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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

PEQUENO ESTUDO MULTIDISCIPLINAR SOBRE O CANGACEIRISMO

Dr. Lamartine de Andrade Lima



PEQUENO ESTUDO
MULTIDISCIPLINAR
SOBRE O
CANGACEIRISMO



APRESENTADO NO
CARIRI CANGAÇO
PIRANHAS, ALAGOAS

26 DE JULHO DE 2015


O fenômeno do Cangaceirismo chegou até mim na condição natural de haver eu nascido no Nordeste do Brasil, na capital do estado de Alagoas, e sido criado nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Bahia, sempre ouvindo histórias sobre os mais relevantes acontecimentos nas terras nordestinas. Todavia o seu conhecimento para mim se ampliou no decorrer de minha já avançada vida, porque fatores profissionais me colocaram no cerne dos estudos sobre cangaceiros. 

O primeiro, foi eu haver sido graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, há quase meio século, a única do País a ter, na cátedra de Medicina Legal, um ponto sobre Cangaceirismo. 

O Segundo, ter-me tornado Oficial Médico da Marinha do Brasil, com curso superior de Guerra Naval, entre outros programas de educação específica militar. 

O terceiro, haver-me tornado Médico Legista do Instituto “Nina Rodrigues”, e cuidador voluntário do Museu Antropológico e Etnográfico “Estácio de Lima”, onde estavam as cabeças dos cangaceiros Lampeão, Maria Bonita, Corisco, Azulão, Maria Dora de Azulão, Zabelê e Canjica. 

O quarto, o destino colocar-me como Assistente do Professor Estácio Luiz Valente de Lima – autor do importante livro “O Mundo Estranho dos Cangaceiros”, do qual tive a honraria de redigir o posfácio da segunda edição – ele catedrático de Medicina Legal naquela Faculdade, da qual recebi, depois, o muito honroso título de Professor Honorário. 

E, finalmente, eu ser hoje o último vivo dos professores de Medicina Judiciária que analisaram aquelas sete cabeças, e ainda examinaram em vida os ex-cangaceiros Labareda e Saracura, com quem trabalhei, respectivamente, naquela morgue e no Conselho Penitenciário do Estado da Bahia, dos quais fiz parte, e a ex-cangaceira Dadá de Corisco, de quem, como profissional, medi o coto do membro inferior direito para a colocação de uma prótese. Assim, os fados quiseram que eu participasse dos estudos sobre aqueles bandidos rurais, sobre quem já escrevi e publiquei alguma coisa.

Bem mais tarde, conheci o casal de ex-cangaceiros Moreno e Durvinha, de cuja filha Nely sou amigo. Formavam, com o ex-cangaceiro Vinte e Cinco, os três últimos e muito idosos sobreviventes do bando de Lampeão, cabendo notar que dois deles chegaram a nonagenários e um a centenário, e ainda lembrados dos tiroteios em que se envolveram nas caatingas. Hoje, passados mais de sete décadas e meia da morte violenta do seu chefe, eles estão falecidos de morte natural. 

Quando eu era menino, a minha avó materna contou-me sobre o medo que atingiu a população do sertão do rio grande do norte, onde ela nascera e vivera, quando uma horda de cangaceiros, capitaneados por Lampeão, avançou terrivelmente pelo interior daquele estado, assaltando fazendas, depredando-as, matando umas pessoas e sequestrando outras, indo tentar invadir a cidade de Mossoró. 

Eu já rapaz, meu Pai me falou de sua experiência de moço, ao ver entrar no Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, o grupo do cangaceiro Mané de Ana Branca, para defender aquela pequena cidade onde morava sua genitora, a simples senhora dona Ana Branca, lugar ameaçado pelo bando de Lampeão, o qual, sabendo daquela resistência, ali não entrou. Naquela ocasião, meu Pai, além de conhecer o chefe do pequeno grupo, conviveu um pouco com dois daqueles seis cangaceiros, com seus chapéus de couro, de aba larga, mas sem enfeites, que se hospedaram no casarão onde ele morava e trabalhava; chegaram a mostrar-lhe as pistolas FN, os rifles papo-amarelos e os punhais espinho de Santo Antônio, de cabo de imbuá e lâmina língua de tatu, que traziam atravessados nas cartucheiras rosário carregadas de balas calibre .44.

Ainda, meu Pai disse-me da amistosa aproximação que teve, quando estudante, cabo da Brigada Pernambucana e servindo na Casa de Detenção do Recife, com um apenado que lhe emprestava livros, o antigo e célebre chefe de bando de cangaceiros, o “Capitão” Antônio Silvino – que assim era chamado até pelo diretor daquele presídio – o qual, em novembro do ano passado completou centenário de haver sido baleado e preso pelo histórico Oficial da Polícia militar do Estado de Pernambuco Theophanes Ferraz Torres, e ter sido julgado, condenado e cumprido mais de vinte anos de prisão, até receber, já idoso, indulto do presidente Getúlio Vargas.

Mais ainda, meu Pai falou-me do encontro que teve, quando conduzia a grande quantia de quarenta contos de réis, nos anos 1930, no interior das Alagoas, com o grupo do cangaceiro Moita Braba, do bando de Lampeão, e, porque a firma, em que ele trabalhava na compra de algodão, havia fornecido um salvo-conduto escrito pelo próprio Capitão Virgolino Ferreira da Silva, ele não foi molestado nem o dinheiro foi roubado.  

Lembro-me que, faz quase sessenta anos, eu, estudante do Ginásio Marista do Sagrado Coração, na cidade do senhor do Bonfim, antiga Vila Nova da Rainha, no centro do sertão da Bahia, onde morou por três décadas a minha família, nas proximidades da qual bivacara no passado o bando de Lampeão, exercia minha curiosidade de adolescente e ouvi os relatos dos amigos de meu pai:

O capitão reformado do exército João Miguel da Silva, também ali residente, que servira como delegado em Jeremoabo no tempo de lampeão, o qual eliminou o bandido Quixabeira e um outro, de cabeça branca, que vivia com uma bem jovem cangaceirinha que o chamava de Pai Véio; o capitão aplicou contra os cangaceiros, no sertão do nordeste baiano, a tática de terra arrasada, a qual deu seu nome à célebre “seca de João Miguel”, em 1932.

O fazendeiro Edgard Gonçalves, filho do notável médico bonfinense Dr. Antônio Gonçalves, que era forçado a acoitar o bando de cangaceiros de Lampeão em uma sua fazenda, ali próximo, onde ele conheceu aquele famoso chefe de bandidos, de quem procurou saber os apelidos junto com os nomes daqueles cabras, e até foi atendido, mas ao chegar em um deles alcunhado de Bom Devera,  o capitão respondeu-lhe bruscamente que o nome daquele cangaceiro era apenas Bom Devera, e cortou a conversa, donde, inferiu Edgard, o cabra seria membro de alguma família daquela região e não queria ser reconhecido.  

