Esse seu testemunho de reafirmar sua amizade pelo autor e descrever um pouco de suas excelências, descendo de seu pedestal erudito e dar a mão a um dos maiores pesquisadores e historiadores do time de primeira grandeza, das histórias de seu Nordeste. elevando-o a esse grande rol de erudição que fazem parte nomes famosos da riqueza cultural da região nordeste que é visível para além de suas manifestações folclóricas e populares.
A literatura nordestina tem dado grande contribuição para o cenário literário brasileiro, destacando-se nomes como João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Gregório de Matos, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Ferreira Gullar e Manuel Bandeira, dentre muitos outros.
Não poderia faltar o mais pernambucano dos pernambucanos. Pernambucano duas vezes e isso foi certificado pelo grande Ariano Suassuna nessas suas palavras e deixar registrado em poucas palavras como ele via o Cangaço. Deleitem-se amigos, eis as palavras e pensamentos dele:
Foi no início da década de 1970 que conheci pessoalmente
Frederico Pernambucano de Mello e tra-vei contato com os primeiros resultados
de suas pesquisas e reflexões sobre o Cangaço — tema que nos fascina a ambos
e que é, a meu ver, o maior responsável pela sedução que o Sertão nordestino
vem exercendo, por motivos diversos e desde o início do século XX, sobre
várias gerações de escritores, sociólogos, historiadores e artistas
brasileiros, de todas as regiões do País.
Em 1973, em um artigo que publiquei
no extinto Jornal da Semana, do Recife, a propósito do romance Sem lei nem
rei, de Maximiano Campos — escritor nascido no Recife, de estirpe da Zona da
Mata pernambucana e das casas de engenho, mas cujo romance gira em torno do
Cangaço, da caatinga e das casas de fazendas sertanejas — fiz referência ao
trabalho de Frederico Pernambucano nos seguintes termos: "Ao tempo cm
que apareceu Sem lei nem rei, eu ainda não conhecia Frederico Pernambucano,
um dos maiores conhecedores do Cangaço com quem já tive oportunidade de
conversar. Não conhecia, portanto, sua teoria a respeito da personalidade dos
cangaceiros, teoria que procura explicar a psicologia desse nosso herói
extraviado através de dois polos principais: o orgulho e aquilo que
Frederico Pernambucano chama de 'o escudo ético'.
Com a franqueza e a
ausência de inveja com que procuro me pautar, digo que, sem sombra de dúvida,
a teoria de Frederico Pernambucano — que eu espero ver um dia colocada por
ele em livro — foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente:
foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de
admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros". (jornal da
Semana, Recife, 24 a 30 de junho de 1973)
O meu desejo de ver a teoria de Frederico Pernambucano em livro
se realizaria em 1985, com a publicação do seu admirável Guerreiros do sol:
violência e banditismo no Nordeste do Brasil, livro que se tornou um clássico
da historiografia do Cangaço. Trata-se, de fato, de um livro de qualidades
incomuns, ao qual tenho voltado de vez em quando para relê-lo e sentir o
mesmo impacto, a mesma força que ele me transmitiu na primeira leitura —
sem que eu tenha até hoje compreendido bem, diga-se de passagem e sem
desrespeito à memória de Gilberto Freyre, a afirmação que este faz em seu
erudito prefácio, quando aponta as "lições" que Frederico teria
aprendido com os "romancistas ingleses".
Tendo passado toda a minha
infância e parte da adolescência no Sertão da Paraíba, entre os anos de 1928
e 1942, foi desde cedo que entrei em contato com "o mundo estranho dos
cangaceiros", para fazer-me valer da expressão de Estácio de Lima.
Menino ainda, antes mesmo de ter aprendido a ler, ouvia casos e histórias
envolvendo os cangaceiros, suas incursões pelas vilas e fazendas e seus atos
de heroísmo e crueldade, narrados por meus familiares e pelo povo sertanejo,
por agregados e trabalhadores das fazendas do meu Pai e dos meus tios.
Depois, na feira de Taperoá, entrava em contato com os cantadores e poetas
populares, através dos quais muitas daquelas histórias reais eram
transfiguradas na primeira poesia de natureza épica que conheci em minha
vida. Com o passar do tempo, naturalmente, à medida que eu crescia e abria os
olhos para o mundo, tudo aquilo foi se identificando com o meu universo
familiar e pessoal. Eu tomava consciência, por exem-plo, de que meu Pai, João
Suassuna, que governara a Paraíba de 1924 a 1928, e que, então Deputado
Federal, tombara assassinado em 1930, numa rua movimentada do centro do Rio
de Janeiro, naquele que até mesmo um dos seus adversários políticos — José
Américo de Almeida — considerou "o mais monstruoso dos atentados",
foi, ao longo do seu mandato de Governador — ou de "Presidente",
como se dizia no tempo —, incansável na luta contra o Cangaço, tendo sido o
grande responsável pelo fim dos ataques e incursões dos bandoleiros em
terras paraibanas. Com o aumento considerável no efetivo da força policial,
reforço no armamento, adoção de uniforme mais condizente com as condições
ecológicas da caatinga e a criação de tropas "fora de linha", a
Paraíba, durante o governo de João Suassuna — que contava com o apoio
incondicional do Coronel José Pereira, seu correligionário e líder político
da cidade de Princesa — passou inclusive a colaborar de modo efetivo com
outros estados nordestinos na luta contra o Cangaço, tendo as volantes
paraibanas ido em auxílio de municípios de Pernambuco, do Ceará e de Alagoas.
