pobres do campo, em Canudos, os chefes republicanos não vacilam um só instante. São implacáveis: mandam varrê-lo da face da terra. 

Mas, pergunta-se, por que havendo uma tão forte corrente de opinião em favor da renovação da estrutura agrária, esta não se efetuou? 

Entre outros motivos, porque aquele setor da intelectualidade que se batia por uma medida que considerava complementar da Abolição da Escravatura traduzia interesses apenas da parcela mais radical da burguesia brasileira da época. E estes interesses ainda estavam longe de identificar-se com os interesses mais gerais do povo. Quem tinha em suas mãos a m ola mestra da economia nacional eram os latifundiários, pois éramos sobretudo um País exportador de alguns produtos agropecuários, uma grande fazenda. A burguesia tentava ganhar terreno, mas ainda era reduzida em número e em força econômica. A burguesia comercial das grandes cidades, em parte constituída de elementos estrangeiros, não se encontrava identificada com os interesses nacionais. A burguesia industrial, bastante débil, baseada quase exclusivamente nas indústrias têxtil e alimentares. Teria interesse em ver ampliar-se o mercado interno para a sua produção, o que só seria possível em larga escala e de maneira mais rápida mediante a reforma da estrutura agrária; mas não tinha forças suficientes para impô- la.

Havia, ainda, outro motivo ponderável, e que não estava em plano secundário: latifúndio e burguesia se ligavam intimamente através de seus domínios territoriais. As iniciativas de caráter industrial partiam, quase sempre, dos grandes latifundiários do café, cultura que oferecia os capitais excedentes para tais empreendimentos (Ver Roberto Simonsen, A indústria em face da economia nacional, São Paulo, 1937). 

Além disso, a opinião pública formada no País, a mais sensível às idéias daqueles intelectuais que se constituíam em ideólogos dos anseios mais avançados da parte radical da burguesia, era a pequena burguesia das principais cidades: Rio, São Paulo, Recife. Ela poderia ter sido força motriz daquelas exigências. Mas não chegava sequer a ser comovida por elas. 

O problema discutia-se em livros, em poucos periódicos, em conversas particulares com o Imperador... O povo alheou-se dele. Quando veio a Campanha de Canudos, em 1896, esta mesma opinião pública foi confundida e mistificada por uma propaganda solerte que apresentava a luta como destinada a salvar a República... 

Eliminado o principal foco insurrecional de pobres do campo até hoje surgido no Nordeste, o latifúndio foi mantido intato, com todo o seu atraso e suas ignomínias. 

Nas zonas rurais do Sul, o capital ia penetrando de qualquer forma na agricultura: através do trabalho assalariado (fator reforçado desde a década de 60 do século XIX com a importação de colonos europeus) nas grandes fazendas, ou com o emprego de implementos agrícolas. Toma impulso, por isso mesmo, a economia mercantil.

Não acontece o mesmo no Nordeste. As "soluções" aí são diferentes. Quando a crise chega ao auge num setor vital da economia nordestina, aquele ligado ao mercado externo e sem o qual ela não poderia sobreviver dentro da sua estrutura, renova-se tecnicamente esse setor, mas de forma que sua base essencial se mantém e o homem continua um semi-servo. As relações de produção pré-capitalistas são zelosamente conservadas nas usinas de açúcar, que as herdaram dos decadentes engenhos. A renovação técnica resolve temporariamente a situação da cúpula do latifúndio semifeudal nordestino, quer dizer, preserva-a, mas, nas condições dadas, agrava a situação das massas sem terra (Para maiores detalhes no que se refere às sesmarias no Nordeste, ver Fragmon C. Borges, in Estudos sociais, n.° 1-4, Rio, 1958).

A Emigração em Massa

Quem modifica, então, este panorama, que se particularizava pela imobilidade, uma vez que esta foi finalmente quebrada e as populações interioranas se m ovimentaram, entrando em choque aberto com o latifúndio? Embora pareça paradoxal, a ruptura da estagnação se inicia com o êxodo em massa de emigrantes nordestinos, inicialmente para a Amazônia, mais tarde para São Paulo. É o fenômeno mais progressista que ocorre nos sertões do Nordeste nesse período. A emigração em larga escala se inicia com a grande seca de 1877 a 1879, a qual deixou memória em toda a região, até os dias de hoje. Três anos seguidos sem chuvas, sem semeaduras, sem colheitas, os rebanhos morrendo, os homens fugindo para não morrer. É verdade que em secas anteriores haviam-se registrado já emigrações além das fronteiras da província que era a principal vítima das faltas de chuvas, o Ceará. João Brígido afirma que, na seca de 1792, emigrações houve das fronteiras do Ceará para as terras úmidas do Piauí, e que o êxodo dos sertanejos adquiriu maiores proporções em 1825, estendendo-se até o Pará. Reconhece, porém, que só se torna intensa — "intensíssima" — depois de 1877 (1 Ceará, homens e fatos, págs. 163-166).

Agora, atraía o emigrante o surto da borracha na Amazônia. E, aberto o caminho, a emigração não cessa mais até o fim dessa aventura econômica. Estima-se que, num só ano, em 1878, a população deslocada do interior do Ceará totalizou 120 000 pessoas, quando a população total da província era de pouco mais de 800 000 habitantes. Os deslocados — em geral, vaqueiros, moradores, pequenos proprietários — em parte conseguem embarcar para fora do Estado (cerca de 55 000 pessoas), em parte morrem de fome e enfermidades nos subúrbios de Fortaleza ou nos caminhos dos sertões (somente nos subúrbios de Fortaleza cerca de 57 000 pessoas). Os escravos são vendidos em grande número pelos seus senhores para os mercados do Sul. Dez anos depois repete-se a tragédia. No mesmo ano da Abolição da Escravatura em escala nacional (1888), embora ela já houvesse ocorrido no Ceará quatro anos antes, em grande parte devido à ruína dos proprietários, Rodolfo Teófilo, testemunha presencial do acontecimento, registra indignado: "O mercado de gado humano esteve aberto enquanto durou a fome, pois compradores nunca faltaram. Raro era o vapor que não conduzia grande número de cearenses" (Rodolfo Teófilo, História da seca do Ceará (1887/1880), Rio, 1922, pág. 148)

Os homens livres tinham virado escravos. Fazendo um cálculo global dos emigrados cearenses nos anos de estiagens (sem contar os de outros Estados nordestinos, embora o maior volume, inclusive de flagelados daqueles Estados, saísse do Ceará) R. Teófilo calcula que mais de 300 mil foram povoar a Amazônia até o ano de 1900. Tudo indica que esta cifra foi bem maior, aproximando-se talvez do meio milhão, senão mais. Um contemporâneo autorizado, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, cita dados não só dos anos de seca mas também daqueles de invernos normais, em que a emigra­ção de nordestinos para a Amazônia prosseguia intensa. Em 1899, por exemplo, no primeiro semestre, isto é, na época mesmo das chuvas e quando elas caíam abundantes, mais de 17 000 cearenses embarcaram para o Extremo Norte. O mesmo autor refere-se a saídas de emigrantes não somente pelo porto de Fortaleza e por conta da União, mas também pelo porto de Camocim e por conta própria ou dos contratantes de trabalhadores que eram mandados ao Nordeste pelos donos de seringais. Saíam também, em número avultado, pela fronteira do Piauí. (T. Pompeu de Sousa Brasil, O Ceará no centenário da Independência, Fortaleza, 1922, vol. I, págs. 239-255.)

Mas essa transferência maciça de mão-de-obra — numa população extremamente rala, que orçava por 1 milhão de habitantes, não cessa no fim do século. O chamado "ciclo da borracha" duraria ainda mais de uma década em plena florescência, contribuindo com cerca de 30% do valor da exportação nacional ao atingir o seu apogeu. 

A Amazônia continuava a atrair como miragem os pobres sertanejos nordestinos, que iam morrer de febre em suas florestas exuberantes, nos seringais que alimentavam nababos a estadear riquezas em Manaus, Belém, nas capitais da Europa... Em 1900, abandonam o Ceará 40 000 vítimas da seca. Ainda em 1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de Fortaleza, enquanto 8 500 tomam o destino do Sul, 30 mil se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte... 

Essa emigração em massa representa na prática uma ruptura com o latifúndio, um sério desfalque para ele. Para sobreviver como latifúndio semifeudal, ele deveria dispor de mãode-obra semi-servil. E esta lhe fugia agora. A sua salvação é que as malhas do sistema latifundiário semi-servil se estendiam a todo o País,, com alguns claros apenas na pequena propriedade da extremidade meridional, no Rio Grande do Sul, e que não pesava no conjunto. O latifúndio fora violado irremediavelmente. Se jamais houvera feudo clássico, inteiramente fechado, nos limites do Brasil, uma vez que o nosso latifúndio possuía apenas certas características, não todas, do feudo clássico europeu, a emigração derrubara-lhe a cerca, deixara-o devassado ao mundo exterior, mais exposto em sua vulnerabilidade, passível de ser destruído pela desagregação interna, com a adoção de novas relações de produção, quando não através de lutas dos que lhe sofriam o domínio. 

As lutas poderiam advir precisamente daquela ruptura. Das grandes migrações provocadas pelas secas periódicas do Nordeste, nos fins do século XIX (depois de determinado estágio do desenvolvimento demográfico da região, ao influxo dos surtos econômicos efêmeros ocorridos em outras regiões, num nível já extremo da ruína do latifúndio semifeudal) advêm resultados diversos, uns favoráveis, outros contrários à conservação do latifúndio. Alguns desses resultados: 

a) a saída das levas de emigrantes para fora do meio rural nordestino subtrai ao latifúndio pré-capitalista, aí, um precioso excedente de mão-de-obra que lhe assegura a quase gratuidade da mesma e a possibilidade de impor-lhe condições de trabalho semi-servis; 

b) ao mesmo tempo, alivia a pressão que uma numerosa população inteiramente desprovida de recursos vitais poderia vir a exercer sobre o latifúndio para impor-lhe modificações e até mesmo a sua destruição como tal; 

c) a emigração em massa de trabalhadores rurais do Nordeste, para os emigrantes, tinha o valor de uma tomada de consciência de sua situação anterior. Viam que podiam livrarse do punho de ferro do latifundiário, do ignominioso regime servil que lhes era imposto. 

Porque essa emigração possuía um caráter geral progressista. O progresso que era possível em semelhante sociedade, dirigida e dominada por um punhado de escravistas. Pois tinha seus aspectos monstruosos. Os nordestinos emigravam seminus, descalços, famintos. Famílias inteiras se desgarravam, separavam-se impiedosamente pais e filhos, marido e mulher. 

Alojavam-nos no porão ou no convés de navios costeiros, em piores condições do que animais. Muitos sucumbiam durante a viagem penosa. Os trabalhadores agrícolas saíam de um meio onde dominavam relações pré-capitalistas de produção e iam localizar-se em outro meio de condições idênticas no fundamental. 

Nos se­ringais da Amazônia imperava o trabalho semi-escravo, a remuneração parcialmente em espécie, a prisão por dívidas aos seringalistas, havendo um conluio entre estes para não admitir seringueiros endividados com seu anterior patrão. Além disso, como fenômeno de massa — havendo naturalmente as exceções — não se destinavam a atividades não-agrícolas, que pudessem arrancá-los da vida estagnada, econômica e socialmente, que levavam, obscura e sem horizontes, no campo nordestino. 

Mas o simples fato de emigrarem retirava-os da imobilidade multissecular em que tinham vivido, através de gerações, representava o primeiro passo na busca de condições de vida diferentes daquelas que conheciam, jungidos ao latifúndio. Uma considerável vantagem levavam porém os que saíam sobre os que ficavam: entravam em contato com uma economia mercantil muito mais desenvolvida do que no Nordeste. A participação da borracha na exportação brasileira crescera de 10%, em 1890, para atingir cerca de 40%, em 1910. Uma enorme quantidade de dinheiro se canaliza para o Extremo Norte, para a Amazônia, e fomenta seu comércio urbano. 

O nordestino que ali chegava desconhecia praticamente a economia mercantil. O Ceará, de onde vinha a quase totalidade dos trabalhadores da borracha — agregados, meeiros, parceiros em geral — era terra da mais extrema pobreza. Suas populações sertanejas viviam mergulhadas numa economia seminatural, conseguindo os meios de subsistência em pequenos plantios nas terras alheias, roças de mandioca, milho, feijão, melancias, a criação de resistentes caprinos para as épocas da seca. E quando chegava a estiagem anormal, de um ano a três, perdiam tudo, alimentavam-se de raízes, tubérculos, alguns frutos silvestres de árvores xerófilas. Em algumas zonas nem isso havia. 

É sabido que uma multidão de romeiros conseguia viver, sem trabalhar, em Juazeiro, nos tempos do Padre Cícero, alimentando-se basicamente do fruto do pequi, árvore nativa nas florestas da chapada do Araripe. Na Amazônia a sua situação modificava-se. O grosso de seus ganhos o patrão lhes dava em espécie: o charque, a farinha de mandioca, a rapadura, a cachaça. Mas, resgatada a dí­vida, uma parte daqueles escravos do seringal ia diretamente ao mercado da cidade mais próxima (Euclides da Cunha possui uma página clássica sobre o aspecto mais impressionante e dramático do trabalho semi-servil dos nordestinos na Amazônia. Embora absolutamente verídica, é uma apreciação unilateral. Ver À margem da História, 2.a ed., Porto, 1913, págs. 27-33).

De outra forma não se explicaria o surgimento impetuoso de Manaus, em plena selva, borbulhante de vida, onde o trabalho do seringueiro era a garantia de todos os negócios. Escrevia um autor contemporâ­ neo: "... a Amazônia é a terra do crédito. Não há capitais. O seringueiro deve ao 'patrão', o 'patrão' deve à 'casa aviadora', a 'casa aviadora' deve à [casa] estrangeira, e assim segue" (5 Mário Guedes, Os seringais, Rio, 1914, pág. 143)

O aparecimento do regatão, rio acima, rio abaixo, portador de um movimentado comércio ambulante que atinge o âmago da floresta, é uma das expressões dessa economia m ercantil que brotou com o florescimento da extração da borracha. "Vende nos 'barracões', nas 'barracas', por toda a parte" (Idem, pág. 173)

Quanto a Manaus, chegava a "dar a idéia de uma pequena colméia. Só se vê gente chegada de todos os pontos do interior do Estado, indo e vindo, de um lado para outro, a tratar de negócios, num açodamento de admirar... Assim é que se vê a todo o momento os seringueiros entrando nas 'casas aviadoras', levando os saques que trouxeram dos seringais onde trabalham. Porque o seringueiro não recebe o valor da borracha que 'fez' no seringal. 

Não. Ele vem recebê-lo na 'casa aviadora' do seringal, numa das praças de Belém ou Manaus". Acrescenta Guedes: "Cada ano entram no Ceará centenas de contos [de réis]. Há um sem-número de famílias que vivem do que lhes mandam os seus da Amazônia; estudantes que fazem os seus cursos, nos diversos institutos do País, com recursos de igual procedência" (M. Guedes, págs. 183 e 196). E a conclusão lógica: "... há na Amazônia mais liberdade... " (Idem, pág. 197). 

Era a economia mercantil que proporcionava essa "liberdade" ao antigo servo da gleba nordestino, que continuava preso ao seringalista, mas com uma diferença essencial para ele: ganhava dinheiro; comprava no barracão, mas também na cidade, no grande comércio; mantinha seus negócios com o regatão que subia e descia o rio; adquiria visos de independência. Aquele quadro de prosperidade da Amazônia refletia-se no Nordeste. Um escritor cearense indica esse reflexo quando informa: "O Ceará progredia [...] devido a alguns anos de estações regulares e sobretudo à grande alta da borracha no Amazonas, que derramou rios de dinheiro no Estado. Em 1910, quando a borracha chegou a dar 16 mil-réis por quilo, entraram para aqui cerca de 30 mil contos!... Em Fortaleza tu ­ do se valorizou. As casas subiram de preço e o comercio teve grandes lucros. Os paroaras tudo compravam sem regatear o preço. (R. Teófilo, Libertação do Ceará, Lisboa, 1914, pág 42)

Um grande número voltava ao Ceará, sobretudo nas épocas de queda do preço da borracha. Os latifundiários nordestinos, nos anos de chuvas normais, facilitavam esse regresso, que foi sempre cantado em prosa e verso por literatos da região. Era o que precisamente queriam os latifundiários cearenses: que em condições "normais" lhes sobrasse a mão-de-obra dos que não tinham terra, dos que eram obrigados a vender pela comida de um dia o fruto do trabalho de 12 horas no cabo da enxada. O próprio Governo do Ceará, nos começos do seculo, mandava fornecer passagens para a volta dos emigrantes. (R. Teófilo, A Seca de 1915, Rio, 1922, pág. 83)

Mas o homem que voltava não era o mesmo. Ao contato com outras gentes, com outras formas de vida social, a concorrência desenfreada entre os donos de seringais, uma luta pela existência muito mais afanosa do que na pasmaceira do Nordeste, sua mentalidade se modificara. Um dos governadores do Ceará nos começos do século XX, Benjamim Barroso, reconhecia, em mensagem à "Assembléia Legislativa estadual, este fato, que devia corresponder inteiramente à realidade: "Depois que se estabeleceu a corrente emigratória para a Amazônia [isto é, depois de 1877], é que os hábitos e costumes cearenses se modificaram" (11 Cit. Por A. Montenegro, História do cangaceirismo, pág. 77).

O governador lamentava isso, pois essa modificação se manifestava principalmente num maior grau de inconformismo das populações sertanejas com a vida de miséria e fome e, portanto, em sua luta por uma existência melhor. A luta só podia corresponder ao nível em que se encontravam econômica e socialmente colocados os que constituíam a parcela mais explorada e oprimida da população, aqueles que nada possuíam e tinham algo a reivindicar, ainda que não soubessem formular claramente essa reivindicação. 

Faltava-lhes ainda a consciência de si mesmos, quando segundo Marx, a opressão se torna mais opressiva porque o oprimido possui a consciência de que o é. O despotismo dos potentados rurais havia, durante séculos, relegado os pobres do campo à condição de objetos. A classe-agrária dominante via no trabalhador da terra o escravo, que o era de fato e juridicamente. 

Mesmo com a Abolição, uma vez que não se processaram mudanças fundamentais no campo e o latifúndio foi mantido com todas as suas prerrogativas e privilégios, o trabalhador rural continuava a ser considerado um semi-escravo. O conceito de ser humano em rela­ ção a ele não era válido para o grande proprietário. A classe dos pobres do campo se achava à margem da sociedade constituída. Não tinha terra, nem outros bens, não tinha direitos, não tinha sequer deveres — além daqueles de servir ao senhor. 

Proliferando, em meio à miséria, seu número crescendo, o latifúndio estagnado não podia integrá-los totalmente em sua economia limitada. Temendo-os, dispersa-os. É a sua grande arma. A própria existência do latifúndio, açambarcando terras, expulsa-os de suas vizinhanças. Cria-se no Nordeste uma espécie de nomadismo permanente, que as secas só fazem aumentar e dar características mais trágicas. É então que se juntam, ante o flagelo, reúnem-se nos caminhos para as longas jornadas em busca de pão e água. 

Jamais haviam tido laços estreitos de solidariedade, isolados em choupanas perdidas nos ermos, a enormes distâncias umas das outras, sem formarem ao menos qualquer simulacro de aldeia. A seca expulsa-os e congrega-os. O acicate para a sua unidade é a fome. Ficavam então até mesmo sem os recursos da economia seminatural. A seca mata-lhes a criação, queima-lhes a roça e não lhes resta sequer a água barrenta da cacimba rasa, cavada com a enxada,  junto ao casebre. Contra a fome e a miséria que aumentam com a seca, manifestam-se dois tipos de reação da parte dos pobres do campo: 

a) a formação de grupos de cangaceiros que lutam de armas nas mãos, assaltando fazendas, saqueando comboios e armazéns de víveres nas próprias cidades e vilas; 

b) a formação de seitas de místicos — fanáticos
em torno de um beato ou conselheiro, para implorar dádivas aos céus e remir os pecados, que seriam as causas de sua desgraça.

Os Cangaceiros 
 
Num meio em que tudo lhe é adverso, podia o homem do campo permanecer inerte, passivo, cruzar os braços diante de uma ordem de coisas que se esboroa sobre ele? Euclides da Cunha já compreendera que o homem do sertão "[...] está em função direta da terra" (Os sertões, 13.a ed., pág. 141.). 

Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as suas energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador das piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o seu. 

Então, espantados, os homens das classes dominantes não sabem explicar por que ele se evoltou. Ele, sempre tão cordato e humilde mesmo, que não falava ao senhor sem tirar da cabeça o largo chapéu de palha ou de couro, toma de uma arma, torna-se cangaceiro, arregimenta companheiros de infortúnio e forma um grupo — um bando. Por que? 

As tentativas de explicação dos fatores do cangaço datam, talvez, do início mesmo do fenômeno. Mas vejamos opiniões de alguns autores que estudaram o processo em sua plena florescência. Euclides da Cunha, sabe-se, atribui-o ao fator racial, atavismos étnicos, "o meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do Vasa-Barris ao Parnaíba, no ocidente", e ao que chama de "estigmas degenerativos de três raças" (2 Idem, pág. 93).  