O velho comerciante Constantino Tolentino, que negava haver sido coiteiro, como diziam pelas suas costas, e apontou-nos, na antiga Feira do Pau, a velha Engrácia, mãe de dois cangaceiros que morreram baleados, um deles pelo próprio irmão, Cirilo e jacinto de Engrácia. 

O também comerciante Belo Peixinho, que, portando um fuzil “Mauser” e munição, cedidos pelo delegado de polícia de Vila Nova da Rainha, travou, na estrada do povoado da Canoa, um curto combate de onze tiros contra o bando de Lampeão, que, não percebendo que ele estava sozinho, recuou depois de haver atingido e matado a sua burra mula; mais tarde, ele participaria da emboscada em que, certa madrugada, seria morto o cangaceiro Gavião, quando saia do casebre de uma camponesa, numa fazenda ali perto. 

E, em Campo Formoso, escutei o ex-componente da força volante do Tenente Zé Rufino, o contratado Eleutério “Cravo Roxo”, que baleou e degolou, ainda vivo, o cangaceiro Azulão – cuja cabeça eu examinaria muitos anos depois – e me mostrou a faca de arrasto com que o esgorjou, as armas e as joias conduzidas pelo bandido, cujas últimas palavras foram: “Mata, macaco!”.

Meu irmão Laércio, geógrafo, já falecido, que foi um leitor extraordinário, pequeno fazendeiro e habitante de Senhor do Bonfim por mais de meio século, certo dia mostrou-me uma coleção do antigo jornal “correio de Bonfim”, publicado pelo intelectual bonfinense Augusto Sena Gomes, na época em que ali também tinha relevo o maestro e fotógrafo Ceciliano de Carvalho, e ali encontrei muitas notícias documentadas sobre cangaceiros naquela região desde antes do ano de 1930. Naquele tempo, na área viveram, começando a vida delituosa, dois cangaceiros que teriam seus nomes nos jornais, Corisco e Arvoredo, e este último seria morto ali perto.

Por volta de 1961, o Padre Pereirinha – José Pereira de Souza, nascido em Portugal – que fora assistente de Dom Henrique Gouland Trindade, o primeiro bispo daquela Diocese sertaneja, contou-me que, em uma visita pastoral, encontraram na estrada alguns cangaceiros, que se limitaram pedir a benção do prelado.

Vem desses fatos o meu interesse histórico e antropológico pelo personagem cangaceiro e o fenômeno social, político, econômico, cultural e criminal do Cangaceirismo, que foi transformado em alto negócio para bandidos, enquanto, se a sociedade deles contemporânea sofria pavor com a sua aproximação, lamentavelmente a sociedade de nosso tempo chega a demonstrar admiração e até respeito por aqueles assaltantes e terríveis matadores de pobres sertanejos, transformando seus atos criminosos em folclore. 

Depois que me tornei professor assistente de Medicina Legal do meu Mestre Estácio de Lima, conheci e sou amigo dos três maiores pesquisadores brasileiros sobre o assunto, que cito em ordem alfabética, os escritores Antônio Amaury Correia de Araújo, Frederico Pernambucano de Mello, e João de Souza Lima, e com eles tenho tratado acerca daquela gente sertaneja que, devido a várias circunstâncias, viveu fora-da-lei e dentro do negócio do cangaço.  

Durante a minha carreira militar, até chegar a Oficial Superior Médico da Marinha do Brasil, onde servi durante trinta anos, fiz cursos na Escola de Guerra Naval, quando, por motivo da Guerra do Vietnam, estavam sendo desenvolvidos, nos Estados Unidos da América do Norte, altos estudos sobre o conhecimento profundo do homem combatente e o desenvolvimento de sua capacidade de matar outro homem. 

Então, foram criadas técnicas especiais de preparação do atirador de elite para o tiro letal; do soldado de infantaria, para a utilização com eficácia do disparo de arma longa a grande e média distância, ferindo o inimigo de modo a mobilizar mais três outros adversários para socorrê-lo; do uso de arma curta a pequena distância, com dois estampidos seguidos, imediatos e fatais; do emprego da baioneta calada rápida e perfurante do tronco, no combate corpo a corpo; e da aplicação do sabre-baioneta ou da faca especialmente sobre a região cervical do inimigo ou ainda perfurando-lhe o precórdio. Também foi muito estudado, nesses mesmos combatentes, o problema médico e social do choque pós-traumatismo psíquico por assassinato do inimigo. 

Assim, Interessei-me em correlacionar os estudos americanos com o que pude conhecer sobre o combatente sertanejo, fosse ele jagunço de Canudos, soldado das Forças Volantes ou cangaceiro de Lampeão.

É acerca disto que quero falar um pouco nesta conferência, que acontece em lugar muito adequado para se tratar do tema – uma visão multidisciplinar do lutador sertanejo –, porque, tanto quanto na Vila Nova da Rainha, do passado, no alto sertão baiano, também nesta cidade de Piranhas, no sertão alagoano do baixo Rio São Francisco, praticamente na quádrupla fronteira que abrange terras de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, na época, foi sediado um dos Comandos das Forças Policiais Volantes em luta contra os bandos de cangaceiros no território do Nordeste. 

Mesmo assim, o mais importante cangaceiro e principal chefe de bandidos, Lampeão, que, fazia dez anos, fora nomeado de forma espúria Capitão de um Batalhão Patriótico cearense, armou mais de um acampamento nas proximidades daquela e desta cidade, cujas áreas geográficas frequentou e acoitou-se em algumas fazendas da região. 

Aconteceu que, lá, no território da Vila Nova da Rainha, tombaram pelo menos três cangaceiros – mergulhâo, arvoredo, e gavião –, e aqui, em Piranhas, nas minhas Alagoas, muitos cabras do seu bando tentaram invadir, numa investida violentíssima, esta cidade, porém foram rechaçados heroicamente e a bala, havendo sido atingido e morrendo, pouco tempo depois, o cangaceiro Gato, um dos chefes de grupo do bando. Meses depois, bem próximo daqui, morreram outros cangaceiros, antes de o próprio Lampeão, sua mulher e uma parte de seus comandados terem sido mortos na Grota da Fazenda Angico, em vizinhas terras sergipanas, pela tropa alagoana, em cerco memorável sob o comando do histórico Oficial da Polícia militar do Estado de Alagoas João Bezerra da Silva, no dia 28 de julho de 1938, que completará, depois de amanhã, 77 anos.

Gostaria de poder fazer uma breve abordagem diferente daquelas que comumente têm sido efetuadas sobre o fenômeno do Cangaceirismo e acerca do capitão de cangaceiros Lampeão.

