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domingo, 11 de setembro de 2016

CANGACEIRO X CORDEL


O povo sertanejo nunca admirou criminosos. Algumas pessoas são enganadas por aqueles que querem "branquear" a história de bandidos e querem confundir os incautos com a admiração que o sertanejo tinha e tem por homens valentes. Isso sempre foi assim. 

A sua formação, criados de forma mais "guerreira" - digamos assim - o predispõe para reconhecer aqueles que têm coragem de enfrentar o sistema, que os explora - e que também explora não só nas relações financeiras, mas também em autoridade, quando as injustiças são sentidas. Essa é a história inventada pelos poetas cordelistas, pois sabendo que o povo admira e exalta a valentia, criam em suas mentes férteis de poetas, pedras brutas e calhaus  em jóias valiosas de ouro e diamantes

Segundo Luis da Camara Cascudo, "durante séculos, enquistado e distante das regiões policiadas e regulares, o sertão viveu por si mesmo, com seus chefes e milicianos. As primeiras sesmarias, no longínquo século XVII, trouxeram o sesmeiro com seus trabalhadores que eram, nos momentos em que a indiada assaltava, homens de armas." e isso trouxe anomalias sociais e injustiças.  

E continua dizendo que foram "os mais ricos que deram os sargentos-mores, os capitães-mores das ribeiras, títulos honoríficos mas de ação moral segura para a disciplina da região. Os fazendeiros tiveram necessidade de tropa pessoal, fiel e paga, para a defesa de propriedades visadas pelos adversários políticos." 

"A justiça, cara, lenta e rara, era vantajosamente substituída pelo Trabuco, numa sentença definitiva e que passava em julgado sem intimação do procurador-geral. Abria ensancha a uma série de lutas ferozes, de geração a geração, abatendo-se homem como quem caça nambus. Das emboscadas, tiroteios, duelos de corpo a corpo, assaltos imprevistos nas fazendas que se defendiam como castelos, batalhas furiosas de todo um bando contra um inimigo solitário e orgulhoso em seu destemor agressivo, nasciam os registos poéticos, as gestas da coragem bárbara, sanguinária e anônima."


A aura poética foi a grande culpada - digamos assim - se bem que não existe barreiras para a poesia, para o romance e nem para o cinema - mas a grande questão é como separar a inspiração irreal da verdade.

Por exemplo, um dos focos poéticos dos cantadores de feira, tanto no sertão de outrora, quanto na modernidade, faz que os poetas cordelistas enfoquem sempre que os cangaceiros tornaram-se "fora da lei" por conta de injustiças cometidas contra eles ou familiares. Lógico que em alguns casos, isso aconteceu sim. Mas em outros, esses cangaceiros antes que a "lei dura" ao combate do banditismo chegasse a eles ou seus familiares, com a sanha desnaturada de violência, já tinham cometido malfeitos.

Daí isso tornava-se indistinto para a maioria, pois como fazer distinção do cangaceiro do homem valente? No cangaço não sobrevivia quem era "frouxo". Só os valentes sobreviviam aos ataques de uma polícia que era violenta; e tornavam-se admirados, não por seus roubos e assassinatos, mas por não demostrarem medo, até que um dia eram mortos e daí se já eram cantados em vida, quando mortos viravam fontes de enaltecimento pelos poetas cordelistas do sertão.

"Raramente sentimos, nos versos entusiastas, um vislumbre de crítica ou de reproche à selvageria do assassino. O essencial é a coragem pessoal, o desassombro, a afoiteza, o arrojo de medir-se", nos alerta Camara Cascudo.

O sertão nordestino nos mostra que temos muito dos povos ibéricos, principalmente de Portugal e Espanha, e sua presença no mundo. De matriz globalmente latina, os ibéricos tiveram uma profunda influência no planeta a partir do século XV, inaugurando a expansão ultramarina europeia e espalhando as suas culturas e as suas línguas por todos os continentes, mas especialmente pela América Latina. Por sua vez, além de seus costumes, trouxeram também outros que em suas aventuras de busca de rotas comerciais adquiriram. Daí as tradições cantadas, indumentárias de couro dos vaqueiros, as armas brancas. Tudo isso veio de lá, de terras ultra-marinas.

O canto das aventuras dos heróis, onde a poética que tudo pode, transformou o cangaceiro nordestino, por sua valentia em tais. Em todos os povos existe isso. Na Inglaterra com Robin Hood, na França com Pierre de la Brosse, na Itália com Gasparone, com Bonnacchocia, com Nino Martino, com o napolitano Perella, o corso Romanetti cujo enterro, em Ajaccio, a 29 de maio de 1926, foi acompanhado por 30.000 pessoas e a polícia teve de ser recolhida, "por precaução" aos quartéis, para evitar "conflitos com o Povo". (Gustavo Barroso — "Almas de Lama e de Aço", p. 110.) 

"Não é doutra origem o halo popular que sempre cercou Ciro Annichiarico, dom Gaetano Vardareili que se fez padre ou Louis Mandrin, contrabandista e assaltador, adorado pelos aldeões franceses que o têm como herói legítimo. Como o cangaceiro é a representação imediata da coragem, o sertanejo ama seguir-lhe a vida aventurosa, cantando-a em versos."
(Luis da Camara Cascudo - "Vaqueiros e Cantadores" pg 161)
Criando Deus o Brasil, 
desde o Rio de Janeiro, 
fez logo presente dele 
ao que fosse mais ligeiro: 
O Sul é para o Exército! 
O Norte é prá Cangaceiro! ...
Antônio Silvino, o "Rei do Sertão", durante vinte anos de domínio absoluto, era tido pelos cantadores como um ser infeliz, obrigado a viver errante por ter vingado a morte de seu Pai. 

Eu tinha quatorze anos, 
quando mataram meu pai. 
mandei dizer ao cabra: 
Se apronte que você vai 
Se esconda até no inferno 
de lá mesmo você sai.
                
Para Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, a história é a mesma: 

Assim como sucedeu 
ao grande Antônio Silvino, 
sucedeu da mesma forma 
com Lampeão Virgolino, 
que abraçou o cangaço 
forçado pelo destino . 

Por que no ano de Vinte 
seu Pai fora assassinado 
da rua da Mata Grande, 
duas léguas arredado.
Sendo a força de Polícia 
Autora deste atentado ... 

Lampeão desde esse dia 
jurou vingar-se também, 
dizendo: — foi inimigo, 
mato, não pergunto a quem... 
Só respeito neste mundo 
Padre Cisso e mais ninguém! ... 

A exaltação dos cantadores pelas façanhas de Antônio Silvino chegara ao delírio. Subia das gargantas um hino áspero, selvagem e tremendo de glória rude, tempestuosa e primitiva. 

Cai uma banda do céu, 
seca uma parte do mar, 
o purgatório resfria, 
vê-se o inferno abalar ... 
As almas deixam o degredo, 
corre o Diabo com medo, 
o Céu Deus manda trancar! 

Admira todo o mundo 
quando eu passo em um lugar. 
Os matos afastam os ramos, 
deixa o vento de soprar, 
se perfilam os passarinhos, 
os montes dizem aos caminhos: 
Deixai Silvino passar! ... 


Assim mesmo inda há lugar 
que eu passando tocam hino, 
o preto pergunta ao branco, 
pergunta o homem ao menino: 
— Quem é aquele que passa? 
E responde o povo em massa: 
— Não é Antônio Silvino? 

Pergunta o vale ao outeiro
 o ima à exalação, 
o vento pergunta à terra, 
e a brisa ao furacão, 
respondem todos em coro: 
— Esse é o Rifle de Ouro, 
Governador do Sertão! ... 

E a Lampião afirmam, nos versos que lhe são continuamente dedicados: 

O cangaceiro valente,
nunca se rende a soldado,
melhor é morrer de bala,
com o corpo cravejado,
do que render-se à prisão,
para descer do sertão,
preso de desmoralizado...

Para Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, a história é a mesma. A exaltação dos cantadores pelas façanhas dos valentes. Preso a 28 de novembro de 1914, Antônio Silvino, o "Rifle de Ouro" tornou-se um homem digno da viva simpatia que o cercou. O Governo Federal indultou-o e, a 19 de fevereiro de 1937, o "Rei do Sertão", velho, encanecido, risonho, mas impassível, deixou a prisão. Herda-lhe a fama o sinistro Lampião, cangaceiro sem as tradições da valentia pessoal, de respeito às famílias que sempre foram apanágios do velho Silvino. 

"A gesta do Cangaceiro faz ressaltar as grandes e pequenas figuras do "cangaço". Desde o negro Vicente que confessava: 

Eu sou negro ignorante 
só aprendi a matar, 
fazer a ponta da faca, 
limpar rifle e disparar, 
só sei fazer pontaria, 
e ver o bruto embolar.
Camara Cascudo também fala de outros bandidos famosos, "... de valentia louca e não menor arrogância. Cirino Guabiraba, da Serra do Teixeira, Paraíba, sabendo que ia ser cercado por dez homens comandados pelo delegado Liberato: 

Cirino disse sorrindo: 
— Com isso eu não tomo abalo, 
dez homens contra mim só 
são dez pintos contra um galo, 
para eu matar eles todos, 
basta os cascos do cavalo! ... 

E morreu em luta, um contra dez, arrancando os intestinos varados a bala de latão e chumbo grosso.

O sertão guarda a lembrança dessas dinastias de facínoras, heróis e bandidos, e deles evocava suas gestas e valentias. Até que surgiu alguém, um cantador chamado José Patrício que em seus verso entoados nas feiras do Interior paraibano, mostrava com crueza, a ausência daqueles valentes, pois estavam mortos: 

Então, me diga onde estão 
os valentões do Teixeira? 
onde estão os Guabirabas? 
Brilhantes, de Cajazeiras? 
Aonde vivem estes homens 
que eu não os vejo na feira? 

E como o sertanejo deduz de toda luta um aspecto moral, um direito preterido, um patrimônio violado, os poetas populares dizem que é o desrespeito às minorias, que nunca se fizeram sentir ante a arbitrariedade dos governadores, um dos motivos da eterna guerra. Daí o endeusamento aos valentes, confundindo com as injustiças que alguns sofreram, com sua luta como se fosse pela justiça social.

Este governo atual Julga
que a oposição 
não tem direito ao Brasil, 
pertence a outra nação... 
Devido a isso é que o rifle
tem governado o sertão! ... 

E os cangaceiros convencem-se de seu papel de justiça social, defendendo pobres e tomando dinheiro aos ricos. Lampião confessa: 

Porém antes de eu ser preso, 
Hei de mostrar o que faço, 
dar surra em cabra ruim 
roubar de quem for ricaço. 
Só consinto em me pegar 
no dia em que alguém pisar 
em cima do meu cangaço ... 

Quando Antônio Silvino percorria o Nordeste com seu bando, os cantadores, aludiam, com uma naturalidade espontânea, ao seu "serviço" social: 

O forte bate no fraco, 
o grande no pequenino, 
uns se valem do Governo, 
outros de Antônio Silvino, 
O rifle ali não esfria 
sacristão não larga sino...
Como nos diz Camara Cascudo: "A gesta é uma poesia de ação. De luta e de movimento. Não há a sensação da paisagem da natureza e do cenário. Verso descrevendo esses elementos denuncia inteligência semiletrada e nunca a produção se destina aos lábios dos cantadores. Os cangaceiros são as figuras anormais que reúnem predicados simpáticos ao sertão. A coragem, a tenacidade, a inteligência, a força, a resistência eram elementos para a exaltação." (Luis da Camara Cascudo - "Vaqueiros e Cantadores" pg 164)

E como isso afetava de sobremaneira o povo sertanejo, esses predicados foram os preferidos dos poetas cordelistas e cabe aos pesquisadores e historiadores, desfazerem o mito criado.

Fonte maior da matéria: "Vaqueiros e Cantadores" de Luis da Camara Cascudo.