Euclides da Cunha baseia-se, entre outros autores, em Nina Rodrigues. As teses deste cientista baiano parecem ter sido a fonte de inúmeras opiniões errôneas sobre as causas do cangaceirismo e do misticismo sertanejos. Nina Rodrigues afirmava que "a criminalidade do mestiço brasileiro [está] ligada às más condições antropológicas da mestiçagem no Brasil" (3 As raças humanas e a responsabilidade Penal no Brasil, Salvador, 1957, pág. 158)

Vários autores nordestinos, sem dar atenção às causas econômicas e sociais, recorrem à explicação, para eles a mais fácil, adotada por um cientista: a mestiçagem. Era uma atitude fatalista. Como a mestiçagem constituía um fato irremovível, seus resultados no Nordeste — o cangaço e fenômenos correlatos — jamais teriam remédio... Esse ponto de vista ainda iria influenciar, muitos anos mais tarde, o autor de um dos livros de maior repercussão sobre o Juazeiro e o Padre Cícero, Lourenço Filho. Considera ele, depois da visita que fez ao Cariri, na década de 20, que "certas condições biológicas levam ao banditismo" (4 O Juazeiro do padre Cícero, 2.a ed., São Paulo, s/d., pág. 162)

E para anomalias como o Juazeiro, aconselhava (em 1926): "Os remédios estão aos olhos de todos, e eles se resumem, numa palavra, em maior liberdade política aos escravizados Estados do Norte, em distribuição de justiça e educação". 

É interessante observar como até mesmo conhecedores da situação local, homens nascidos e criados ali, narram fatos e episódios diante dos quais se supõe que tirarão as conclusões lógicas — e no entanto a conclusão é contrária à própria realidade descrita. É o caso, entre outros, de Xavier de Oliveira, filho do Cariri. Reconhece ele textualmente: "o homem honesto e trabalhador de outrora é um bandido agora, por causa de uma questão de terra" (Beatos e cangaceiros, Rio, 1920, pág. 24)

Acrescentava quanto às condições de trabalho: "No Cariri, em certa cidade, há o que se chama feira de trabalhadores. Centenas de homens, reunidos em praça pública, enxada ao ombro, prontos para o trabalho. Chega o fazendeiro, escolhe os mais robustos (é como se escolhesse bois para o corte) e os leva à roça. Os outros, em número de centenas, ficam sem trabalhar, e sem comer, eles, suas mulheres e seus filhos" (Idem, págs. 28-29)

Dá o testemunho de sua própria experiência pessoal: "Esta mão que ora traça essas linhas, muitas vezes, vai para doze anos, aos que tinham a ventura de se empregar, pagou quinhentos réis ($500) por dia inteiro de trabalho!..." E "eram onze horas de trabalho" (Idem, pág. 29. (Para termo de comparação: em 1912, um kg de carne, em Fortaleza, custava de 600 a 800 réis, e um litro de feijão, 400 réis)

Estes homens — é a conclusão lógica — tinham forçosamente que ser revoltados. Sem terra, sem ocupação certa, a mais brutal exploração de seu trabalho, revoltar-se-iam qualquer que fosse a dosagem de seu sangue, sua origem racial, o meio físico que atuasse sobre seu organismo. Mas Xavier de Oliveira concluía pedindo... a ajuda do Exército para exterminar o cangaço. Fez desta reivindicação uma cruzada durante sua vida. Nos principais focos de banditismo — opinava ele — desde Pajeú de Flores até Riacho do Navio, dos sertões de Pernambuco ao Cariri, deviam instalar-se regiões militares — e tudo estaria resolvido. Para outro nordestino, Gustavo Barroso, o cangaço seria extinto nos sertões com estes remédios: "comunicações, transportes, instrução e justiça" (Cit. por A. Montenegro, História do cangaceirismo, pág. 22)

E um jurista eminente, originário também da região onde atuavam os cangaceiros, ensinava uma terapêutica, em geral, justa, mas sem indicar como devia ser aplicada: "Os meios preventivos — escrevia Clóvis Bevilacqua — que consistem na criação de um ambiente desfavorável à germinação desta planta nociva, o que se obterá melhorando as condições de vida das classes desprovidas de bens materiais, difundindo a instrução, sobretudo a educação moral; e assegurando a justiça a todos" (Idem, ibidem). 

Mas, como criar esse ambiente ideal? E a coisa chega ao anedótico. Um dos perseguidores de Lampião em Pernambuco, oficial da Polícia Militar daquele Estado, ofereceu uma idéia bastante original da existência do cangaço. Diz ele textualmente: "A zona do Nordeste é privilegiada pela natureza. Ali não existem, em quantidade avassaladora e mortífera, os insetos dos outros Estados — o carrapato, muriçocas, berne, piolho-de-mocó, maruim, em quantidade tão grande que desesperam até os próprios animais selvagens, apesar de suas defesas naturais. 

Esses insetos, se fossem abundantes em nossos sertões, como o são noutros Estados, estou certo de que nunca teria existido nenhum grupo de cangaceiros na vasta parte onde serve de palco aos mesmos" (sic) - (Optato Gueiros, Lampião, 2." ed., São Paulo, 1953, pág. 10)

Portanto, o remédio era disseminar insetos mordedores e mortíferos — e os cangaceiros se acabariam... Estas são algumas das inúmeras opiniões sobre as causas próximas ou remotas do cangaço (como dos surtos de "fanatismo"). 

Vê-se que predominam simples efeitos de causas profundas: ausência de justiça, analfabetismo, precariedade de comunicações e transportes, baixos salários. Quando tudo isto já resultava da tremenda desigualdade social, do débil desenvolvimento do capitalismo, do lentíssimo incremento das forças produtivas, da concentração da propriedade da terra, que dava poder econômico ilimitado a uma insignificante minoria de latifundiários. 

A grande massa dos habitantes da região não dispunha de recursos normais para viver, nem mesmo a possibilidade de vender com segurança sua força de trabalho. Quando o conseguia era em condições tais que correspondiam à semi-servidão.

Como poderia haver justiça, simples recursos jurídicos, sem falar em justiça social, para explorados e oprimidos em tais condições? O aparelho judiciário estava sob o controle direto dos sobas locais, o juiz lhes era um dependente, muitas vezes menos do que isso, um lado. (Ver, a propósito, o romance-sátira de Jáder de Carvalho. Sua majestade, o juiz).

Diz Xavier de Oliveira, em 1919: "No sertão não há lei, não há direitos, não há justiça [...] Quanta vez, ali, não é removido de uma para outra comarca, um juiz que proferiu uma sentença contra um político in ­ fluente, cabo eleitoral ou chefe de bando do presidente ou do governador do Estado?... " (12 Xavier de Oliveira, ob. cit.. pag. 22. ) 

E narra episódios de demarcações de terras mandadas fazer por certo magistrado sob uma chefia local, e desfeitas pelo mesmo magistrado quando o município se encontrava sob outro governo. Como poderia, pois, haver alfabetização, instrução, educação popular? Além disso, para que? 

O interesse do grande proprietário da terra é manter no obscurantismo a população local. Ele quer braços servis e não cabeças que pensem. Ninguém necessita de saber ler e escrever para pegar numa enxada. O Governo do Estado ou do município não dispunha de verbas para gastar com escolas. As verbas iam para o bolso dos potentados locais, seus familiares e apaniguados. Mesmo que fundassem escolas — a não ser uma ou duas, na sede do município, para os filhos dos ricos ou dos remediados — os filhos dos pobres não poderiam frequentá-las. 

Não podiam comprar as coisas mais elementares, como um par de sapatos ou uma roupa, quanto mais livros e material escolar. E quando seus pais tinham trabalho garantido ou um lote de terra para plantar, necessitavam de sua ajuda, desde a mais tenra idade, nos duros labores da terra. Quanto aos meios de comunicação e transportes, como podiam existir se o latifúndio era o feudo quase fechado, se pouco produzia ou produzia apenas para o consumo familiar ou local? Os meios de transporte comuns eram os animais, o lombo do burro ou o carro de boi, que passavam por quaisquer caminhos, qualquer picada aberta no campo. 

Alguns dos que preconizavam tais providências, viamnas isoladas de todo um complexo: um meio onde dominavam relações de produção pré-capitalistas, semifeudais. Ainda hoje muitos acreditam que foram simplesmente as estradas, o caminhão, que acabaram com o cangaço. Esquecem que os jagunços de Floro Bartolomeu foram conduzidos de trem de Iguatu a Fortaleza... 

Que Lampião viajou com seu bando em caminhões e ocupou cidades servidas pelo telégrafo... No entanto, um bom conhecedor do Nordeste e lúcido estudioso de seus problemas repetia, nos anos 20, que "a repressão [ao cangaceirismo] é neste extenso território um problema de fácil transporte" (José Américo de Almeida, A Paraíba e seus problemas, 2.a ed. Porto Alegre, 1937.)

Não se percebe que as estradas de nada valeriam sem a penetração, ainda que limitada, do capitalismo no meio rural, sem o estabelecimento de uma rede comercial que favorecesse sua penetração, sem os créditos bancários que já haviam aparecido no Cariri nos começos da década de 20, em suma, novas relações de produção e troca que se iam criando, mesmo quando subsistiam — e subsistem em larga escala ainda hoje — fortes remanescentes das relações anteriores. 

Mas as novas é que operam a mudança. Desenvolvem-se, bem ou mal, as forças produtivas, e esse desenvolvimento, embora lentíssimo, é que constitui a força motriz das transformações operadas que atingem o meio social. A penetração do capitalismo no campo, com desenvolvimento acentuado no Sul, o surto de industrialização que atrai imigrantes, a urbanização intensiva é que foram arrancar o semi-servo da estagnação do meio rural e darlhe outros caminhos que não os do bando do cangaço, ou os místicos itinerários dos beatos e conselheiros. 

Não é que a estrada e o caminhão espantem o cangaceiro. A estrada e o caminhão trazem para a cidade o cangaceiro de amanhã. A indústria o entrosa em suas engrenagens, os próprios meios de transporte o absorvem, ou o conduzem para os novos cafezais que se abrem no norte do Paraná. 

A estrada e o caminhão já resultavam, eles mesmos, daquela mudança. Porque não é só no monopólio da propriedade fundiária que reside a matriz do cangaço; era em todo o atraso econômico, no isolamento do meio rural, no imobilismo social, na ausência de iniciativas outras que não fossem as do latifundiário — e as deste eram quase nenhuma. Pode-se imaginar o que representou como fator de comoção interna no Cariri o surgimento de uma cidade cuja população, nos primeiros vinte anos de seu nascimento, era maior do que a de meia dúzia das cidades clássicas do vale, como aconteceu em Juazeiro. 

Era uma subversão para o latifúndio nordestino. Tem-se opinado também que o cangaceirismo advinha da ausência de policiamento nas regiões interioranas profundas. Todos os fatos provam o contrário: quando a polícia apareceu para combater o cangaço, teve o mérito de exacerbá-lo. 

Por todo este interior do Brasil, onde quer que a polícia tenha chegado para perseguir cangaceiros ou "fanáticos", praticou contra as populações rurais crimes mais hediondos do que os cangaceiros mais sanguinários. A primeira coisa que fez foi colocar-se incondicionalmente a serviço de um dos potentados locais, a serviço, portanto, de suas intrigas, seus ódios, suas perseguições. 