Pretenderia, em termos ideais, partindo da evidência de que o homem é também um grande primata, provindo do mesmo tronco ancestral do seu parente mais próximo, o chimpanzé, do bonobo, do orangotango e do gorila, de cujo animal primitivo nos separamos há sete milhões de anos, ainda conduzindo seus genes, tendências para agressão física violenta e letal, competição pela supremacia, guerra impiedosa e dominação, fazer uma Interpretação multidisciplinar e interdisciplinar extensiva, através de perspectivas da Genética; da Psiconeuroendocrinologia, da Fisiologia dos hormônios, da constituição física, do caráter psicológico, do temperamento emocional e da cultura da agressão e da violência; da Biossociologia dos sistemas morais e da Socioecologia comportamental; da Psicologia Social e Criminal; da Transculturalidade, da Etologia ou  Zooética humana, e da microeconomia rural;  enfim, da interação entre os homens do sertão, para tentar expressar o que leva à agressão e à violência pessoal e social, sua origem ontológica, transmissão hereditária e seu reforço cultural e econômico, quando se sabe, atualmente, que as reações comportamentais humanas são 49% genéticas e 51% socioambientais. Porém, numa simples apresentação de tempo limitado é impossível fazê-lo completamente. 

Todavia, pode-se mostrar que o fenômeno do Cangaceirismo foi uma réplica da antiga cultura medieval implantada durante a civilização do couro no desertão, que se tornou sertão, pela penetração dos sertanistas mestiços, filhos, netos e descendentes do português Caramuru e da índia Paraguaçu; também originados dos Garcia D’Àvila e seus curraleiros da Casa da Torre de São Pedro de Rates de Tatuapara; e dos vaqueanos de Dona Joana, da Casa dos Guedes de Britto, causadores da Guerra dos Emboabas, nas Alterosas de Sabará-açu; e dos vaqueiros da Casa de Nisa; e de homens também vindos do litoral, das quebradas do oceano, e dos outros mares, os marotos, que misturaram sua raça com as índias tupinambá e caeté, e investiram pelo interior e cruzaram seu sangue com o das etnias cariri, rodelas, paiaiá e de tantas outras denominações dos bugres, os quais geraram mamelucos, dos quais nasceriam os sertanejos, que avançaram pelas terras do interior, levando com o gado bovino também o bacamarte boca de sino, o facão, o extermínio dos próprios indígenas e o domínio das velhas sesmarias, implantando, a cada cinco léguas percorridas por dia, um rancho que se transformaria em povoado, vila e cidade; homens que alcançaram o Rio São Francisco, tomaram caminhos pelas suas margens, a montante e a jusante, abrangendo de Pernambuco e das Alagoas e Sergipe até as Minas Gerais,  e o ultrapassando ao Noroeste, em demanda dos campos ainda selvagens do Piauí, até as barrancas do Rio Tocantins, no Maranhão, e ao Sudoeste, até Goiás e o distante Mato Grosso. 

Assim, o sertão é uma criação que veio do litoral e o sertanejo um descendente dos marotos com as nativas brasileiras. A cultura da violência em nosso território é muitíssimo antiga, existia entre os nossos indígenas e foi aumentada com as práticas trazidas pelos colonizadores, ainda medievais em plena era do Renascimento na Europa. 

Das cinco “civilizações” que inicialmente se desenvolveram no Brasil – a do açúcar, a do couro, a do ouro e pedras preciosas, a do café, e a da borracha – as três primeiras coexistiram, e a do couro alimentou de carne as outras duas, desbravou o sertão do Rio São Francisco, e fez surgir a figura do coronel, aquele proprietário de fazendas de gado ou senhor de engenhos e canaviais ou dono de carnaubais ou possuidor de lavras de garimpos, homem de largas posses e muitos serviçais, que comprara o título de oficial da Guarda Nacional, instituição criada em 1831 pelo mineiro e Regente do Império Padre Diogo Antônio Feijó, como salvaguarda contra as rebeliões interioranas na época que antecedeu a maioridade do Imperador Dom Pedro II. 

O poder e o prestígio de um coronel eram medidos pela sua fortuna e capacidade de reunir homens sob as suas ordens. O grande momento dos coronéis na vida nacional foi quando foram convocados, com seus servidores, para a formação dos batalhões de Voluntários da Pátria, durante a Guerra da Tríplice e Aliança, entre 1864 (o tratado é de 1865) e 1870, para a qual alforriaram seus escravos negros de origem africana e os fizeram, junto com muitos sertanejos, assentar praça, e depois marchar para as frentes de combate nas plagas do Chaco Sul-americano do Paraguai, onde se celebrizaram, ao lado da famosa artilharia do “Boi de Botas”, do velho e paternal Mallet, os canhões nordestinos do “Treme Terra”, do velho Medrado da Chapada Diamantina.

Após cinco anos, terminado aquele conflito internacional, restaram milhares de veteranos adestrados e também armas, e eles, desmobilizados, voltaram para as suas origens no sertão brasileiro. 
Então, foram esses homens utilizados pelos coronéis para impor seu poder, resolver as diferenças e contendas individuais entre latifundiários, e obter a hegemonia política, questões muitas vezes decididas pelas armas, em um mundo interiorano aonde ainda não chegara a ação corretora da polícia e a aplicação justa da lei. 

Daí se originaram mais duas outras figuras, em geral de chapéu de couro, de aba larga: 
O jagunço, nome derivado de “chunço”, como o sertanejo chamava os chuços ou lanças de ponta de ferro, usado nos piquetes de cavalaria na Guerra do Paraguai; era cabra, não necessariamente criminoso, muitas vezes vaqueiro ou agricultor, que podia agir sozinho, ou em conjunto, a serviço do coronel ou de um líder carismático.

E o cangaceiro, que recebeu este nome porque se trajava sob as alças de bandoleira, embornais e cantis, com bainhas presas a cartucheiras afiveladas na cintura, conjunto chamado de cangaço, nome derivado da canga que pesava sobre o pescoço do boi de carro, e, invariavelmente, portava longo punhal, arma de fogo curta e arma de fogo longa, geralmente com a bandoleira enfeitada de moedas cravadas; era cabra independente e criminoso, em geral procurado pela polícia devido a ter perpetrado homicídio, e que aderia a um grupo de iguais a ele, formando um bando, tornando-se, assim, bandidos. 

Um dicionarista do Cangaceirismo computou a existência, em todo o Ciclo do Cangaço, de 949 cangaceiros, 91 cangaceiras e 178 jagunços, que ficaram conhecidos pelos seus nomes de guerra. 

