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sábado, 6 de fevereiro de 2016

Os bilhetinhos de Lampião


Mais uma reportagem interessante da série A AVENTURA SANGRENTA DO CANGAÇO, onde o jornalista Nonato Masson, da revista Fatos e Fotos, nos traz acontecimentos marcantes dos famosos bilhetes de Lampião, que gostava de emiti-los como estratégia para aterrorizar seus adversários e também poupar a si e a seus cangaceiros de um combate. Lampião tinha esse procedimento e quase sempre era atendido e quando recebia o dinheiro, passava, com seu bando, ao largo da cidade. Mas se não era atendido, ia buscar o dinheiro no peito e na raça e não tinha compaixão, depois dos saques, geralmente morriam pessoas, incendiava tudo e ia embora.

LAMPIÃO ficou algum meses acoitado no pé da serra da Baixa Verde, perto da Vila de Patos, no Município de Princesa Isabel, sem que ninguém soubesse onde ele estava, tratando da sua bicheira — que é como chamava a ferida no calcanhar — com sumo do cipó de bilha-de-carne. Corria a notícia de que ele estava morto quando, à frente de cinquenta cabras, divididos em grupos de dez, numa madrugada de fevereiro de 1924, entrou na cidade de Sousa, cortando, antes, os fios telegráficos. Passaram ali dois dias, saqueando as casas comerciais e violentando as mulheres, até mesmo as velhas, sem encontrar qualquer resistência. Com bastante munição de bica (rapadura, farinha de pulsa, carne-de-sol e cabacinhas de água), além de grande quantidade de fósforos e fumo de rolo para fazer cigarros de palha, vestidos com as roupas novas que encontraram nas residências assaltadas, deixaram Sousa e, ao passar pela vila da Cabeça do Porco, um garoto chamado Vicente entrou para o bando, para carregar os teréns e os cobertores que tomavam dos soldados. 

Com esses cobertores faziam as camas para dormir nas caatingas. O garoto era preto como carvão, e vesgo, realçando o branco pálido do seu olho esquerdo. Logo Lampião o apelidou de Lua Branca. No caminho, Meia-Noite brigou com Lampião, acusando Livino e Antonio de lhe terem roubado dois contos de réis que tirara da burra de uma loja, em Sousa. — Gatuno duma figa — gritou Meia-Noite, sacando da peixeira pajeú e dando um pulo para trás —, pula pra limpo, que eu como um por um agorinha mesmo. Bando de ladrão safado, balé parece cigano. 

LAMPIÃO não gostava de confusão entre os seus cabras. Deu dois contos a Meia-Noite, apesar dos protestos de Antônio e Livino, que juravam com os dedos em cruz não terem roubado nada, e mandou que Meia-Noite sumisse de sua frente. Descendo o serrote de Colônia, Lampião atingiu com o seu bando o maciço da Borborema, de onde passou para Pernambuco e caminhou até Flores, na região do rio Pajeú. 

Um dos bilhetes escritos por Lampião, iniciado com a frase "estimo suas saudações". Não tendo certeza do ano, escreveu mais (+) ou menos (—) 1926. Neste bilhete, Lampião mandava pedir dois contos ao comerciante Antonio Mando. Lampião carregava sempre caneta de pena bico-de-pato, tinta é papel. Antes de qualquer ataque fazia bilhetes pedindo dinheiro. 

Com medo de encontrar, no seu caminho, o bando de Lampião, o Governador Sérgio de Loreto, de Pernambuco, cancelou uma viagem que teria de fazer do Recife a Vila Bela. Lampião passou todo o ano de 1929 no sertão pernambucano, acoitado nas proximidades da fazenda de um coronel seu amigo, em Rio Branco, hoje cidade de Arcoverde. Nas feiras os cantadores louvavam Lampião e mangavam do governador:

Doutor Sérgio de Loreto, 
Govêrno de Pernambuco, 
Com mêdo de Lampião, 
Só falta ficá maluco. 