E visava indistintamente cangaceiros e supostos cangaceiros, ou informantes seus, ou ainda pessoas que nada tinham a ver com o cangaço. Enquanto os cangaceiros andavam de preferência nos matos, a polícia percorria cidades, vilas e povoados, cujos habitantes muitas vezes fugiam à sua aproximação. Não era para menos. 

As andanças dos destacamentos policiais eram verdadeiras expedições punitivas, atingindo indistintamente culpados ou supostos culpados e até inocentes, inclusive mulheres e crianças. Todo o sertão sabia como tinham agido as forças enviadas contra Canudos nos fins do século XIX: matado homens, mulheres e crianças. 

Com os cangaceiros, cortavam-lhes a cabeça quando mortos em combate. Aprisionados, eram em geral fuzilados sumariamente e só conduzidos para a cadeia quando se tratava de um ou outro nome conhecido, cumprindo ordens superiores dos chefes. 

Ainda em 1938, destruído com requintes de ferocidade pela polícia de Pernambuco, sob o comando de Optato Gueiros, um dos núcleos remanescentes do Beato Lourenço, a selvageria policial se repete mais uma vez. Narra-o um repórter dos Diários Associados em Salvador, depois de visitar o local da carnificina: "Trinta e cinco prisioneiros feridos, na maioria mu­lheres e crianças, foram abandonados numa casa da estrada em virtude da dificuldade de transporte. Estes infelizes foram encontrados por uma coluna da Polícia do Piauí e... fuzilados. A chacina estava completa" (Azevedo Marques, Estado da Bahia, Salvador, 23/11/1938.). 

Não se compreendia, ou não se queria compreender, pois que interesses materiais do mais abjeto egoísmo não o permitiam, que se havia aquela convulsão, abrangendo tão grandes massas humanas por todo o Nordeste — e não só no Nordeste — é que deviam existir necessidades sociais que as instituições entorpecidas não podiam satisfazer. 

Não se tratava de crimes individuais — não era portanto um crime, mas um problema social a enfrentar. Essas mesmas instituições respondem aos que expressam a agudeza desse problema como se enfrentassem criminosos comuns, homens que nada tinham a ver com a própria sociedade onde viviam. E eram eles — cangaceiros e "fanáticos" — os elementos ativos de uma transformação que prepara mudanças de caráter social. 

Eles subvertem a pasmaceira imposta pelo latifúndio durante séculos, provocam choques de classes, lutas armadas, preparam os combates do futuro. Não são ainda a revolução social, mas são o seu prólogo. São os elementos regeneradores daquela sociedade estagnada, em processo de putrefação. 

Revivem-na, dão-lhe sangue novo, põem-na em movimento, preparam-na para o advento de uma nova época. São ainda o elemento unificador por excelência de uma região — mais do que o Nordeste, todo um imenso território interiorano — que se desagregava dentro de si mesma, em feudos quase fechados e paralisados. 

O cangaceiro e o fanático eram os pobres do campo que saíam de uma apatia generalizada para as lutas que começavam a adquirir caráter social, lutas, portanto, que deveriam decidir, mais cedo ou mais tarde, de seu próprio destino. Não era ainda uma luta diretamente pela terra, mas era uma luta em função da terra — uma luta contra o domínio do latifúndio semifeudal. 

Naquele atraso medieval, a reação da classe potencialmente revolucionária — os semi-servos da gleba — é de nível correspondente ao desenvolvimento das forças produtivas: uma reação primária em que o inimigo de classe não é percebido claramente, em que as desgraças parecem cair do céu, como castigos, e é necessário implorar as bênçãos do céu, em que o individualismo campesino prevalece e a solidariedade grupai é bem limitada. 

Os bandos cangaceiros que saem dentre aqueles semi-servos vivem dispersos, lutam por objetivos isolados e, não raro, enfrentam-se uns aos outros, destroem-se mutuamente. Tornam-se presas de seus próprios inimigos de classe, os grandes proprietários rurais, donos de fazendas de gado ou de lavras de minério. O surgimento e o incremento do cangaço é a primeira réplica à ruína e à decadência do latifúndio semifeudal, de que também é resultante. 

Naquela sociedade primitiva, com aspectos quase medievais, semibárbaros, em que o poder do grande proprietário era incontrastável, até mesmo uma forma de rebelião primária, como era o cangaceirismo, representava um passo à frente para a emancipação dos pobres do campo. Constituía um exemplo de insubmissão. Era um estímulo às lutas. O cangaço precede os grandes ajuntamentos de "fanáticos" que tiveram seus pontos culminantes em Canudos e no Contestado. (Neste trabalho focalizamos apenas as duas grandes concentrações de pobres do campo do Nordeste: Canudos (Bahia) e Juazeiro (Ceará). No que se refere ao Contestado (fronteira Paraná-Santa Catarina) (1912/16), onde o governo federal teve que empenhar importantes contingentes do Exército para enfrentar os "jagunços" durante três anos e, finalmente, dizimá-los, remetemos o leitor às mais importantes das obras não puramente descritivas, mas também interpretativas, de Maria Isaura Pereira de Queirós — La "Guerre Sainte" au Brésil: le Mouvement Messianique du "Contestado". São Paulo, 1957; e Osvaldo R. Cabral, João Maria, Interpretação da Campanha do Contestado, São Paulo, 1960. Conhecemos parcialmente, ainda não concluído, um valioso trabalho de pesquisa local e interpretação de Maurício Vinhas de Queirós, que irá contribuir certamente para esclarecer importantes aspectos da luta camponesa do Contestado, aquela onde a terra foi objeto consciente do conflito armado.)

Os Fanáticos

ENTRE MEADOS DO SÉCULO XIX E começos do século XX, sucedem-se em cadeia movimentos de rebelião de pobres do campo, de norte a sul do País. Assumem as mais diversas características. Seus pontos culminantes são Canudos (1896-1897), Contestado (1912-1916) e o Caldeirão (1936-1938). 

Apesar da especificidade de cada um, liga-os um traço comum sobressalente: o choque aberto entre a religiosidade popular e a religião oficial da Igreja dominante. No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar de fanatismo. 

Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer, adeptos de uma seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante. Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada pela religião católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia. 

Como toda ideologia, um conjunto de conceitos morais, religiosos, artísticos, etc, que traduziam suas condições materiais de vida, seus interesses, seus anseios de libertação e seus próprios métodos de luta. Justificavam-nos também. Semelhante fenômeno deve ter-se acentuado com a eclosão da crise religiosa da década de 70 e cujos reflexos foram profundos e amplos em todo o País: a chamada Questão Religiosa em que foram partes principais o Governo e a cúpula da Igreja Católica. 

Pode-se imaginar a queda do conceito, para as massas rurais, de bispos que eram presos, submetidos a julgamento público, com grande alarde nacional, no Parlamento e na imprensa, até mesmo nas praças públicas, e esses bispos serem condenados ao cárcere e a trabalhos. Junte-se a isto a tradicional desmoralização do clero, o fato de a Igreja Católica ter estado comprometida com a escravidão, havia pouco extinta, e, mais, haver sido a Igreja separada do Estado com a Proclamação da República — e concluiremos que o desprestígio da religião dominante só podia ser enorme entre as massas populares. 

É conhecido o episódio do assalto a igrejas no Recife e da quebra de objetos do culto pela multidão. Nos municípios de Acarape e Quixeramobim, no Ceará, registra-se também, nos anos de 1874-1875, a invasão de templos católicos, e aí são rasgados livros de atas e quebrados móveis. (Eusébio de Sousa, História militar do Ceará, Fortaleza, 1950, pág. 293) 

Igrejas de Minas Gerais foram objeto de atentados logo depois da Proclamação da República, a tal ponto que os clérigos mandavam recobrir o ouro de numerosas imagens que despertavam a cobiça dos iconoclastas. Ademais, a igreja não era um lugar tão sagrado assim. Dentro dela realizavam-se "eleições" para cargos da administração ou representativos, e nessas "eleições" muitas vezes entrava um elemento normal na vida dos sertões, no século passado: o bacamarte ou o cacete. Brígido faz referência aos famosos "cerca-igrejas" que infestavam o Cariri nos começos do século XIX. 

"Esses homens ferozes e embrutecidos tremiam de cólera à notícia de qualquer solenidade, e armados invadiam a matriz do Crato, aos gritos de — Viva Nossa Senhora da Penha! Era de mister muita humilhação e prudência, para se escapar ao furor deles, e era tal o medo aos chamados cerca-igrejas, tão freqüentes e inopinadas as suas aparições, que as famílias já receavam concorrer aos atos religiosos". (Apontamentos para a história do Cariri (Crônica do sul do Ceará), Fortaleza, 1888, págs. 102-103)

Não advirão daí as maciças demonstrações de fanatismo não-católico, que se propaga pelo interior, entre fins do século passado e começos do atual? A propagação dessa onda de fanatismo, de norte a sul do País, revela uma drástica separação entre a ideologia das classes dominantes e camadas médias urbanas e a ideologia dos setores empobrecidos da população rural. 

Seus interesses materiais eram, em grande medida, contrários e mesmo antagônicos. Assim se é passível de discussão que os rebeldes de Canudos lutavam pela posse da terra, o problema da terra no Contestado aparece nitidamente. 

Um oficial do Exército, que mais tarde morreria na guerra insana movida contra os habitantes do Contestado, capitão Matos Costa, perceberia com grande lucidez a essência da luta que aí se travava, afirmando com todas as letras: "A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de camponeses espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança". (3 O. R. Cabral, João Maria, São Paulo, 1960, pág. 214) 

No bolso de um camponês morto foi encontrada uma carta que dizia, na linguagem estropiada e eloqüente do sertanejo: "Nóis não tem direito de terra e tudo é para a gentes da Oropa". E em outra carta se repetia a mesma afirmativa, acompanhada da decisão categórica da resistência: "O guverno da República toca os Filhos Brasileiros dos terrenos que pertence a nação e vende para o estrangeiro, nós agora estamo disposto a faser prevalecer os nossos direito" (H. Teixeira D'Assunção, A campanha do Contestado, Belo Horizonte, 1917, págs. 245-246).

Estes homens não podiam ter a mesma ideologia dos grandes proprietários, dos que lhes arrebataram a terra e a cujo serviço enviavam-se tropas para dizimar populações que nela mourejavam. Muito menos no Nordeste, onde o contraste entre o trabalhador rural e o dono da terra era muito mais flagrante. 

Em todos os casos aqui focalizados — Canudos, Contestado, Caldeirão — parece ser uma tendência natural das m assas rurais espoliadas, em determinadas condições, criar uma religião própria, que lhes sirva de instrumento em sua luta pela libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários da época. 

Nas condições de isolamento em que viviam, recebendo apenas pálidos reflexos das lentas transformações de caráter burguês que se operavam no litoral, era natural que as populações interioranas criassem seus próprios conceitos de vida, de organização social, de propriedade, de moral, etc. E, então, vimos repetir-se em Juazeiro (Caldeirão) o episódio do boi Ápis do antigo Egito. 

Apesar dos séculos transcorridos entre um fato e outro, a semelhança de mentalidade do homem, num meio rural primitivo, deve ter contribuído para a repetição do fenômeno, ainda que em latitudes diferentes e em épocas d iversas. É um exemplo de como o hermetismo local gera deuses locais. E o que são os flagícios que se impunham os penitentes do Cariri, mesmo nas cidades mais populosas, como o Crato, Juazeiro, Barbalha, ainda em pleno século XX, senão a repetição de cenas da Idade Média transplantadas para um meio medieval, o Nordeste brasileiro? 

Temos aí, à perfeição, a comprovação do conceito marxista do fenômeno religioso como a consciência primária que o homem tem de si mesmo quando ainda não atingiu o autodomínio, fraco e impotente em face de tudo o que rodeia. O meio natural era tremendamente hostil ao homem pobre, com as secas periódicas e suas calamidades, não dispondo ele de recursos para livrar-se delas. O meio social o esmagava: o grande proprietário rural todo-poderoso decidia do seu destino terrestre. Mas a própria condição humana conservava a esperança num futuro de felicidade e bem-estar. "A impotência das classes exploradas, na luta contra seus exploradores — diz Lênin — produz também, inevitavelmente, a crença em uma vida melhor..." 

O sonho do pobre numa vida melhor se transferia para o além túmulo... Enfim, a mesma trajetória seguida através de milênios pelos povos que se encontravam no mesmo estágio de civilização. Nas condições locais do Cariri, as novas seitas deviam conter muitos atributos concretos, tais como o endeusamento de um boi, animal inacessível para as populações reduzidas à miséria, embora comum entre os grandes criadores. 

Mas os grandes criadores, estes não partilhavam dos mesmos sentimentos religiosos dos "fanáticos" que acompanhavam o Beato Lourenço e seu zebu milagreiro. Desde tempos imemoriais os homens erigem em deuses precisamente os elementos que lhes são úteis, como o Sol, as águas, certos animais. 

Entre populações que viviam na maior pobreza, no mais extremo atraso, os seus deuses não podiam ostentar a pompa dos rituais católicos exibidos numa linguagem que lhes era estranha. Procuravam traduzir seus sentimentos religiosos em ritos mais concordes com a sua própria vida primitiva. 

A vida era de sofrimentos, de fome, de doenças? Flagelavam-se. Se os sofrimentos, a fome, as doenças eram mandados por Deus, só poderiam agradar a Deus aumentando seus padecimentos. Seriam então mais dignos do reino dos céus. Para seus corpos, enrijados em antigos tormentos, os flagícios pouco mais significavam... 

Haviam atingido aquele grau de degradação a que se referia Marx, tratando das comunidades rurais da Índia sob o domínio britânico, as quais haviam restringido "o intelecto humano aos limites mais estreitos, convertendo-o num instrumento submisso da superstição, submetendo-o à escravidão de regras tradicionais e privando-o de toda grandeza e de toda iniciativa histórica". 

Chegavam assim a "um culto grosseiro à natureza, cuja degradação salta à vista no fato de que o homem, o soberano da natureza, cai de joelhos adorando o macaco Hanuman e a vaca Sabbala". (K. Marx, F. Engels, Obras escolhidas, Rio, 1961, págs. 290-291) 

A vida isolada que viviam, perdidos nos ermos, incutia-lhes um individualismo estreito até mesmo no martírio. Não tinham senso de unidade, a não ser ocasionalmente, em momentos passageiros. A propriedade latifundiária semi-feudal os havia dispersado. Seu único elemento congregador só podiam ser as seitas semi-bárbaras que abraçavam, como uma réplica, à religião dominante. 

Esta, a serviço das classes dominantes, constituía um fator dispersivo, pois o que mais temiam os senhores de terras eram possíveis ajuntamentos fora de seu estreito controle. Já em 1903, um jornalista perspicaz e conhecedor profundo do Cariri aconselhava o Governo a mandar "proibir esses ajuntamentos, que se estão fazendo agora, pelos sertões abrasados e famintos... Faz muito mal — acrescentava — em tempo de miséria e anarquia, congregar, longe das vistas das autoridades, multidões embrutecidas e fanatizá-las com milagres de salvação e coisas da vida eterna...". (J. Brígido, cit. por A. Montenegro, História do fanatismo. pag.7) 

O perigo consistia, pois, em juntá-las, excitar-lhes o ânimo sob qualquer pretexto, quebrando assim a "ordem natural" gerada pelo latifúndio semi-feudalista. Ademais, as promessas de salvação extraterrena poderiam muito bem levá-las a lutar pela salvação aqui mesmo. Canudos ainda estava na lembrança de todos... 

Por isso, toda tentativa de arregimentação das popula­ções rurais sempre foi brutalmente combatida, a ferro e fogo, pelos dominadores, fosse na Colônia, no Império ou na República. Os escravos fugidos que formavam quilombos, os místicos dos sacrifícios sangrentos de Pedra Bonita, os muckers da colônia alemã do Sul, os adeptos do Conselheiro, os homens do Contestado e do Caldeirão, sem contar os ajuntamentos menores, múltiplos, por todo o Brasil, foram atacados impiedosamente e destroçados até as raízes. 

Bastava que revelassem o menor indício de tentativa de romper o estado de coisas reinante no campo: o monopólio da terra, as relações semifeudais de produção, o domínio absoluto do grande proprietário rural. Quando as classes dirigentes se convenceram — depois de um estremecimento de pavor — de que em Juazeiro seria possível desviar, no interesse dos coronéis do Cariri e de objetivos políticos imediatistas, as nascentes e impetuosas aspira­ções de libertação das massas rurais exploradas, deixaram Juazeiro em paz: entregue aos cuidados do Padre Cícero e de Floro Bartolomeu da Costa. Cada um no seu papel: o líder espiritual completava o líder político. Juazeiro podia ser um foco de heresia; mas o perigo não estava nisso e sim na possibilidade de vir a ser uma ameaça à ordem estabelecida no terreno polí­tico, econômico, e social.

O "Fanatismo", Elemento de Luta

Enquanto, em face de todo um sistema de exploração e opressão, entre as diferentes reações das massas rurais despossuídas, o cangaço é desde o início um elemento ativo, o misticismo surge como um elemento passivo. Manifesta-se sem fins agressivos. 

Mas, formado o grupa de místicos em torno de um beato, monge ou conselheiro, sua tendência é adotar métodos de ação que, gradativamente, vão entrando em choque com os da comunidade sertaneja. 

Colocado à parte, funciona como catalisador ou pólo de atra­ ção no meio ambiente. Em geral, desde seu aparecimento ostensivo, esse grupo passa a ser hostilizado pela religião dominante, a religião católica. 

No caso de Antônio Conselheiro, em Canudos, partiu da Igreja o primeiro brado de alerta contra o "chefe fanático" que percorria, desde a década de 70 do século XIX, os sertões. do Nordeste, na sua "romaria ininterrupta de vinte anos". 

Quatorze anos antes de deflagar a Campanha de Canudos, já em 1882, o arcebispo da Bahia expedira circular aos vigários do interior, alertando-os contra as atividades do Conselheiro, que estaria "perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares", e proibindo terminantemente que os paroquianos se reunissem para ouvir suas prédicas. ( Os sertões, pág. 174. )

No ano que antecede a luta armada contra Canudos, é enviada ao lugarejo uma missão religiosa para tentar dissolver o ajuntamento, que já era bem numeroso. No caso do Contestado, o chefe espiritual também entra em choque com as autoridades da Igreja Católica e se recusa a cumprir seus ritos, enquanto "os ministros da Igreja [...], frontalmente e em seu próprio meio faziam desassombrado combate a certas idéias propagadas pelos taumaturgos". (O. R. Cabral, João Maria, interpretação da campanha ao contestado, Sáo Paulo, 1960, págs. 18 e 197)

Em Juazeiro, o Padre Cícero é suspenso de ordens pela Igreja e durante toda a sua longa vida jamais se reconciliou inteiramente com ela, pregando a seu modo a doutrina católica. O Beato Lourenço, do Caldeirão, antes de ser atacado pelas forças repressivas, era objeto de denúncia por parte do clero do Cariri junto às autoridades civis e militares. 

A Igreja Católica desempenha, assim, o papel de polícia ideológica no meio rural, antecipando-se às forças repressivas. Prepara-lhes o caminho. Percebe, instintivamente, que a "heresia", o desvio das normas de conduta estabelecida pela religião dominante — a religião das classes dominantes — poderá evoluir até a rebeldia contra a ordem constituída. Uma vez repelida pelos "crentes" ou "fanáticos" sua ação pacificadora, dá o brado de alarma. 

Deve ser este o primeiro abalo que sofrem os crentes ou fanáticos, depois de adotarem sua atitude de protesto inconsciente, e até então passivo, contra a ordem de coisas existente. E deve ser também o ponto de partida, a fase de transição, da atitude passiva para a atitude ativa. O momento da consciência de uma posição de revolta. A transição não se opera rápida e imediatamente. 

ajuntamento de insubmissos vacila, a princípio, admite a intervenção das autoridades eclesiásticas, mas até certo limite, pois o rompimento já houve com a própria formação do ajuntamento de místicos. Refeito do primeiro choque, reage. Foi o que aconteceu em Canudos. 

A missão religiosa encabeçada por Frei Monte Marciano é suspensa, não pela intervenção do chefe espiritual local, Antônio Conselheiro, que de início tenta conciliar seus próprios seguidores. Quem intervém ante a crise surgida pela reação negativa dos fanáticos a um sermão do sacerdote católico é um chefe "leigo", João Abade. 

É este quem arregimenta os conselheiristas e os conduz à casa em que se abrigam os clérigos, reclamando sua saída do povoado. A missão é suspensa e os sacerdotes católicos expulsos. Em Juazeiro não foi diferente, no essencial. O heresiarca era um padre, um sacerdote católico. É interpelado, pressionado de todos os modos por seus superiores hierárquicos para que retroceda. 

Intransigente, enviam-no, como último recurso, à Santa Sé, para explicar-se perante o Papa. O resultado é contraproducente. Mas esse período de pressão, interpelação, inquéritos eclesiásticos, corresponde, aqui, ao da missão religiosa em Canudos: à admissão da intromissão externa.

Também em Juazeiro os "afilhados" do Padre Cícero ficam em guarda, assumem um estado de ânimo de desafio aberto à religião dominante, ao lado de seu "padrinho". Não arredam pé de Juazeiro até a sua volta, e então seu prestígio, aumenta consideravelmente. 

Está preparada, assim, a passagem à segunda fase, a fase ativa da heresia. Em Canudos, esta fase corresponde a um acréscimo da autoridade de João Abade como chefe civil. Já o era, uma espécie de prefeito, "comandante de rua", como ficou conhecido entre os habitantes de Canudos. 

Mas daí por diante é ele o chefe leigo de fato, inconteste, é quem decide na prática os destinos daquela coletividade, enquanto o Conselheiro ficará como simples chefe espiritual, quase simbólico. Sua importância é mínima para o caso de deflagrar uma luta armada. E nesta, como veremos, ele se apaga.

Sem se conhecer os detalhes da intromissão da Igreja Católica no Contestado, sabe-se que malogrou também, e a se­guir no primeiro assalto das tropas do Governo contra os "fanáticos", em 22 de outubro de 1912, no Irani, morre o "monge" José Maria. 

Mas, não faria nenhuma falta, pois a luta prossegue e é comandada por chefes civis, entre os quais se destacam os Doze Pares de França, chefes leigos, talvez uma espécie de colegiado dos mais prestigiosos dirigentes da comunidade. 

O monge fica apenas como um símbolo, uma entidade quase mitológica, tanto assim que ninguém consegue distinguir em certos aspectos a individualidade dos João Maria ou a destes e de José Maria, sacrificado ao iniciar-se luta armada. 

A confusão, neste ponto, é geral. O fato irrefutável é que o monge não marca com a sua presença e a sua atuação bélica o cenário da luta armada, não tem qualquer papel importante nesta luta, e no entanto, ela se trava por três longos anos, empenhando o Governo federal fortes contingentes do Exército. 

Em Juazeiro, o marco divisório entre o período ativo e o passivo da insubmissão não ocorre imediatamente depois do regresso do Padre Cícero de sua viagem a Roma. Há como que uma pausa para meditação do próprio sacerdote, certa vacilação de sua parte em relação à Igreja Católica e da Igreja Cató­lica em relação a ele. 

O rompimento definitivo ocorre quando, depois que é suspenso de ordens, deflagra a primeira luta armada em que se empenham alguns romeiros, a luta pela posse da suposta mina de cobre do Coxa, que o Padre havia comprado e estava em litígio.

Naturalmente, quem comanda os jagun­ ços, para assinalar à bala a posse da área ocupada pela mina, não é o Padre. É um representante, seu, Floro Bartolomeu da Costa. Depois da luta, o nome de Floro projeta-se com ressonância entre os romeiros do sacerdote fazedor de milagres. 

A partir desse momento, o Padre se obscurece como chefe do povo e projeta-se Floro Bartolomeu. O Padre, daí por diante, teria o papel de guia espiritual, mas o comando efetivo dos romeiros se transfere a Floro Bartolomeu. É ele o chefe civil reconhecido. Ao se prepararem os assaltos armados das tropas do Governo contra qualquer desses redutos — Canudos, Juazeiro, o Contestado e, mais tarde, o Caldeirão — a primeira tentativa de justificar a agressão é alegar que se trata de "fanatismo", quer dizer, homens que se desligaram da sociedade civil por terem abandonado a ideologia religiosa das classes dominantes. 

É o primeiro pretexto para o assalto armado. Atribuem, depois, aos "fanáticos" intuitos agressivos que eles jamais tiveram. E desencadeiam a luta contra eles. Não tentam isolá- los, o que militarmente seria possível, não tentam criar condi-­ ções para sua "recuperação". 

Vão-lhes ao encontro com todas "as armas, como se se tratasse de autênticos inimigos de toda a Nação. No caso do Contestado, um oficial das tropas governistas, Dermeval Peixoto, reconheceria, logo ao início das hostilidades: "o fanatismo estava suplantado pelo banditismo". (O. R. Cabral, ob. cit., pág. 235. 58) 

Como os fanáticos tinham reagido à agressão já não havia necessidade do primeiro pretexto: fanatismo. Este servira apenas como justificativa para abrir a luta. A rea­ção armada não podia ser de simples fanáticos — era de bandidos! 

A verdade é que, inicialmente, o misticismo uniu-os, a todos eles, tanto em Canudos como em Juazeiro, no Contestado como no Caldeirão. Mas o "fanatismo" era o elemento necessário da solidariedade grupal à reação contra a ordem dominante. 

No nível cultural em que viviam, não só mergulhados no alfabetismo como ignorando seu próprio País, submetidos aos senhores das terras e às forças cegas da natureza, o "fanatismo", o misticismo mais grosseiro era a sua ideologia. 

Em ensinamentos bíblicos deturpados, adaptados a sua realidade encontravam os "princípios" que deveriam guiá- los na luta por objetivos que eles mesmos não sabiam distinguir, obscuros, confusos, e que só iriam tornar-se claros na evolução da própria luta, que os ajudava também a evoluir intelectualmente. 

Na derradeira das grandes lutas desse tipo, no Contestado, ponto culminante do ciclo das lutas sertanejas nesse período, já se encontram indícios de compreensão, entre os "fanáticos", de que estava em causa a posse da terra. Este objetivo não é claro em Canudos; em Juazeiro é obscurecido pela ação, contrária aos interesses das massas rurais despossuídas, de chefes identificados com as classes dominantes, como o Padre Cícero e Floro Bartolomeu.

Mas o importante, em todos os casos, é assinalar-se que o misticismo, modalidade de reação dos pobres do campo contra a tirania econômica social e política dos potentados locais, inicialmente uma reação passiva, só o é enquanto o núcleo rebelde é pequeno, restrito ou não consegue expandir-se. Desde que ganha influência sobre massas consideráveis da população, o "fanatismo" desempenha um papel ativo, impulsionador da luta emancipadora local. 

Distinção Necessária


É necessário fazer-se aqui distinção entre fenômenos que algumas vezes se confundem: o cangaceiro, o capanga (jagunço ou cabra) e o "fanático". 

Nem sempre é fácil semelhante distinção e nem sempre tem sido feita. Em Os Sertões, por exemplo, Euclides da Cunha, não estabelece diferença entre jagunços e cangaceiros, e entre estes e o "fanático". 

Talvez porque a campanha de Canudos englobasse-os a todos. O mesmo se pode dizer em rela­ção a Juazeiro, ao tempo do Padre Cícero. "Os jagunços do Conselheiro", "os jagunços do Padre Cícero" — é como são conhecidos popularmente todos aqueles que pegavam em armas para a defesa de Canudos e de Juazeiro. 

Não importava que fossem antigos cangaceiros, antigos capangas, ou cangaceiros e capangas atuantes ou ainda simplesmente místicos que jamais tivessem participado de um bando de cangaceiros ou fossem capangas de qualquer senhor. 

O termo jagunço, embora sinônimo de capanga, tem assim um sentido mais genérico, enquanto o de capanga é mais restrito. O capanga pode ter sido cangaceiro, vice-versa, como qualquer deles pode tornar-se adepto de um conselheiro ou monge, e então é o "fanático". 

Mas, do ponto de vista social, há uma diferença flagrante sobretudo entre capanga e cangaceiro, identificando-se muito mais o cangaceiro com o "fanático". 

Tudo indica que o capanga entre os três elementos, foi o primeiro a surgir em nossa história. Nos começos das colonização, os donos de sesmarias e, depois, os latifundiários, na medida em que devassavam o interior e tratavam de estabelecer o seu domínio econômico, tiveram que armar suas fazendas para afugentar os índios que as assediavam. 

O conceito de propriedade, entre estes, era o comunitário primitivo, que os levava a abater os gados dos colonizadores e dos sertanistas, ou a pilhar os frutos de suas plantações. Em represália aos ataques dos indígenas, os fazendeiros armavam homens, às dezenas, para defender suas propriedades, cujos limites se estendiam por léguas e léguas, em plenos sertões quase virgens. 

Surgiram também algumas questões de divisas entre as sesmarias ou as fazendas. E, então, os encarregados da sua guarda, que tinham antes um papel puramente defensivo, passam a desempenhar muitas vezes funções ofensivas, atacando as propriedades vizinhas. 

É esta a mais comum das origens das conhecidas lutas entre famílias, que se prolongam até o nosso sé­culo. Quando a indiada é expulsa para regiões mais distantes e já existe alguma segurança na penetração dos sertões, aparece outro elemento conflitante com os grandes proprietários: o posseiro.

Este invade as terras das sesmarias, já que não tem terra, para cultivá-las, e surgem litígios que chegam a choques de relativa seriedade. Assim, o latifúndio gera lutas desde suas origens. Isolados, num mundo à parte dos povoados litorâneos, sem poder contar com a ajuda do Estado, os grandes fazendeiros são a classe dominante naqueles sertões não só representativa mas diretamente, tornam-se autônomos, autoridades eles mesmos, absolutas, na sua zona. 

Formam autênticos exércitos de guarda privados, recrutados entre os sem-terra ou acolhendo criminosos comuns, que encontram refúgio na grande fazenda. "...

Houve entre os domínios [fazendas e engenhos] uma espécie de estado de guerra permanente e generalizado [... ] expresso num regime de mútua pilhagem de gados e alimárias, de incêndio e destruição de instalações, de aliciamento de escravos e couto de negros e facínoras, fugidos à polícia e às justiças. Eram guerrilhas inter-feudais... No Norte, este regime domina o sertão durante todo o período colonial e estende-se por todo o Império". (1 Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, Rio, 1949, pág. 223). 

Podemos acrescentar: vem até muito longe na República, havendo remanescentes seus até em nossos dias... Mais adiante veremos, na parte referente a Juazeiro, como os chefes políticos do Cariri conseguiam, ainda nos começos deste século, arregimentar facilmente um milhar de homens para suas disputas pessoais. 

Mais ou menos na mesma época, os coronéis igualmente poderosos dos sertões da Bahia faziam outro tanto. Nas suas lutas recíprocas, Horácio de Matos, Franklin Albuquerque, Militão, Marcionílio, Douca Medrado e tantos outros nomes famosos até 1930, punham em armas milhares de capangas. 

Em 1918, o coronel Franklin é atacado, em seu domínio de Pilão Arcado, por um antagonista, que levava contra ele nada menos de 200 capangas armados até os dentes. E, no entanto, os repele. (Wilson Lins, O médio São Francisco, Salvador, 1952, pág. 90). 

Já antes, ao ver-se acossado pelos adversários, "tratou de comprar armas e contratar homens para os seus serviços..." "estava organizando um exército... " (Idem, pág. 83.)

Mais tarde, contratado pelo Governo para combater a Coluna Prestes, o coronel Franklin "num abrir e fechar de olhos mobiliza oitocentos homens". (4 Idem, pág. 96.) 

Num conflito político irrompido no interior da Bahia, na segunda década do século atual, entre os coronéis Militão (Rodrigues Coelho) e Horácio de Matos, estes e seus respectivos aliados (inclusive Franklin e Douca Medrado) enfren­tam-se durante cinco meses com "mais de 600 homens". (Américo Chagas, O chefe Horácio de Matos. São Paulo, 1961, pág. 64). 

É uma luta que abrange vários municípios, cidades e vilas, desde Pilão Arcado e Barra do Mendes até Lagoa, Morro do Chapéu, Sanharó, São Tomé e Catuaba. Outras vezes, os coronéis ferrenhos antagonistas de ontem, se aliavam numa mesma frente de batalha, como quando se tratou de combater a Coluna Prestes ou enfrentar o movimento revolucionário de 30. 

Aí, os interesses de classe prevalecem sobre as rixas locais. Nessa "briga de brancos" o Governo não se metia. Os assuntos se decidiam entre eles mesmos, pelo seus métodos costumeiros, eliminando-se mutuamente os adversários. Quando, alguma vez, a autoridade estadual intervém, é para obter um arranjo político, respeitando-lhes em absoluto o poderio armado. 

Assim, por exemplo, numa disputa havida nas Lavras Diamantinas, em 1919/1920, o coronel Horácio de Matos, dono de vastos garimpos, mobiliza uns mil homens, ocupando a cidade de Lençóis. A polícia não se intromete. A autoridade suprema é Horácio de Matos. Na mesma época, outros coronéis, entre eles Anfilófio (Castelo Branco), "chefe" de Remanso, ameaçam ocupar a cidade de Juazeiro (Bahia) com mais de 1 000 homens. 

Marcionílio (Sousa) movimenta-se em direção à cidade de Nazaré com mais de 500 capangas seus, enquanto Franklin Albuquerque não teria menos forças à sua disposição. O Governo do Estado intervém, mas para apaziguar os ânimos e alcançar um modus vivendi entre os potentados locais. 

Faz-se o acordo, mas os chefetes não são desarmados nem seus contingentes de "cabras" desmobilizados. Mantêm intatos seus arsenais, mesmo depois de ter sido decretada a intervenção federal na Bahia. Ao emissário do Governo federal, Horácio de Matos impõe condições para a "pacificação" na zona. Entre outras (textual): "O coronel Horácio de Matos não entregará as armas nem as munições..." E ainda se atribui um prêmio político: "Serão reservadas duas vagas de deputado estadual e uma de deputado federal para o coronel Horácio de Matos eleger (sic!) seus candidatos". (6 Idem, pág. 104)

O escândalo não terminaria aí. Em março de 1920, Horácio de Matos é nomeado pelo Governo do Estado para o cargo de delegado regional de polícia na zona da Bahia que constitui seu tradicional feudo, compreendendo nada menos de 12 municípios! 

Desde Lavras Diamantinas até o São Francisco é ele senhor absoluto. Outro famanado coronel do Nordeste, José Pereira, considerado antes de 30 o maior chefe de jagunços de todo o sertão, chega a concentrar em suas fazendas uma força de milhares de homens. Princesa, seu reduto político, transformara-se numa fortaleza inexpugnável às forças comuns de polícia. 

E diante de seus muros defensivos vacilavam as próprias tropas regulares. Aí está o capanga e sua sede — a grande propriedade territorial; o seu comando: o chefete local, o coronel fazendeiro ou o dono de garimpos. Esses exércitos mobilizados a serviço dos coronéis do interior não são de cangaceiros, são de capangas ou cabras. Homens a soldo, pistoleiros, matadores profissionais. 

Não importa que no intervalo entre um assalto à propriedade do vizinho e a execução de um crime de morte de algum desafeto do coronel, o capanga esteja vaquejando o gado ou plantando um roçado. Fazia-o comumente. Sua dependência econômica e social em relação ao grande proprietário, o avassalamento da economia seminatural, a falta de terras para a pequena propriedade, tornavam-no um semi-servo que deveria obedecer, sem discutir, as ordens do patrão, cumprir todas as suas vontades, executar os crimes mais hediondos por ele ordenados. 

Esse assalariado do crime podia tornar-se amanhã um cangaceiro, ingressar num bando para praticar assaltos a fazendas, pilhagem de armazéns de víveres, aprisionar ricos proprietários e exigir-lhes resgates. Mas esse bando é composto de homens que conquistaram autonomia, ainda que relativa, em face do latifúndio. 

O cangaceiro não é um assalariado para a prática de crimes. Pratica-os por sua conta e risco. Mas o que o distingue sobretudo é ser um rebelde contra a ordem dominante que esmaga os pobres do campo. Ele não se submete aos trabalhos forçados da fazenda ou do engenho. 

Quanto à origem social, o capanga e o cangaceiro não se distinguem. São homens de ascendência humilde, em geral trabalhadores rurais oprimidos, direta ou indiretamente, pelo latifúndio semifeudal, sofrendo-lhe o peso das injustiças sociais. 

Facilmente pode transformar-se um no outro. É maior o número de capangas que se tornam cangaceiros, do que cangaceiros que se tornam capangas. Mas tanto um como o outro pertencem às camadas mais pobres da população e não existe uma barreira infranqueável entre eles. 

A transição é fácil. O exemplar mais famoso entre os cangaceiros é Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, descendente de uma morigerada família de pequenos criadores e cultivadores do município de Serra Talhada, Estado de Pernambuco. 

A exemplo do que aconteceu com o Conselheiro, com Antônio Silvino e tantos outros, famílias poderosas locais, os Nogueiras e Saturninos, perseguem a sua família. Um dia, matam-lhe uma cabra. Os irmãos Ferreira vingam-se, assassinando um desafeto. Para escapar às malhas de uma justiça que será contra eles, fogem para o Estado vizinho de Alagoas. 

Aí mesmo, em 1918 ou 1919 o velho Ferreira é assassinado a mando das mesmas famílias que já o haviam perseguido em Pernambuco. Os filhos, Virgulino, Antônio, Ezequiel e Livino, — que morreriam todos em combate com a polícia — ingressaram no cangaço, juntando-se Virgulino ao bando de Sebastião Pereira, Sinhô, então, dos cangaceiros mais famosos do Nordeste. 

Seu objetivo confesso é vingar a morte do pai. Este motivo aparente, no entanto, tem a função de gota de água que faz transbordar o copo. Aí começa a peregrinação de vinte anos daquele que seria depois conhecido como o Rei do Cangaço e Governador do Sertão. Vinte anos de assassínios, de assaltos a propriedades de grandes fazendeiros, de ataques a povoados, vilas e até cidades, inclusive a audaciosa e malograda tentativa de dominar a segunda cidade do Rio Grande do Norte, Mossoró, bem próxima ao litoral e junto à via férrea, no ano de 1927, e a tomada das cidades de Sousa, na Paraíba, e Limoeiro, no Ceará. 

Que espécie de homens compunham o bando? São todos, invariavelmente, gente da mais pobre do interior do Brasil, homens do campo que não têm terra, não podem ter gado, não têm sequer trabalho garantido, Xavier de Oliveira diz que faziam parte do grupo de Lampião "antigos trabalhadores de obras federais que haviam sido suspensas". (A. Montenegro, História do cangaceirismo, pág. 98). 

Quer dizer, haviam-se engajado nas chamadas obras contra as secas durante uma das calamidades periódicas. Chegadas as chuvas, no ano seguinte, em geral as obras não prosseguiam, pois tinham mais por finalidade reter ali mão-de-obra excedente para o latifúndio. Uma vez que este não podia absorver toda a mão-de-obra disponível, os desocupados procuravam outro meio de vida, nem que fossem os assaltos armados, entrando para um grupo de cangaceiros. 

Um dos perseguidores de Lampião, e que certamente possuía boas informações sobre a origem de seus homens, informa que "os celerados tinham os claros preenchidos pelos cangaceiros mansos, que eram considerados vaqueiros ou moradores" dos fazendeiros. (O. Gueiros, ob. cit., pág. 32). 

São, portanto, os jagunços ou capangas. E conta que tendo perguntado certa vez a Lampião por que não dera combate à Coluna Prestes, conforme se havia comprometido com os chefes de Juazeiro, embora a visse passar perto de uma serra onde se ocultava o bando, o famoso cangaceiro respondeu: "Ah! menino. Isto aqui é meio de vida. Se eu fosse atirar em todos os macacos que eu vejo, já teria desaparecido". (R. Nonato, Lampião, em Mossoró, Rio, 1955, pág. 266).

Nem mais nem menos: para os componentes do bando, o cangaço é modalidade de ganhar a vida, como é possível ganhá-la num ambiente onde impera a ferocidade do coronel, com toda a sua aparente mansidão, o seu falso humanismo, o seu apregoado paternalismo cristão. Pois, "quando às vezes comunicavam ao coronel Manuel Inácio, de Pernambuco, que seus cabras estavam se matando uns aos outros, como aconteceu no sítio Serecé [. . .] ele dizia a gaguejar: "Não tem nada não, é isso mesmo, as cobras é para se engolirem umas às outras". (Ulisses Lins, Um sertanejo e o sertão, Rio, 1957, pág. 37).

Se o coronel tratava assim a seus cabras, se a exploração no eito é brutal, se a emigração só lhes era facilitada nos anos de crise aguda, com o advento das calamidades climáticas, não era de admirar que esses homens cheios de energia fossem parar nos bandos de cangaço e os considerassem como um meio de vida perfeitamente normal. 

O famigerado cangaceiro Jararaca, do bando de Lampião, ferido e preso no assalto à cidade de Mossoró, declara no seu depoimento que fora soldado de polícia, mas que exercia então a "profissão de cangaceiro". (R. Nonato, ob. cit., pág. 266). 

Mais do que meio de vida, meio de prover a subsistência, o cangaceirismo prolifera no Nordeste sobretudo nas épocas das grandes secas. Formando-se então os bandos, em geral, pequenos, de 3 a 10 homens no máximo. A maioria deles desaparece, uma vez passada a calamidade climática. 

Alguns remanescem e prolongam sua existência. Antônio Silvino, percorreu os sertões do Nordeste durante 18 anos, de 1896 a 1914. Sucede-lhe, como num autêntico reinado, Virgulino Lampião, que bate todos os recordes de assaltos, em vinte anos de cangaço, devassando o Nordeste com uma rapidez incrível, de um a outro Estado, e constituindo o grupo mais numeroso de todos. 

É verdade que seus efetivos variam sempre, segundo as circunstâncias, até mesmo as políticas. Permitia que seus cangaceiros "dessem baixa" quando quisessem, embora advertindo-os de que seriam presa fácil da polícia, e muitos o eram realmente, pagando não raro com a vida a temeridade de ter abandonado o cangaço. 

Assim aconteceu com Jararaca (José Leite Santana), baleado e preso no dia seguinte ao assalto malogrado à cidade de Mossoró. Depois de prestar depoimento minucioso, é levado para o cemitério e aí assassinado pela polícia. Tinha 26 anos. A mesma sorte caberia a Mormaço (19 anos), que fora da Polícia Militar de Pernambuco e participara das perseguições à Coluna Prestes e, também, dos assédios a Lampião. Depois do frustrado ataque a Juazeiro,  resolve abandonar o grupo, prestando vários e pormenorizados depoimentos sobre suas atividades. "Juntamente com Bronzeado e mais dois presos da Justiça que se encontravam na cadeia de Mossoró, foi levado para a estrada de Natal e morto com os outros. (12 Idem, ibidem). 

Certa vez, perseguido o bando de Silvino por uma volante da polícia, são-lhe aprisionados 11 cangaceiros, — ou 18, segundo Rodrigues de Carvalho — e todos sangrados pela tropa pernambucana. (Ulisses Lins, ob. cit., pág. 341 e Rodrigues de Carvalho, Serrote preto, Rio, 1961, pág. 370). 

Havia como que o propósito de fechar os caminhos à possibilidade de recuperação dos bandoleiros. Como que se tentava intimidar os cangaceiros de forma a impedir sua deserção do bando. Mas as flutuações nos efetivos dos grupos continuavam a depender principalmente das épocas de fome, sem excluir o fator prestígio do chefe cangaceiro. 

Assim, quando em 1926 Lampião visita o Padre Cícero, em Juazeiro, é provido de grande quantidade de armas, munições e até mesmo fardas, seu bando crescendo logo em seguida. Um de seus homens, Gato Bravo, capturado depois, informa: "Saímos de Juazeiro com 22 homens e ao chegarmos a Pernambuco tí­nhamos mais de 100". (Melquíades da Rocha, Bandoleiro das caatingas, Rio, s. d., pág. 79 R. Nonato, ob. cit., pág. 269). No ano seguinte, ao atacar a cidade de Mossoró, Lampião e seu bando perfazem 53 homens. (R. Nonato, ob. cit., pág. 269.)

Vários pequenos grupos juntavam-se eventualmente a Lampião ou atuavam em íntima ligação com ele. Um desses foi o de Massilon, que, segundo todos os depoimentos, exerceu influência decisiva sobre o Rei do Cangaço para o assalto a Mossoró. Outro grupo entrosado com o de Lampião era o de Corisco (o Diabo Louro) que, parece, o integrava, mas atuava separadamente, por tática. O grupo de Corisco não seria surpreendido no esconderijo da fazenda Angicos (Sergipe), quando Lampião e mais uma dezena de cangaceiros foram mortos pela polícia militar de Alagoas (28-7-1938). No entanto, poucos dias depois, ao ter conhecimento da tragédia que acabara com o "governador do Sertão", Corisco não vacila um instan­te: vai com seu bando ao lugar fatídico e, à exceção de um velho, que deixa "para contar a história", mata toda a família do vaqueiro que tomava conta da fazenda. Inclusive duas mulheres — "para vingar a morte de Maria Bonita e Enedina" — teria dito, pois haviam denunciado à polícia o esconderijo de Lampião. 

Vale salientar aqui este fato de real importância: o cangaceirismo se tornara um fenômeno tão significativamente social que não foi pequeno o número de mulheres que participaram de suas ações na fase do apogeu. Das mulheres, a mais famosa é Maria Bonita, mas se contam, entre outras, Enedina, abatida juntamente com ela, Inacinha, mulher de Gato, Sebastiana, mulher de Moita Brava e Dada, mulher de Corisco. Em 1935, quando Lampião penetra na localidade de Forquilha, vem "acompanhado de oito cangaceiros e três mulheres". (M. da Rocha, ob. cit., pág. 105.). 

Algumas características de Lampião são mais ou menos comuns a outros cangaceiros e chefes de bando. Desde o início de suas atividades, o grupo ataca de preferência grandes propriedades, aquelas onde sabe que poderá obter melhores proventos. Quando o coronel não mora na fazenda e é, por exemplo, um comerciante na cidade guarnecida onde Lampião não pode penetrar, reclama este sua presença, para conversarem sobre dinheiro. Exige-lhe então o cangaceiro determinada quantia, mediante a condição, muitas vezes expressa em cartas, das quais se conhecem vários exemplares, de que sua propriedade será poupada e nada sofrerá, mesmo por parte de "outros cangaceiros". 

A carta, um simples bilhete, é uma espécie de salvo-conduto para o fazendeiro. Em geral, o coronel atendia-o, pois sabia antecipadamente que, do contrário, sua propriedade ficaria visada pelos cangaceiros e poderia ser depredada. Outras vezes, Lampião exigia abrigo inviolável em fazendas estrategicamente situadas. Estas se tornavam então seu pouso habitual, lugar onde se ocultava e onde descansava semanas ou meses, para refazer as forças das longas caminhadas pelos sertões, desde o Ceará até a Bahia. 

A fazenda-coito é também, algumas vezes, o quartel-general do bando, o lugar onde ele se reabastece de armas e munições compradas por intermédio do fazendeiro — coiteiro — ou de seus empregados. É sabido que Lampião foi sempre otimamente provido de material bélico, inclusive fuzis, privativos das forças armadas. É sabido também que em Juazeiro, em 1926, os chefes locais lhe forneceram abundante armamento para combater a Coluna Prestes. 

Mas não era só esta a origem das armas modernas conseguidas pelos cangaceiros. Eles as compravam normalmente não só através dos fazendeiros amigos, dos coiteiros, como de alguns de seus perseguidores. Numa entrevista que manteve Lampião com um dos grandes fazendeiros de Alagoas, coronel Joaquim Resende, de Pão de Açúcar, disse-lhe o chefe cangaceiro que, quanto às forças estaduais que o perseguiam, ele "se arranjava a seu gosto", "fazendo nessa ocasião graves acusações a vários oficiais que andavam em sua perseguição". (Idem, ob. cit., pág. 120. 6).

Muito diversa da ação dos cangaceiros é a dos fanáticos, em autênticos movimentos de massa, como o foram Canudos, o Contestado e, em proporções bem menores, mas de suma importância por certas particularidades, o Caldeirão do Beato Lourenço, na chapada do Araripe. Em todos estes casos temos uma característica fundamental comum: necessidade de ocupar uma determinada, área de terra. Isto, por si só, já é motivo de profundas inquietações por parte dos grandes proprietários, porque, no mínimo, seria exemplo perigoso a propagar-se, caso subsistisse. 

Entretanto, o mais sério é que, ao contrário do cangaço, redutos como esses criam raízes entre as massas pobres do campo, atraindo-as em proporções crescentes, pondo em xeque as fazendas das vizinhanças e, portanto, a própria ordem estabelecida. 

Não significa isto que as massas rurais congregadas em Canudos, no Contestado ou no Caldeirão tivessem consciência da necessidade de por fim às relações semifeudais de produção e de estabelecer relações de novo tipo, de tipo capitalista, por exemplo. Conhecendo-se o nível de evolução em que se encontram ainda hoje as atrasadas massas camponesas do Nor­deste (como em outras regiões), pode-se avaliar o que seria a sua consciência nos fins do século passado e começos deste século, quando o capitalismo estava muitíssimo menos evoluí­do, a penetração capitalista na agricultura era mínima, no Nordeste quase nula, e, portanto, muito menor a influência da cidade sobre o campo. 

As populações rurais viviam quase completamente isoladas das influências progressistas da cidade, mergulhadas no obscurantismo semifeudal. Suas lutas — em Canudos, no Contestado, no Caldeirão — tinham um caráter social progressista, na medida em que traduziam aspirações de libertar-se da terrível exploração do latifúndio, que tudo condenava à estagnação. 

Tentavam fugir ao seu domínio concentrando-se em grandes aglomerações. Uma vez vítimas da agressão, pegavam em armas e resistiam até a morte. Enquanto conseguiam sobreviver, esses movimentos de pobres do campo se organizavam, espontaneamente, em formas de trabalho cooperativo. 

Em Canudos, uma parte do produto do trabalho destinava-se à "companhia", isto é, à coletividade formada em torno do Conselheiro. No Caldeirão do Beato Lourenço vigorava o mesmo regime de distribuição do produto do trabalho. Corresponde esse fenômeno a uma etapa da luta pela posse da terra no Brasil? Influiria nisso a tradição indígena? 

Devia influir mais ainda o estágio em que se encontrava o desenvolvimento da própria sociedade sertaneja, atrasada no sentido capitalista, ainda com fortes remanescentes de feudalismo no campo. Numa zona desprovida de meios de transporte fáceis, sem grandes núcleos urbanos que pudessem impulsionar o incremento da produção agrícola em larga escala, com uma economia seminatural dominando vastas áreas, a produção de subsistência era o suficiente. 

Ademais, o homem do campo tinha que lutar com uma série de obstáculos para conseguir cultivar a terra. Em primeiro lugar, no Nordeste, sobretudo, a falta mesmo de boas terras. As terras de Canudos eram das mais áridas da Bahia. As do Caldeirão, um "sítio intratável e estéril", segundo referem os conhecedores do lugar. As terras férteis, naturalmente, já se encontravam, de longa data, apossadas pelos latifundiários, ou, quando se repartia a propriedade, eram distribuídas entre seus herdeiros, tendendo novamente para a reconstituição do latifúndio. 

O homem sozinho não podia enfrentar o cultivo de uma terra sáfara, que reclamava a escavação de poços ou barragens, cacimbas para alcançar as águas profundas, cisternas para acumular as águas das chuvas, irrigação, adubos, animais. Tal como em Canudos, no Caldeirão, os seguidores do Beato Lourenço fabricavam eles mesmos seus instrumentos de trabalho e muitos objetos de uso, inclusive os grosseiros tecidos com que se vestiam. 

Este fato revela, de uma parte, que na década de 20 e mesmo na de 30, quando foi destruída a concentração dos camponeses do Beato Lourenço, ainda era fragílima a atração exercida pela economia mercantil sobre as populações do Cariri. E, note-se, o núcleo do Caldeirão vai formar-se no mais próspero município da zona, o Crato. 

De outra parte — é uma conclusão lógica — mostra que a balança ainda pendia em favor da economia seminatural, cuja rotina impedia a necessária divisão social do trabalho e a criação de um amplo mercado de mão-de-obra. Em resumo, o poderio econômico no vale ainda se encontrava nas mãos dos latifundiários, de cuja tirania econômica — exercida até pela inércia — tentavam libertar-se os míseros sem terra e sem ocupação certa, que acompanhavam os taumaturgos, que ingressavam nos bandos do cangaço, ou que se alugavam como capangas dos coronéis. 

Dos três elementos gerados direta ou indiretamente pelo latifúndio semifeudal, sobrevive, até os nossos dias, aquele que é o seu filho dileto: o capanga ou cabra. Continua ele a manter guarda na grande fazenda, embora os coronéis sejam hoje apenas a sombra do que foram no passado, até mesmo um passado de pouco mais de um quarto de século. Se a defendia, inicialmente contra os índios, depois contra os posseiros, mais tarde contra os cangaceiros e os fanáticos, hoje procura defendê-la contra o proletário rural sem terra e que ronda, em número crescente, a grande propriedade pré-capitalista. 

Os capangas, ainda hoje, são os assalariados do crime político nos sertões de Alagoas, os que marcam com ferro em brasa membros das ligas camponesas em Pernambuco, os que assaltam posseiros ali no Estado do Rio, a duas horas da segunda cidade do País e sua capital até bem pouco tempo. As autoridades es­tatais respeitam-lhes o chefe, o grande fazendeiro ou usineiro e, à eclosão de uma luta no campo, as próprias forças federais se colocam muitas vezes ao lado dos capangas do coronel contra os que lutam pela terra, na mais evidente contra-prova da aliança virtual ainda hoje em vigor entre a burguesia e o latifúndio semifeudal.