Os cangaceiros viviam de assaltos, muitas vezes eram sequestradores e estupradores; sempre tinham um chefe, que se impunha pela demonstração de coragem, habilidades de manobras estratégicas, isto é, ações planejadas, e táticas, como sejam, ataques de improviso bem sucedidos, e, sobretudo, pela formação de uma rede de apoio em grandes fazendeiros, pequenos proprietários, comerciantes, políticos e até policiais, seus fornecedores de abrigo, víveres, armas e munições. Eles procuravam causar o maior terror possível, desde a sua aparência ostentando longos punhais – que eram de pouca serventia em uma luta de grupos armados com fuzis, mas utilizados para sangradura de prisioneiros – e armas ameaçadoras, muitas delas enfeitadas, até a perpetração das maiores crueldades contra seus desafetos, como uma forma de produzir horripilância que se divulgaria e levaria seus possíveis adversários à vulnerabilidade psicológica. 

Curioso era o modo de denominar como animais os guerreiros da caatinga: da mesma forma que, pelo sertão afora, os mestiços de branco e negra eram chamados de mulatos, em comparação com os híbridos de cavalo e jumenta; os sertanejos tostados pelo sol eram chamados de cabras, em referência aos caprinos resistentes dos carrascais; e os soldados da polícia do Nordeste, de qualquer etnia, herdaram o apelido pelo qual os paraguaios chamavam os militares brasileiros no campo de batalha – macacos.
   
Todo cangaceiro tinha uma história para justificar a sua vida de crimes. Sempre apresentava razões para ter cometido seus delitos. Contudo, todos aqueles bandidos consideravam que seu meio de vida era, como diziam, o cangaço, e sua profissão era de cangaceiro, como consta oficialmente em suas declarações nos processos judiciais. 

As cangaceiras, isto é, as mulheres daqueles cangaceiros, em geral não eram violentas, tampouco guerreiras, e sim um tipo especial de vivandeiras, que formavam família com seu homem, como aconteceu muitas vezes entre as mulheres e os homens em campanhas acontecidas em várias partes do mundo.

O mais destacado e importante de todos os cangaceiros foi o sertanejo pernambucano Virgolino Ferreira da Silva, alcunhado Lampeão, acima citado, que se dizia vítima de injustiça por um delegado paisano de polícia de sua cidade, a antiga Vila Bela, atual Serra Talhada, seu vizinho com quem tivera uma questão, que o levara a ter uma vida criminosa, a qual durou mais de vinte anos de lutas contra forças policiais e civis, em seis estados da federação, constituindo um bando, que se dividia em grupos e subgrupos, com forte rede de apoio, abrangendo vasta área da Região Nordeste do Brasil. 

Ele falava do assassinato do seu pai, em terras alagoanas, como a causa de se haver tornado cangaceiro; entretanto, pesquisadores descobriram que, quando o seu genitor foi morto em um ataque policial à fazenda onde estava, Lampeão e alguns irmãos já eram, há anos, experimentados cangaceiros.

Os estudiosos referem três fases cronológicas de sua vida de bandido: a primeira, participando dos bandos dos chefes de cangaceiros Sinhô Pereira e Porcino, entre os estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas; a segunda, ele próprio chefe de bando de cangaceiros, em atividade nos territórios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe; a terceira, após ele e um pequeno grupo remanescente de seu bando, atravessar o rio São Francisco, passando a atuar nos estados da Bahia, Sergipe e Alagoas.

Imputam ao bando de Lampeão, em duas décadas, a devastação de algumas centenas de propriedades e a responsabilidade por mais de um milhar de assassinatos, número aproximado da quantidade de cangaceiros que perdeu nos combates. Um analista creditou-lhe ter praticado, pessoalmente, acima de duzentos homicídios. 

Como foi dito acima, ele foi morto com sua mulher e mais nove cabras, quando atacado o bando, de quase sessenta cangaceiros, no coito da grota de Angico, aqui próximo do Rio São Francisco, por quarenta e cinco soldados de três Forças Volantes da Polícia Alagoana, que dispararam, a média distância, sobre os bandidos, em torno de 3.500 tiros, à razão média de 300 projéteis por cangaceiro abatido, o que não implica que seus corpos hajam sido crivados de balas. 

Nas refregas entre cangaceiros e soldados volantes, era raro acontecerem muitas mortes, como nos casos dos combates de Serra Grande, Serrote Preto, Lagoa do Touro, Maranduba ou Angico. Entretanto, das cabeças que examinei, apenas a de Lampeão recebera bala que produzira fratura na face e no crânio. É verdade que a cabeça da cangaceira Enedina, morta em Angico, a qual não examinei, mostrava, em fotografias, ter tido destruída, aparentemente por projétil de grande velocidade de arma de fogo, a calota craniana. E o cangaceiro Canjica, que examinei, estava com metade do crânio destruída por bala de fuzil, mas ele fora atingido em outro combate, anos antes, na Lagoa do Lino.

No caso de Angico, foram usadas duas metralhadoras portáteis e um fuzil metralhador, que são armas de disparos muito rápidos. Como aconteceu com o uso das moderníssimas metralhadoras na guerra do Vietnam, na qual cada vietcongue morto consumiu o número fantástico de cinquenta mil tiros dos soldados norte-americanos. 

Todas essas cifras são sempre muito relativas, mas todas elas têm explicação científica. O número de disparos efetuados é calculado pela dotação de munição de armas de fogo, Isto é, a quantidade de cartuchos recebida pela tropa e efetivamente utilizada, dividido pela quantidade de inimigos abatidos.

Lembremos que o primeiro grande capitão militar da História, o rei e general macedônio Alexandre Magno, por uma década e meia, conduzindo setenta mil guerreiros através de quarenta mil quilômetros, da Europa até a Ásia Menor e a fronteira da Índia, em todas as suas campanhas bélicas, inclusive contra os persas, que eram grandes arqueiros, perdeu apenas, do seu exército, 700 soldados. É que seu pai, o Rei Felipe da Macedônia, antes dos romanos terem aperfeiçoado a formação militar em tartaruga, criara a falange macedônica, com lanças de cinco metros, defendida pelos escudos para o alto, tendo suas longuíssimas hastes em riste. 

Os mosqueteiros do século XVIII, com armas de fogo de alma lisa, acertavam no meio de uma unidade militar inimiga, em linha de 33 metros de extensão e a 225 metros de distância, apenas 25 % dos tiros; quando a 150 metros, somente em 40 % dos disparos; e a 75 metros, não mais que 60 % das vezes.

Na segunda metade do século XIX, durante a Guerra Franco-Prussiana, os gauleses atiravam 119 vezes para acertar um germânico.

Pouco tempo depois, ainda no século XIX, na luta das tropas norte-americanas, armadas de rifles de repetição, contra os bravios guerreiros índios, eram disparados 252 tiros para conseguir acertar um indígena. 