Ao entrar em território pernambucano, o bando de Lampião invadiu a fazenda Abóboras, de Manuel Neto, e, a seguir, entrou em Tapera, no Município de Floresta dos Navios, onde matou o subdelegado Manuel Jiló que, com cinco praças, lhe ofereceu resistência. Quando se esgotou a munição, Manuel Jiló tentou fugir, mas foi pego pelos cangaceiros e sangrado, juntamente com os soldados. 

MANUEL Neto, depois que a sua fazenda foi incendiada por Lampião, assentou praça na polícia pernambucana e passou a persegui-lo dia e noite. Numa das suas andanças pelos sertões de Pernambuco, Lampião encontrou um médico recém-formado, que ia de Jatobá do Tacaratu para Águas Belas, em visita à família, e o prendeu, levando-o pare uma grota. Seu calcanhar estava muito inflamado, pediu ao doutor para tratá-lo. Um cabra foi despachado para a vila mais próxima, a fim de comprar remédios. Em cinco dias de curativos, Lampião sentiu-se melhor e colocou novamente o médico na estrada, em caminho de casa. Deu-lhe quatro contos de réis. Há episódios de nobreza na vida criminosa de Lampião. Por exemplo: certa vez cercou a casa de um seu inimigo, que estava em companhia de um só homem, mas sustentou fogo contra o bando, que estava formado por cerca de trinta cabras, por muitas horas. A certa altura do tiroteio, Lampião gritou: — Vicente Moreira, hoje era o teu dia, cabra safado, mas tu é ome valente, e ome valente assim não se mata. Sai da toca e vamo fazê um acordo. 

VICENTE saiu do esconderijo e, em campo raso, fizeram um pacto de não-agressão mútua. Quando Lampião ia-se retirando, Vicente o advertiu que era cunhado de José Saturnino — o inspetor de quarteirão de Nazaré da Mata, que ele, quando garoto, matara-lhe o filho, em consequência da questão dos chocalhos de bode — e ponderou: — Se você atacá Saturnino, eu tenho de lhe ataco. Por via disso é mais mió se desfazê o trato, a mode eu não sou orne de traição. Lampião gostou da atitude de Vicente. Estendeu-lhe a mão. Disse: "Aceito o trato. Tou vendo que você é ome mesmo." E nunca mais brigaram, nem Lampião perseguiu mais José Saturnino. 

Em janeiro de 1925, os cabras de Lampião, fardados de macaco (apelido que Lampião botou nos soldados de polícia, porque eles fugiam, à sua aproximação, pulando como macacos), entraram, pela madrugada, na vila de Custódia, no município pernambucano de Alagoa de Baixa. Esperaram amanhecer, formados na Praça da Matriz, para então começarem o saque. O encarregado da coleta de dinheiro foi o próprio Prefeito Leopoldo Mafra, que Lampião foi acordar com a ponta de seu punhal de cabo de prata. Na bodega de seu Rouxinol, Lampião parou para matar a sêde: — Me alcance um copo d'água, ome de Deus. Veio o copo com água numa bonita bandeja, carregada por um menino chamado Luis Cristóvão dos Santos, que é atualmente juiz de Direito na região do Pajeú. Lampião bebeu a água, colocou o copo na bandeja e, num gesto de ternura, passou a mão, de leve, nos cabelos do menino e disse-lhe: — Cresça, fedelho, pra pegá no pau-furado. 

PEDIU dinheiro e seu Rouxinol disse que não tinha, porque estava ajudando o vigário Leão Verzeri a reformar a Matriz. Bastou falar em igreja para que Lampião o deixasse em paz. Saiu e foi até uma farmácia, onde pediu uma meizinha boa pra dor de cabeça, e que o boticário fizesse curativos em dois dos seus cabras, que haviam sido baleados num combate, há dias. Feitos os curativos, Lampião tirou uma caneta de pena bico-de-pato, um bloco de papel e um grande vidro de tinta de dentro do seu embornal. Apoiou-se no balcão e escreveu um bilhete, que entregou ao boticário, dizendo que "com essa orde" nenhum cangaceiro, dali por diante, lhe faria mal: — É só mostrar o bilhete e tá agarantido. 

SUA LETRA ERA O SALVO-CONDUTO PARA QUEM QUISESSE CIRCULAR NA REGIÃO DOMINADA PELOS CANGACEIROS.

Verso e anverso de um cartão de visitas de Lampião, dado pelo cangaceiro como salvo-conduto ao Prefeito Joaquim Resende, de Santana de Ipanema (Alagoas). 

Nesse bilhete, Lampião avisa o fazendeiro Elias Barbosa que estava esperando seus cabras.

DEPOIS de um dia em Custódia, os cangaceiros saíram no rumo de São Caetano, na ribeira do Navio, cantando estes improvisos:
As môça de Custódia, 
São feia mas tem ação, 
Botam queijo e rapadura, 
No borná de Lampião.
As fôrça de Pernambuco, 
São um bando de urubu, 
Preseguindo Lampião, 
Que é fio do Pajeú. 

A mulé de seu Leopoldo, 
E mulé trabaiadera, 
Passa a noite trabaiando, 
De manhã já tem pra fêra.

Com intervalos de menos de quinze dias, Lampião e seu bando assaltaram Buíque e a vila do Algodões, a oito léguas de beiço de Rio Branco, onde passou três dias saqueando o comércio. Em Rio Branco passou um telegrama ao governador de Pernambuco, avisando que não mandasse macacos para combatê-lo, pois, do contrário, marcharia sobre o Recife, a fim de pegá-lo a unha. O governador, com medo, não tomou qualquer providência contra ele, que, sem ser incomodado, atacou Granito, Leopoldina e Cabrobó. 

NA fazenda Melancia, perto de Flores, Lampião entrou para castrar um velho de nome Zé Calu, porque soube que ele havia deflorado a filha. Depois assaltou Flores, onde os cabras Mansidão e Jurema mataram, com uma porção de facadas o chefe da família dos Teotônios, o velho José Teotônio, por saber que ele telegrafara ao chefe de policia, no Recife, avisando da sua presença ali. Ao sair de Flores, Lampião foi avisado por um coiteiro que havia uma volante paraibana no seu rasto. A volante era comandada pelo sargento Cícero Oliveira, irmão do Tenente Cícero Oliveira, que os cangaceiros haviam abatido nos contrafortes da Borborema. 

Balbina da Silva e Maria Marques, duas das inúmeras mulheres ferradas, no rosto, com as iniciais de José Baiano. Eram marcadas porque Lampião não gostava de mulher de cabelos curtos.




Caminhando para São João dos Leites, onde ficaria a salvo da volante, na fazenda do Coronel José Jósimo, que era seu amigo e protetor em Pernambuco, o bando de Lampião topou com os macacos em Tenório e abriu fogo. O sargento foi baleado e morto, mas a fuzilaria continuou, cada vez mais feroz, obrigando a Lampião bater em retirada, sem tempo para socorrer o seu irmão Livino, que havia caído numa grota com um balaço no peito.

LIVINO foi degolado pelos soldados, seu corpo abandonado aos urubus e sua cabeça, levada como troféu, foi espetada numa estaca de cerca de mandacaru entre Tacaratu e Jericató. Com a perda do irmão, Lampião passou a viver triste, deixou crescer os cabelos e adotou novos requintes de maldade com as suas vítimas. Passou também a dar ordens para que fossem marcadas, no rosto, com ferro em brasa, todas as mulheres que usassem cabelos curtos. O encarregado da ferra era o seu lugar-tenente José Baiano, e centenas de mulheres tiveram o rosto marcado com as suas iniciais JB. As tropas da polícia paraibana não deram mais trégua a Lampião. Perseguiam-no em todas as direções, o que o obrigou a atravessar a fronteira, entrando em Alagoas, no rumo de Mata Grande. Ao passar pelo cemitério de Santa Cruz do Deserto, Lampião entrou com os irmãos Antônio e Ezequiel, colocaram flores sabre a sepultura do pai e rezaram. Seguiram caminho, com duas volantes da Paraíba e uma de Pernambuco no rasto de suas alpercatas, de rabicho, sem saber que estavam sendo seguidos, e foram-se acoitar numa palhoça de taipa no lugar conhecido por Serrote Preto. 


JUNTARAM-SE as volantes paraibanas e atacaram o coito de surpresa. A luta foi de papoco. Logo no início do choque caíram mortos Asa Negra, Guri e Corró, três cabras de Lampião. Foi quando, pela retaguarda das tropas paraibanas, apareceu uma volante pernambucana, comandada pelo Tenente João Gomes, atirando a três por dois. Estabelecida a confusão, os cangaceiros executaram uma das suas fulminantes re-viravoltas, tomaram posição sabre uma serra e envolveram os soldados, que, a essa altura, lutavam entre si. Com a chegada da noite o fogo cessou, deixando mortos setenta dos cem soldados das duas volantes. Os mortos foram transportados em rédea para Mata Grande, onde os sobreviventes da carnificina tiveram de enterrá-los sem a ajuda de ninguém, pois toda a população havia abandonado a cidade. 

EM janeiro de 1926, Lampião comprou uma fazenda em Barreiros, perto de Vila Bela, em Pernambuco. Dizia sempre que seu grande sonho era voltar a ser vaqueiro e criador de gado. Saindo um dia da sua fazenda encontrou um automóvel com três homens numa estrada. Eram o chofer e mais Pedro Paulo Mineiro, inspetor-viajante da Standard Oil Company, e fenício Vieira, viajante da Companhia de Cigarros Sousa Cruz, que iam de Triunfo para Vila Bela a negócio. Lampião fez o carro parar e pediu dinheiro aos viajantes, que lhe deram dezesseis contos de réis. Achou pouco e os prendeu. Fenício disse que podia ir a Vila Bela arranjar mais dinheiro. Lampião concordou, ficando com Pedro Paulo como refém. Deu três dias para Fenício e o chofer voltarem com mais dez contos e levou Pedro Paulo para a sua fazenda. Passaram-se os três dias e Fenício não voltou. Lampião, que se afeiçoara a Pedro Paulo, resolveu mandá-lo de volta até a vila de Betanha, com dois bilhetes: um para um comerciante seu amigo, intimando-o a levar o rapaz até a estação da Estrada de Ferro Great Western, em Rio Branco, de onde ele seguiria para o Recife, e outro ao governador interino de Pernambuco, Júlio de Melo, propondo, entre outras coisas, governar o sertão até Rio Branco, onde chegavam os trilhos da Great Western, enquanto o Governo do Estado ficaria mandando de Rio Branco ao Recife. 

ESCREVER bilhetinhos era o fraco de Lampião. Antes de invadir qualquer cidade, mandava um deles para o delegado, juiz ou algum comerciante forte, solicitando muitos contos de réis. Seus bi-lhetes, escritos mais a tinta do que a lápis, co-meçavam sempre com a frase "estimo suas sau-dações", que lhe era peculiar. 

ELE tinha desses requintes e se era atendido, recebia o dinheiro e passava, com o bando, ao largo da cidade. Se não era, ia buscar o dinheiro na raça e, então, não deixava pedra sôbre pedra. Depois dos saques, incendiava tudo. Foi assim em Caranaúba das Flores, onde o comerciante Antônio Mando recebeu um bilhete seu e não fez caso, nem mandou qualquer resposta. O bilhete foi este: "Ilmo. Sr. Antônio Mando. Estimo suas saudação com todos ofim desta para lhe pedir dois contos di reis — los passo isto sem farta agora e não mande que depois vai se sahir muito mal resposta pelo mismo portador sem mais, não falte olhe. Virgulino Ferreira, vulgo Lampião." 

Em março de 1926, a Coluna Prestes atravessou o sertão de Pernambuco e marchava sabre o Ceará. Na sua fazenda em Berreiros, Lampião recebeu um jagunço do padre Cícero Romão Batista. O jagunço lhe deu o recado: que fôsse com urgência ao Juazeiro do Norte e levasse todos os seus cabras.