Foi, aliás, no município de Flores, em Pernambuco, lutando contra uma
volante da Paraíba, que o bando de Lampião sofreu, em 1925, uma de suas
maiores baixas — a morte de Levino Ferreira, um dos irmãos do chefe. De
maneira que é com imenso orgulho que ouço, ainda hoje, o repente popular:
Lampião acovardou-se
com a sua cabroeira.
Não entra na Paraíba
com medo de Zé Pereira:
o doutor João Suassuna
mandou dar-lhe uma carreira.
Que se entenda, então, que quando afirmo a minha admiração pelos
cangaceiros, fazendo a sua exaltação enquanto figuras romanescas e de
expressão do Nordeste, ou reconhecendo a coragem da sua vida épica e
desgarrada, não estou, de maneira nenhuma, fechando os olhos para o fato de
que eram também bandidos impiedosos, que sacrificavam vidas de pes-soas
indefesas e pacatas da forma a mais brutal possível — e creio que isso tenha
ficado claro naquele artigo há pouco citado, quando falo num sentimento
contraditório de admiração e repulsa.
Mas, de fato, não há como negar o fato
de que o cangaceiro não era um bandido comum. Sem entrar em detalhes que
identificariam "tipos de Cangaço" dentro do Cangaço, o cangaceiro
era um guerreiro extraviado no tempo, com sentimentos de honra e lealdade
fora dos padrões normais, às vezes somente compreendidos no seio do seu
próprio grupo. Como já afirmei em outra oportunidade, creio sim que somente
quem estuda o fenômeno do Cangaço com espírito sectário pode se extremar na
admiração sem reservas ou na condenação total dos cangaceiros, vendo-os ora como
reivindicadores sociais, por um lado, ora como simples bandidos, no sentido
estritamente jurídico do termo, por outro.
A aura de epopeia que
indiscutivelmente o envolve tem feito do Cangaço, ao longo do tempo, fonte
inesgotável de inspiração para artistas dos mais diversos gêneros — da
Literatura ao Cinema, do Teatro às Artes Plásticas — tanto na vertente
erudita quanto na popular. E se há no Cangaço um elemento épico, este é ainda
exacerbado pelos trajes e equipagem dos cangaceiros, com os seus anéis e
medalhas, seus lenços coloridos, seus bornais cheios de bordaduras, os
chapéus de couro enfeitados com estrelas e moedas — tudo isso que se coaduna
perfeitamente com o espírito dionisíaco de dança e de festa dos nossos
espetáculos populares e compõe uma estética peculiar, rica e original, agora
minuciosamente estudada por Frederico Pernambucano neste seu novo trabalho,
que tenho a honra de prefaciar.
Como bem afirmou Carlos Newton Júnior, em um
dos poemas do seu livro Canudos, trata-se, de fato, de uma
Estética orgânica,
estética de organismo, de vida.
Contrária ao
branco, ao cinza,
à morte descolorida.
Ora: se todo prefaciador é de certo modo suspeito em seus
elogios, devo confessar que, no meu caso, a suspeição aumenta ainda mais,
pois vejo que eu e Frederico Pernambucano concordamos em quase tudo o que diz
respeito ao Cangaço. Além disso, Frederico encontra frases e expressões
precisas e de grande efeito poético para definir as suas ideias, sempre ricas
e cheias de sugestões.
Para dizer, por exemplo, aquilo que afirmei há pouco,
no tocante ao fato de que os cangaceiros não eram bandidos comuns, afirma
Frederico que eles eram "criminosos na epiderme e irredentos no mais
fundo da carne". Outra expressão muito bem conseguida é a "blindagem
mística" que Frederico identifica a certa funcionalidade dos trajes dos
cangaceiros, pela profusão de signos de defesa e rebate que eles usavam como
adornos. De maneira que, se tivessem sido outras as minhas inclinações no
campo das Le-tras; se o destino e a vida tivessem me direcionado, em algum
momento, não para a Beleza da Literatura, mas para a Verdade das ciências — da
História, da Sociologia ou da Antropologia; se a enigmática roda da Fortuna
tivesse me lançado em outro palco que não o do Picadeiro-de-Circo onde
exerço, até hoje, ainda animoso e cheio de esperanças, as minhas artes de
Palhaço frustrado, de Cantador sem repentes e de Professor; não seria outro,
senão este Estrelas de Couro, de Frederico Pernambucano de Mello, o livro
que eu gostaria de ter escrito.
Ariano Suassuna Recife, 15 de março de 2010
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