Os soldados britânicos na África, já no final do século XIX, também com fuzis de cano com alma raiada, em luta contra as ondas sucessivas de zulus que avançavam, atiravam quase a queima-roupa e acertavam apenas 50% dos projéteis, sendo contabilizados 13 tiros para cada nativo morto.

Quanto aos cangaceiros, muitos deles lutaram durante anos e nunca foram feridos pelas balas dos seus inimigos. 

Certa vez, os cangaceiros Corisco e Luiz Pedro, adiantados alguma distância do bando, iam por uma beira de estrada marginada por cerca de arame farpado, quando se viram, de súbito, na frente de uma força volante, que imediatamente os atacou com uma chuva de balas, e eles recuaram atirando, porém, ao passarem pela cerca para ganharem o mato, Luiz Pedro ficou enganchado e com os movimentos limitados, e Corisco foi tirá-lo daquela grande dificuldade, enquanto se defendia disparando o seu mosquetão. O entrevero demorou alguns minutos, os dois escaparam sem qualquer ferimento por projétil, e tampouco os policiais foram feridos.

Diferente tem acontecido com os atiradores de elite, que gastam, em média, uma bala e meia por inimigo morto. São combatentes muito especiais. Treinam continuamente para manter a precisão da pontaria sobre o alvo. Antigamente agiam sós e usando apenas a mira da sua arma, contudo atualmente agem em equipe e com apoio de equipamento óptico e de comunicação e localização eletrônica.

Ocorre-me que, em 1805, foi um deles, francês, que, da gávea de um navio franco-espanhol, com um longo fuzil de grosso calibre e alma lisa, mirou as condecorações sobre o peito do almirante Horácio Nelson, que se encontrava na proa de um navio britânico, atirou e o atingiu, fazendo morrer horas depois o maior herói naval inglês.

Dez anos mais tarde, o Imperador da França Napoleão, vestindo uniforme verde de coronel dos granadeiros, próximo do campo belga onde pouco depois ocorreria a célebre batalha de Waterloo, percebeu que um fuzileiro do seu exército, também com uma arma muito longa, mirava, à distância, o General Duque de Wellington, comandante do exército britânico, que trajava como civil e caçador; então, o antigo General Bonaparte não permitiu aquele tiro e disse que os comandantes militares têm mais o que fazer do que atirarem uns nos outros.

NA Primeira Guerra Mundial, um só atirador de elite canadense matou 378 alemães.
na Segunda Guerra Mundial, um atirador finlandês eliminou 505 russos; um atirador soviético abateu 400 germânicos; e duas atiradoras de elite russas mataram, respectivamente, 59 e 534 alemães, este último o maior dos recordes individuais alcançados por um militar matador, e foi u’a mulher que, sozinha, matou mais de meio milhar de homens.
Recentemente, na Guerra do Iraque, dois atiradores americanos atingiram com disparos mortais, respectivamente, 93 e 255 alvos.

Para citar uma estatística de atirador do sertão, lembro que o ex-cangaceiro Moreno, o qual, antes de se tornar chefe, foi cabra do grupo de Virgínio Moderno, do bando de Lampeão, e considerado de boa mira, contabilizou, em cinco anos de combates, apenas 21 mortes.

O ex-cangaceiro Saracura, do grupo de Labareda, do bando de Lampeão, que também atirava apreciavelmente, disse-me que, mesmo em alguns anos de luta, matou poucos adversários.

Todos eles dispararam de média a longa distância. O recorde mundial de pontaria e espaço é de um atirador de elite norte-americano, na Segunda Guerra Mundial, que, mirando através de uma luneta telescópica, acertou, colocando o projétil através da luneta da arma do seu adversário, no olho de outro atirador de elite, japonês, que estava a dois e meio quilômetros de distância.

Como se sabe, Lampeão era cego do olho do lado direito; o ex-cangaceiro Saracura contou-me que assistiu aquele chefe de bando fazer pontaria e atirar de mosquetão em um soldado de Força Volante, que estava sobre um serrote distante cerca de um quilômetro, e derrubá-lo. 
Desde o passado, os oficiais evitam que suas platinas e insígnias sejam avistadas pelos atiradores, o que fez com que, na Guerra de Canudos, durante os combates, alguns deles rasgassem seus galões. A mesma dificuldade para serem identificados desenvolviam os cangaceiros e também as Forças Volantes, vestindo-se iguais. E, pelo mesmo motivo, na Segunda Guerra Mundial, certo general norte-americano não usava os sinais de seu posto e, durante os entrechoques, portava um fuzil comum, arma de soldado. 

Certo pesquisador publicou os achados de que uma quantidade expressiva de fuzis de ante carga usados nas Guerras Napoleônicas e poucos na Guerra da Secessão, tinham acumulado no interior da alma do seu cano alguns projéteis, e interpretou esse fato como resultado de emotividade exacerbada, grande ansiedade que acometia o soldado atirador na hora da luta, o qual, para disparar a sua arma, precisava carregá-la, enfiando pela boca do cano uma carga de pólvora, logo depois bucha, bala e, novamente, bucha, e, após socá-los com uma vareta, colocar uma espoleta no ouvido da arma, engatilhar o seu cão e apertar o gatilho; nem sempre o militar conseguia proceder a sequência e, muitas vezes, apenas colocava o projétil no cano e a espoleta no ouvido do fuzil, engatilhava e disparava, acalmando-se com a pequena explosão da espoleta e acreditando haver atirado um projétil contra o inimigo, e repetindo a mesma ação, assim entupindo de balas o cano de sua arma, evidentemente sem acertar ninguém. 

Outro pesquisador fez uma observação muito importante, de que a maioria dos soldados abatidos em campos de batalha havia sido atingida pelas costas, com tiros dados por detrás.  

Todos esses dados conduziram à necessidade de aprofundamento de estudos sobre a conduta humana durante um combate nas guerras.

Embora o homem sertanejo, em geral, seja forte, curtido pelo seu meio ambiente rústico e cercado pela caatinga, até algumas vezes enfrentando feras, não era jagunço, cangaceiro nem volante quem queria ser e sim aquele que podia ser. Tinha de possuir condições constitucionais orgânicas, glandulares, e psíquicas para o ofício. Muitos tentaram ser bandido ou soldado e não prosseguiram na atividade, abandonando-a.

Devido a possuir o físico adequado, qualidades especiais de inteligência, raciocínio rápido, coragem pessoal e liderança como combatente, Lampeão foi o maior e mais conhecido dos chefes de bandos de cangaceiros, exemplo extraordinário de competência estratégica e tática, articulador brilhante de uma rede de apoio para as suas atividades, que durante duas décadas, atravessando seis estados do Nordeste do Brasil, enfrentando as forças públicas policiais volantes, e também as forças particulares de cidadãos de algumas cidades e fazendas, soube sobreviver na vida de crimes, aproveitar os meios de propaganda ao seu alcance, tornando-se de personalidade histórica um personagem lendário, conseguiu exercer um poder independente, possuir notáveis recursos financeiros, e expandir os seus bandidos, até ser traído, cercado e atacado inesperadamente em uma madrugada no seu esconderijo, perto daqui, na Fazenda Angico, e morreu sem nem ter conseguido reagir. 

Lampeão jamais expressou pensamento político ideológico ou de luta de interesse social coletivo dos camponeses, mas sim, soube forçar e fazer alianças e sociedades com alguns grandes fazendeiros, políticos e policiais, negociar com importantes firmas comerciais, inclusive estrangeiras, às quais vendia salvo-condutos, e receber dinheiro como propagandista de certa empresa jornalística e um laboratório farmacêutico. 

Havia um prêmio de 50 contos de réis pela sua cabeça, oferecido pelo Governo da Bahia. Porém tinha ainda o papel-moeda em notas altas que os cangaceiros conduziam nas suas bolsas papo de ema, mais o ouro e as pedras preciosas das joias roubadas colocadas nos seus dedos e em caixas de flandres nos seus embornais. Era um valor capaz de atiçar a cobiça de qualquer componente da Força Volante, principalmente sabendo--se que quem abatesse um cabra ficava com os seus pertences. 

O sertanejo antigo era um homem puro; podia até, circunstancialmente, matar, porém não assassinava outro homem por sangradura jugular com arma branca nem o decapitava. Havia uma crença que aqueles que morriam por arma branca tinham suas almas levadas para o inferno. 

Também os soldados desmobilizados que voltaram da Guerra do Paraguai não utilizavam esses métodos. A sangria das vítimas, o degolamento e a decapitação são procedimentos de brutalidade trazidos pelos charqueadores gaúchos, que participaram dos grupos que lutaram ferozmente na Revolução Federalista do Sul do Brasil e depois se engajaram nas tropas do Exército com que vieram lutar na Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, apavorando os jagunços capturados, que foram surpreendidos com a crueldade daquilo que foi chamado de gravata vermelha. 
Trouxeram três tipos de sangramento: por fora, cortando o pescoço de uma orelha até a outra; por dentro, enfiando a faca de ponta com o gume voltado para a frente, abaixo da orelha até o outro lado, e seccionando para diante o pescoço; e como bicho, perfurando e penetrando o punhal no vão, o triângulo supra clavicular, até alcançar as víscera torácicas. 

Tanto os cangaceiros como as Forças Volantes adotaram o sangramento e a decapitação.

Como era usual na época e no sertão, o modo de provar a morte de um bandido notável, sobretudo se havia alguma premiação, era a apresentação da sua cabeça. 

Lampeão e os outros cangaceiros mortos naquele cerco (no qual, lamentavelmente, também morreu um soldado), sua companheira, que passou a ser conhecida como Maria Bonita, e mais nove cabras, foram decapitados pela polícia e, poucas horas depois, pela primeira vez, as suas cabeças estavam fotografadas, na escadaria, hoje modificada, do prédio da Prefeitura Municipal de Piranhas, no mesmo dia de sua morte. 

As cabeças continuaram fotografadas outras vezes, depois levadas para mais algumas cidades, expostas e novamente fotografadas, até chegar a Maceió, capital de Alagoas, onde foram examinadas e também fotografadas pelo médico legista alagoano Doutor José Lajes Filho. 

Então, decidiu-se transportar apenas as cabeças de Lampeão e Maria Bonita para o Instituto “Nina Rodrigues”, em Salvador, capital da Bahia, onde foram examinadas pelo Professor Estácio de Lima e seus assistentes, outras vezes fotografadas e, depois, embalsamadas. 

Passados 25 anos, tive ocasião de analisá-las, algum tempo antes de serem inumadas, o que aconteceu 30 anos depois da sua morte, e mais tarde, 24 anos após, pude, a pedido de sua família, exumá-las e, então, estudar o interior do crânio de Lampeão, já então exposto pela fratura cominutiva, no qual verifiquei não existir no osso occipital a antigamente famosa marca da criminalidade inata, a Fosseta de Lombroso.

Aquelas cabeças estão hoje com a sua filha e as suas netas. 

Quando, em Alexandria, no Egito, a cabeça decapitada do general romano Pompeu, então inimigo de César, foi apresentada pelo faraó Ptolomeu ao senhor de Roma, este mandou perseguir e matar os assassinos do seu inimigo que já fora seu antigo amigo. 

Na época em que Lampeão foi morto e decapitado, estava acontecendo a Guerra Civil Espanhola, e muitos daqueles combatentes ibéricos se fizeram fotografar tendo aos seus pés cabeças decapitadas de seus inimigos, como troféus. 

Séculos depois de César, e quase oitenta anos depois da decapitação dos combatentes espanhóis abatidos e daqueles cangaceiros mortos, vemos pela internet e pela televisão, um homem da dita civilização do primeiro mundo, com formação educacional superior numa das mais famosas e respeitáveis universidades europeias, sem qualquer sinal de desequilíbrio mental, decapitar vivos – não à guilhotina, instrumento criado no tempo da Revolução Francesa para amputar rapidamente pescoços – mas à faca curta, fria e lentamente, pela técnica de sangramento por fora, meia centena de seres humanos, alegando razões político-religiosas, em uma praia do Oriente, cujas águas ficaram vermelhas do sangue que jorrou. 
   
Fazia mais de um século que Lombroso, famoso professor, criador da Escola Italiana Positiva de Medicina Legal e da Antropologia Criminal, encontrara, durante autópsia, no crânio do homicida Giuseppe Villela, uma depressão anatômica occipital que o induzira a pensar nos sinais orgânicos da criminalidade, e eu a havia visto quando examinei aquele crânio, no seu antigo laboratório, em Turim, no Piemonte, Itália, no ano de 1973. 

Pela Teoria da Evolução, de Charles Darwin, na Natureza apenas sobrevivem os mais aptos na luta pela vida. Pela Teoria da Antropologia Criminal, de Césare Lombroso, a ferocidade humana tem origem no homem primitivo. Pela Teoria da Sociologia Criminal, de Enrico Ferri, a sociedade tem os criminosos que ela mesma forma. 

De certo modo, todas elas parecem estar certas.
A natureza é, ao mesmo tempo, bela e violenta, e para os seres viverem é necessário que outros seres morram, inclusive para nutrir seus matadores.

Naturalistas notaram que, no reino animal, acontecem conflitos entre machos da mesma espécie disputando a hegemonia sobre um grupo de fêmeas para formação de harém, e que as lutas físicas decorrentes, por mais violentas que pareçam ser, podem até causar ferimentos, porém não terminam em morte, todavia sempre em supremacia de um sobre o outro, que se afasta vencido.

Todavia, os biólogos observadores, certa vez, notaram que, cedo da manhã, um grupo de sete indivíduos liderados por um mais robusto, partiu por dentro de u’a mata, sorrateiramente, em busca de um sítio onde estavam outros sujeitos, e, de surpresa, investiram e os atacaram com fortes pancadas aplicadas com as mãos, mordidas, utilização de paus e pedras, causando ferimentos graves e mortes, capturando fêmeas para depois força-las à cópulas, tomando seus alimentos e desalojando os sobreviventes para outro território. 
  
Os indivíduos atacantes eram chimpanzés machos e os sujeitos assaltados eram todos também chimpanzés machos e fêmeas. E, semelhante ao que acontece com predadores, os agressores excitavam-se e partiam para perseguir e matar as suas presas que tentavam fugir.

Determinadas pesquisas sobre etologia dos primatas revelaram que o comportamento dos macacos tem muito do que se acreditava ser procedimento apenas dos homens.

Estudos de biologia molecular citológica demonstraram que os humanos têm o seu código genético através do ácido desoxirribonucleico e de quatro bases orgânicas combinadas, a composição 98,9 % igual ao daqueles símios, denunciando um ancestral comum.

Puderam registrar, também, que os principais animais que assassinam os da sua própria espécie são os homens e os chimpanzés. 
Entretanto, anotaram que machos de muitas outras espécies animais também matam seus semelhantes, inclusive praticam frequentemente o infanticídio de filhos de outros machos, para imporem apenas a sua descendência, mas raramente os matam quando adultos.  

No que nos tange como humanos, a evolução fez com que a descendência de um tronco primata se dividisse em ramos paralelos e, naqueles galhos da árvore genealógica dos diversos antropoides, quando houve competidores no mesmo território, a seleção natural fez sobreviver apenas um, justamente aquele que foi mais apto para exterminar os seus parentes que com ele competiam, e o matador sobrevivente conhecemos atualmente com o nome científico de “homo sapiens sapiens”, que ainda traz em seu cérebro o primitivo núcleo nervoso central dos reptilianos e as conexões dendítricas das feras.  

Esta é a grande tragédia humana: ter em seus genes a ferocidade animal, que se manifesta em determinadas situações, quando se inibe de todo o cérebro superior e predomina nas suas ações o cérebro primitivo. 

A evolução cultural, civilizacional e social do homem fê-lo criar normas de conduta moral, individual e coletiva, inclusive as religiosas, com o decorrente controle pacífico de suas ações na sociedade.

Todavia, o comportamento desviante se manifesta ali e acolá, e a sociedade tem de empregar meios coercitivos fortes para o controle de tal conduta.

Na época atual, como resultado das alterações sociais, a violência entre os homens está absolutamente banalizada, mostrada em todos os cantos do mundo, causando espanto aos cientistas comportamentais, os antropólogos e os sociólogos. 

Eles, em suas pesquisas iniciais, verificaram que, aparentemente, nas condições de estabilidade, com alimento, abrigo e companheiros, tanto quanto os símios, normal e comumente, não são agressivos e letais, os seres humanos, do mesmo modo, seriam pacíficos e teriam repulsa em causar a morte do seu semelhante. Mas nem sempre é assim.

Prosseguindo seus estudos sobre o procedimento natural de símios e de humanos, em condições de superioridade numérica ou de estresse, no caso dos homens, realizados com militares participantes de combates em várias épocas e diferentes lugares do mundo, têm mostrado curiosos resultados, alguns aparentemente contraditórios.

Os grandes primatas, quando em número superior de indivíduos, costumam atacar e matar seus vizinhos de território; porém, quando há um equilíbrio numérico, evitam a invasão. 

Os humanos, quando em bandos, do mesmo modo, atacam e matam outros homens encontrados em menor quantidade, mas esquivam-se de lutar quando deparam muitos reunidos.

E os humanos, quando convictos da impunidade, facilmente cometem qualquer crime, particularmente roubo, estupro e homicídio, se este for executável sem risco de dano em seu corpo.

Observaram os pesquisadores que aqueles a quem é dada por uma autoridade a missão de matar um seu semelhante, evitam o contato físico e o olhar de sua vítima, e têm grande resistência íntima em enfiar um punhal ou algum outro instrumento perfurante, penetrando no corpo do adversário, e menos resistência em cortar com uma lâmina a superfície corporal do inimigo, e muito menos resistência em atirar nele, e menor resistência se o tiro for pelas costas, enquanto a sua vítima tenta fugir, e ainda menor resistência em matar atirando de longe.  

Todavia, essa resistência íntima é quebrada pela presença vigilante da autoridade ordenadora ou de um seu preposto ou mesmo de um colega do assassino, mais ainda se estiver em grupo, pois o grupo reunido atiça as mais selvagens manifestações de crueldade dos seus componentes, como acontece com os símios e as feras carniceiras durante a perseguição de uma presa. 

E torna-se mais fácil matar à distância, com a aquiescência do grupo, e a quem não seja do mesma etnia ou cultura e não se conheça e esteja de costas e fugindo. 

Analistas provaram que o grande morticínio nas guerras se deve aos bombardeios terrestres, navais ou aéreos, e que, diante do que aqui foi dito sobre a feroz ascendência animal dos humanos, parecem paradoxais aqueles achados de baixo índice de agressividade armada dos batalhões, com relativamente pequena estatística de mortes produzidas de perto. Quando acontecem, na maior parte das vezes, devem-se às rajadas de metralhadoras.

Constataram que numerosos combatentes próximos do inimigo atiram para espantar e não para matar o adversário, contentando-se em deflagrar os disparos sobre as cabeças deles ou bem próximo, evitando, sempre que possível, atingi-los. Também, que, nos ataques a baioneta calada, muitos combatentes procuram inicialmente utilizá-las como tacapes, depois como instrumentos cortantes, para, em último caso, produzirem perfurações. E ainda, que alguns membros de pelotões de fuzilamento costumam mirar fora do corpo do condenado, mesmo sabendo que entre as armas do grupo de execução uma delas está carregada apenas com cartucho de festim.

Da mesma forma que os animais de outras espécies não matam seus semelhantes, é difícil, em princípio, para os símios e para os homens, eliminarem os da mesma espécie. É preciso que acreditem que são diferentes as vítimas. É o que acontece com a risada deflagrada no homem pela queda de outro homem, mas estranho, um traço do sadismo do animal de espécie mais forte que se diverte em maltratar o de outra espécie mais fraca. 

A mais forte condição de alguém poder evitar a morte por outrem é identificar-se com o pretenso matador.

Diferente é com outras espécies com as quais não se identificam, dentro ou fora de seus territórios, sobre as quais investem ferozmente, como todos os animais fazem, sendo que alguns símios e os homens usam alguns instrumentos ou ferramentas como armas. 

Podemos perguntar: em que condições, situações ou circunstâncias o homem mata? 

A primeira é se estiver defendendo a própria vida ou a de outrem ou um bem, propriedade, território, convicção ou fé.

A segunda, se estiver fortemente impelido pelo ódio ou indignação causada pela sua vítima.

A terceira, se estiver sob ordens e fiscalizado por uma autoridade superior.

A quarta, se estiver inserido em um grupo predatório.

A quinta, se tiver a íntima disposição de cometer um latrocínio.

A sexta, se tiver insanidade mental com tendência homicida ou suicida.

Mas sempre terá de construir na sua mente uma justificativa moral, uma explicação para convencer-se que não poderia deixar de cometer aquele assassínio. 

Em todos esses casos ele haverá de ter, além do motivo, os meios e a oportunidade, e, quase sempre, com poucas exceções, ele terá de, em sua mente, desumanizar a sua vítima, com ela afastando qualquer identificação, mesmo tendo com ela relacionamento ou, pelo menos, sendo do mesmo meio.

Quando o homem mata pela primeira vez, recebe forte emoção psicossomática, que altera para sempre a sua posição ética, colocando-o na situação de sempre haver a possibilidade de voltar a cometer outro assassinato. 

Exceção única que se conhece é a dos assassinos passionais, que parecem descarregar toda a sua fortíssima emoção na produção da morte de sua vítima, e rarissimamente serão capazes de matar outra vez pelo mesmo motivo.

No sertão nordestino, na área rural mais distante, ainda hoje submetida a impressões psíquicas culturais antigas, com os códigos de convívio social lastreados em conceitos de honra pessoal, palavra empenhada e respeito à pureza da mulher no seio da família, o homem se ressente e se indigna se as regras não forem cumpridas. Há um século, era muitíssimo mais grave, quando aconteciam reações com atitudes medievais. 

E as desculpas para os crimes cometidos tinham como referência o rompimento daqueles padrões de convivência na sociedade. Sempre os cangaceiros citavam a quebra daquelas normas como motivo de terem ingressado no Cangaço. 

Na verdade o cangaceiro não apresentava o menor respeito àquelas regras sociais, não acatava as normas de convívio, não aceitava a autoridade governamental nem a judiciária e tampouco a policial. Ele tinha uma liberdade bárbara, na qual reconhecia unicamente o poder relativo de seu chefe. 

Do mesmo modo como um comandante de Força Volante convocava um sertanejo recomendado para formar com a sua tropa, um chefe cangaceiro convidava um sertanejo que conhecia para participar de seu grupo, mantendo assim, sob suas ordens, um contingente médio de oito homens em armas. O cabra corria o mesmo perigo em que incorria o soldado da Força Volante. Apenas ele era o perseguido e o outro o perseguidor. Os ganhos materiais do cangaceiro não eram regulares, mas, em muitos casos, bem maiores do que os do policial militar.  

Pesquisadores registraram que o cangaceiro, em geral, via o cangaço como um bom negócio, mas temia pelos pecados que devia pagar, e apegava-se aos santos e as rezas, procurando proteger-se de cair nas mãos de seus inimigos, ser sangrado e decapitado. Também o soldado das Forças Volantes tinha receio de cair nas mãos de um bandido, pelo qual sofreria o mesmo tratamento.

Muitas vezes os grupos se reuniam em bando, sob a chefia do cangaceiro mais conhecido por todos, em geral aquele que tinha o melhor e maior grupo, de comum acordo com os outros chefes de grupos. Isso acontecia quando estavam previstas grandes empreitadas, como a invasão e o assalto a vilas e cidades. 

Assim, o sertanejo era o tipo de homem que servia tanto para ser um soldado das Forças Volantes como para ser um cangaceiro. Trazia toda a carga genética, a tradição histórica e a herança cultural do humano mestiço nascido no sertão, sem qualquer outra característica que viesse a indicar uma tendência especial para o crime. 

A morte e o sexo são os dois maiores polos de atração do animal irracional e do ser humano. A cultura no homem parece ter exacerbado esses dois aspectos, tornando-os especialmente fascinantes.  

O costume de serem os cangaceiros vistos como heróis por alguns, vem desde que foram enaltecidos através dos folhetos de cordel dos poetas populares e cantadores nas feiras nordestinas. 

Há 70 anos, surgiu em Israel uma ciência denominada de vitimologia, enquanto quase ninguém, em nosso meio, até hoje, se referiu aos pobres sertanejos comuns agredidos, vilipendiados, humilhados, desmoralizados, roubados, que tiveram seus lares violados, depredados, suas mães, irmãs, mulheres e filhas estupradas pelos cangaceiros, e foram por eles cruelmente torturados e assassinados, o que ocorria, também, algumas vezes, praticado por certos membros das Forças Policiais Volantes. 

Por isso, dentro do revisionismo atual dos estudos sobre o Cangaceirismo, é importante chamar a atenção – como agora já está se fazendo – para a consideração que se deve ter para com as desgraçadas vítimas dos cangaceiros, ao lado das observações científicas sobre as condições etológicas, mesológicas, sociais, psicológicas, culturais e econômicas de que decorreu aquele banditismo rural. 

Deste modo, nesta reunião de estudiosos do Cangaceirismo na cidade de Piranhas*, é notável que sejam lembrados aqueles infelizes nordestinos, pobres e esquecidos, que foram vilmente massacrados, às 20h00min do dia 02 de agosto de 1938, a menos de dez quilômetros de onde estamos, decapitados pelo cabra chamado Velocidade, de nome Manuel Pau Ferro, por ordem do seu chefe, o cangaceiro Corisco, de nome Cristino Gomes da Silva, alagoano do clã sertanejo baiano dos Cleto, atingindo aqueles desgraçados moradores que eram da Fazenda Lagoa dos Patos, então pertencente ao sogro do Tenente João Bezerra da Silva, que comandou a luta de extermínio ao bando de Lampeão, o fazendeiro e político Antônio Correia de Britto, conhecido como Coronel Antônio Menino.

Que as orações rogando as bênçãos de Deus recaiam sobre as almas e memórias daqueles inocentes mártires que aqui foram sacrificados, o vaqueiro Domingos Camilo Ventura, os seus filhos Manuel, Odon e José, a sua esposa Guilhermina, a sua filha Valdomira e a sua nora Maria da Glória.

A lembrança das vítimas daquela crueldade é um bom sinal dos novos estudos sobre o Cangaceirismo.

* Assista abaixo o relato do Senhor Celso Rodrigues, que revive os acontecimentos quando era menino, na cidade de Piranhas, Alagoas: