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quarta-feira, 23 de março de 2016

A indústria do cangaço

Será que Lampião foi um marionete nas mãos dos coronéis do Nordeste? Para sabermos a resposta temos que analisar criteriosamente a origem e as atividades de Virgulino Ferreira. Precisamos enxergar o mito que foi criado como sendo Lampião um cangaceiro oriundo da miséria social que se abatia nos sertões nordestinos. Os pais dele não eram pessoas miseráveis e tampouco passavam fome. 

Muitas pessoas ainda hoje pensam que Lampião era um bandido pobre, talvez por não conhecerem sua verve de comerciante e empreendedor, quando rapazinho e negociava nas feiras das cidades próximas de onde morava. Era sim, filho de uma família da classe dos humildes proprietários rurais, situada entre os ricos donos de terras, fazendeiros poderosos e de uma massa de lavradores sem terra. Mas não eram pobres de "marré deci". 

Quando jovem 'tomava de conta' da pequena criação de seu pai e depois participando da condução de mercadorias, em um pequeno empreendimento da família, que o pai ao adquirir mulas para transporte, trabalhava transportando gêneros variados para os comerciantes. Antes de ser conhecido como "Lampião", Virgulino Ferreira já rapazinho, juntamente com seus irmãos, incursionava em grupos de bandidos, assaltando os pequenos fazendeiros. Não entraremos em detalhes sobre sua querela com Zé Saturnino pois não foi isso que o encaminhou para o cangaço.

Essas peculiaridades pessoais ajudam a entendê-lo melhor quando enveredou no banditismo. Era um bandido que progrediu. Tornou-se grande proprietário e um homem de negócios organizado, levando-se em conta seu tipo de vida. Conta-se que no ano de 1928 associou-se ao coronel Petronilo de Alcântara Reis e comprou duas fazendas na Várzea da Ema, na Bahia. Poucos meses antes tinha vendido outra fazenda em Vila Bela. Quase no fim da vida adquiriu mais duas em Porto da Folha, perto de Angico, onde foi morto.

Seus parentes mais próximo, irmão e irmãs chegaram a comprar terras e residências nas cidades e é difícil saber se foram presenteados por Lampião ou usados como testas-de-ferro.

Lampião era um homem rico e possuía muito dinheiro e ouro. Dizem que ao morrer, carregava cem contos de reis, valor de três fazendas no Nordeste. Nos seus bornais encontravam-se cinco quilos de ouro e também dizem que estavam destinados a prover o futuro de sua filha com Maria Bonita. Além dessa fortuna, tinha muitas jóias como cordões e anéis de ouro.

Isso era parte de sua fortuna, que carregava costumeiramente. O grosso de seu capital, em ouro e dinheiro, enterrava em vários esconderijos, dentro de botijas. Um desses esconderijos ficava no Raso da Catarina, numa série de locais marcados por ele com o nome das notas musicais cifradas cuidadosamente em mapas que se combinavam e que muito serviram em sua fuga para a Bahia.

Ele entesourava riquezas através de roubos e assaltos. Mas Lampião revelou talento empresarial. Foi, por exemplo, fornecedor de outras quadrilhas. Revendia armas compradas de traficantes comuns, com cem por cento de lucro. Isso criou inclusive uma dependência econômica de alguns chefes de bando inclusive gerando queixas por sua exploração.

O mais exótico empreendimento comercial de Lampião foi a sua entrada no ramo de transportes. Acabou fundando uma companhia de caminhões e automóveis, que lhe deu bons lucros. Fornecia o capital para a compra dos veículos e os sócios cuidavam da administração. Retiravam o necessário para a continuidade da empresa e dividiam o lucro com ele. Muita gente ficou feliz com sua morte pois não tinha nada registrado no papel e apenas seus sócios andavam direitinho, com medo de perderem a vida.

Lampião também empreendeu os famosos  salvo-condutos, transformando esse expediente como altamente rendoso, a ponto dele encomendar ao mascate-cineasta Benjamin Abrão a confecção de centenas de cartões de visitas, usados para esse fim.

Investiu também numa frota de canoas que faziam a travessia do rio São Francisco, usando o mesmo processo de aliciar sócios. Pessoalmente, esses fatos diferenciam Lampião de seu grupo social de origem. Foi um cangaceiro-empresário bem-sucedido.

Mas nada o distingue tanto desse meio, que hipoteticamente tinha nele o representante de sua revolta, como o fato sabido e consagrado de que ele jamais matou alguém realmente importante. Havia um compromisso rigorosamente observado entre cangaceiros e coronéis para que isso não quebrasse o pacto estabelecido entre eles. O deputado Floro Bartolomeu, falando na Câmara Federal, amenizou o cangaço destacando justamente o fato de que não matava gente de "posição":

"...no sertão é raro um homem de posição ser assassinado, mesmo de emboscada, nas estradas desertas; sempre estes fatos ocorrem entre os cabras, cangaceiros ou não, gente que não faz falta." Em pronunciamento na Câmara dos Deputados.


O cumprimento fiel desse pacto, aliado a um terrorismo implacável como meio de controle social, fez de Lampião um bandido de sucesso.

Conforme registra em seu livro "A derradeira gesta" a escritora, antropóloga, professora e historiadora 
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros mostra-nos que a origem e as atividades de Virgulino Ferreira, o Lampião, destrói o mito do cangaceiro como expressão da miséria social e transforma o mais importante símbolo do banditismo rural do país em um braço direito dos coronéis.

A pesquisadora também defende que seu assassinato, em 1938, foi motivado por questões econômicas que envolviam a transferência das verbas de combate ao cangaço para a indústria açucareira do Nordeste.

Segundo a professora, Virgulino Ferreira vivia uma vida dupla, antes de se entregar definitivamente ao cangaço, em 1922. "Em Pensambuco. ele era um proprietário, com sua tropa de burro, e fazia comércio com a vizinhança" afirma. De acordo com Luitgarde. essa série de crimes em que Lampião se envolve, como invasões a cidades e troca de tiros, é o caminho que conduz seu pai à Morte. - Em 1921, Lampião vai com os Porcino para um lugarejo em Alagoas e ali eles matam um rapaz cego e promovem uma série de roubos. Escondem o dinheiro roubado em uma pequena fazenda próxima onde o pai dele estava vivendo, o que fez o coronel Lucena chegar ao local e que "... entrou atirando, esperando surpreender Lampião. Lucena acabou matando seu pai." 

Com a morte do pai, Luitgarde de fende que Lampião apelou para o código sertanejo de vingança para justificar suas ações. "Essa legitimação dos próprios atos utilizando elementos da cultura sertaneja, como valentia e obrigação de vingança para limpar manchas desonrosas ou corrigir injustiças, foi amplamente utilizada por todos os cangaceiros, principalmente Lampião." 

A partir de 1922. já com seu próprio bando, ele passa a envolver os coronéis que se tornam seus  grandes protetores. Entre eles, desembargadores, juízes de direito e altos industriais. Luitgarde destaca também a
corrupção na policia. "Quando um destacamento policial ia perseguir os cangaceiros, eles eram avisados por membros corruptos e registra no texto nomes de juízes e políticos que recebiam o cangaceiro em suas residencias e o apoiavam para que suas fazendas fossem poupadas. 

Alguns. como o governador de Sergipe Eronildes de Carvalho. chegaram a lhe fornecer armas. "Existem entrevistas em que Eronildes afirma ter dado uma pistola para ele, negando ter lhe vendido armamentos. Ele foi o principal coiteiro de Lampião", denuncia. 

A relação de "amizade" entre Virgulino Ferreira e os grandes proprietários de terra é mostrada por Luitgarde como um jogo de interesses. O esquema fazia com que Lampião atacasse apenas os adversários de seus padrinhos. "Depois os grandes proprietários compravam por quase nada as terras dos concorrentes, arrasadas por ele. Assim, eles refazem o latifúndio do Nordeste". 

Para Luitgarde. esse sistema de favores não beneficiava Lampião pois apenas alimentava a "indústria do cangaço". "Ele assaltava os pequenos e médios proprietários e esse dinheiro era usado para comprar amas, munição e polícia corrupta. Mas quem poderia vender armamento para ele sem ser punido? Só pessoas muito importantes tinham o monopólio do comércio com o cangaço. E como Lampião não poderia regatear preço com o governador, já que só este lhe poderia vender armas, era obrigado a continuar a vida de crimes para pagar os altos preços cobrados. Realmente Lampião que se julgava o Senhor dos Sertões, perdia feio para os Coronéis, que o usava com métodos maquiavélicos. 

Alimentada por verbas do Governo Federal, essa "indústria" do banditismo chega ao fim em 1938, por questões econômicas, conforme afirma a professora. "Naquele ano, o presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool. o pernambucano Barbosa Lima Sobrinho, informa aos governadores de Alagoas e Pernambuco que a verba para o subsídio da produção açucareira vinha sendo destinada ao combate ao cangaço, e que isso ia acabar. "Depois dessa notícia, o governador de Alagoas, Osman Loureiro, incumbe o coronel Lucena de comandar o extermínio do bando de Lampião em um período de um mês. Lucena convocou seus homens e afirmou que se eles não cumprissem a tarefa no prazo seriam demitidos. Em 30 dias acabou o cangaço".

Dessa forma os comandantes policiais imprensados por seus superiores, encerraram a carreira de Lampião em julho de 1938, na Grota de Angicos, Sergipe. Sem piedade na análise do cangaceiro, Luitgarde confessa a necessidade de se corrigir um erro histórico. "Ao contrário do que se acredita, no período de Lampião as populações pobres são as mais atingidas por seus atos, enquanto as classes que o protegiam ficavam cada vez mais ricas. Esses fatos ficaram obscuros porque quando se cria um mito a primeira coisa que a imprensa faz é esconder a verdade sobre sua vida!" 

Mas análises como as de Luitgarde ainda não compõem a maioria dos estudos sobre Lampião e o banditismo rural nordestino, conforme comprova o sociólogo César Barreira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência. "Na academia, a interpretação da história de Lampião que ainda predomina é a do bandido social motivado pelo assassinato do pai e produto de uma sociedade com dificuldade de trabalho. O que ainda se discute é se a sua violência teve mesmo a natureza de atrocidade que lhe é atribuída e qual a participação da força policial na formação do cangaço", explica. 

Barreira lembra que a maioria das pesquisas ainda vê ações positivas no cangaço. "Há um aspecto positivo nas ações de Lampião no momento em que sua violência representa a negação das condições sociais em que vivia. A ideia é que ele tenha tomado a orientação do banditismo porque a Justiça não agiu como devia na morte de seu pai. O que temos relacionada a ele é a construção de uma nova lei. A lei do cangaço".

Recentes pesquisas, contudo, apontam para a pluralidade de olhares: O antropólogo e pesquisador Jorge Villela, co-autor de "Andarilhos e cangaceiros - A arte de produzir território em movimento", desenvolve atualmente uma tese de doutorado pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, onde analisa a formação do cangaço a partir da relação entre as famílias locais e a violência. "Analisando os exércitos privados formados no interior de Pernambuco, encontrei evidências de que eles são na verdade grupos de origem familiar que em função de terem cometido algum crime ou afronta caem na ilegalidade, podendo migrar ou se transformar em cangaceiros, entregando-se então ao uso das armas".

Sem se preocupar em estabelecer opiniões definitivas, Villela admite que a imagem do principal membro do cangaço ainda está sujeita a interpretações. "Os povos vitimados pelo cangaço vêem Lampião como qualquer inimigo dele veria. Alguém sem qualidades, cruel e impiedoso. Há análises dele como independente dos coronéis. O ponto de vista muda. O que não se pode negar é o valor que a vida possui no sertão, já que alguém é capaz de arriscar seus bens para vingar um aliado morto".

Locais de pesquisa para o artigo:
Civitas - Revista de Ciências Sociais
Jornal do Brasil
A derradeira gesta: Lampião e nazarenos guerreando no sertão - Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros