Raul Meneleu


A fé se manifesta de várias
maneiras e pode estar vinculada a questões emocionais tais como reconforto em
momentos de aflição desprovidos de sinais de futura melhora, relacionando-se
com esperança e a motivos considerados moralmente nobres ou estritamente
pessoais e egoístas. Pode estar direcionada a alguma razão específica que a
justifique ou mesmo existir sem razão definida. E, também não carece
absolutamente de qualquer tipo de argumento racional.
Em referência continuando nas
palavras do escritor Nertan Macêdo "Quando o sol se empina e lhe vai em
raios verticais sobre a cabeça, a sombra minguada aos pés, nos pousos, nas
estradas, nos combates, ele verga os joelhos, genuflexo, no chão duro, pende a
cabeça humilhada e, contrito, com a grande mão ossuda e escura a bater no
peito, reza com fervor. Os companheiros, em torno, fitam-no cheios de respeito
estranho. Se a cavalo perlustra erma
estrada, quando o seu relógio marca
as doze horas, ele se
apeia e, genuflexo na areia quente do caminho, curva a cabeça a se comunicar com as misteriosas forças do
Além. Mesmo no mais renhido tiroteio, abandona o fuzil e suplica a não sei que
santos ou diabos lhe continuem a conservar o corpo fechado".
Era um homem cismado e mantinha
suas crenças pessoais, talvez adquiridas em sua formação religiosa, assim como
tantos sertanejos possuíam. Era também sectário enquanto não aceitava a
religião africana. Dentre as muitas estórias do Capitão, conta-se que, numa
noite, quando descansava da caminhada, ouviu toadas de candomblé no meio do
mato. Não via aquela a sua religião. Aproximou-se de mansinho, surpreendendo
alguns fiéis em torno de um pai-de-santo, um negro. Espantou-se, obrigando o
feiticeiro a comer a galinha sacrificada, expulsou-os dos seus domínios, em
nome da Virgem Maria e do Padre Cícero Romão Batista. No entanto, de uma feita,
na povoação de Novo Amparo, arranchou-se numa casinha. Enquanto comia o almoço,
fez arder nos cantos da sala quatro velas. Acreditava nas rezas-fortes que
tornam o corpo imune às balas e perigos. Quem sabe se isso é verdade? Tantas
estórias existem da vida do Capitão!

Oficialmente, todavia, a presença do Cão no Brasil só
foi reconhecida e proclamada muitos anos depois da Descoberta. Cascudo, com razão,
assinala tal reconhecimento e proclamação oficiais, no “Documentário da
Visitação do Santo Ofício” — dois volumes da Bahia, um de Pernambuco —, os
quais registram as comunicações do Tinhoso com amigas bruxas — "algumas
sabendo até criá-los em vidrinhos, como filhinhos, tornando-se o familiar,
espécie de diabinho doméstico, servo da feiticeira".
No país de Lampião, a figura
clássica, a imagem tradicional do Diabo é mesmo aquela descrita pelo escritor
potiguar: negra, magra, chifruda, de rabo, casco, espeto, assumindo tanto as
formas de um bode, como as de um morcego, as de um porco, as de uma mosca, de
um cachorro grande ou de um gato. Só não pode assumir, no universo nordestino,
as formas dos animais abençoados, historicamente ligados ao nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo: o boi, o jumento, a ovelha, o galo.



Gustavo Barroso sintetiza bem a
imagem do Tinhoso na alma sertaneja, com as seguintes palavras: “Geralmente, o demônio sertanejo, como o de
todos os povos, é criado a sua imagem e semelhança. Anda, por isso, encourado
como os vaqueiros, monta a cavalo, é especialista em velhacadas de cigano,
gosta de cachaça, come picadinho de bode com jerimum, dança nos sambas, campeia
o gado, faz a côrte às moças, e desaparece sempre com um estouro e um fedor
terrível de enxofre ou de chifre queimado.”

Nertan Macêdo liricamente disserta “Esse
catolicismo peninsular transplantou o Diabo ao mundo da solidão sertaneja e,
anjo caído nas trevas, entrou de rijo na poesia cantadoresca, com suas gestas
de bichos e cangaceiros. Afirmou-se como um participante ativo da ordem moral
dos confinados, do caráter mesmo daquelas gentes, de quem o cronista admirável
escreveu, certa vez: "Caldeadas a índole do colono e a impulsividade do
indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou,
pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente
modificados apenas consoante as novas exigências da vida. E ali estão com as
suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às
tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até ao fanatismo, e o
seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três
séculos..."


Tudo isso veio a alucinar o
sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o. Conta-nos Nertan Macêdo
que o ilustre sergipano Gilberto Amado, quando menino, no tempo da Guerra de
Canudos, assistiu a uma dessas Missões na sua cidadezinha de Itaporanga da
Ajuda. O relato é admirável: "Os frades engrolavam um vocabulário
restritíssimo. Suas guturais rasgavam os ouvidos. Dom Amando, o chefe, o
maioral, esguio, o nariz adunco, as faces cavernosas, os olhos fundos, tipo de
monge tenebroso, movia-se com algo de espectral e quando, ao deixar a latada na
sombra, chamava o capuz sobre a cabeça e tomava o ar de uma grande ave noturna.”
- Fazia mêdo. Tudo isso era para amedrontar mesmo, pois a forma de trazer o
povo crédulo para os átrios das igrejas era essa e foi aprendida pelos
protestantes, que agora usam esse mesmo método para trazer seus crentes à fé.
Luís Cristóvão dos Santos, cronista
do sertão pernambucano, natural de Pesqueira, conta-nos que ainda menino foi
morar em Custódia, para onde se mudou a família, e que em uma Missão pregada
polo famoso Frei Damião, ouviu o sermão do frade e narra o fato: "A
princípio o taumaturgo. descreveu as delícias do céu, os querubins tocando
harpa e uma nuvem de incenso vagando no azul, entre anjos e santos.
A multidão
ouvia em silêncio, maravilhada e boquiaberta. Então, de repente, o frade mudou.
Sacudiu os braços e soltou a. maldição terrível: — Homens sem Deus, mergulhados
na lama do pecado. Amancebados! Mentirosos! Adúlteros! Arrependei-vos de vossos
pecados. E passou a descrever as torturas do inferno. labaredas subiam, tochas
ardendo, um relógio marcando: Sempre! Sempre! Nunca! Nunca!, que são as horas
da Eternidade. E no meio da fornalha, o suplício do fumaceiro de enxôfre
sufocando tudo.

Essa foi a maneira que o sertanejo nordestino foi
catequisado. O Capitão Virgulino Lampião, veio desse meio, onde o domínio
religioso usava o Diabo e por isso a proteção contra ele teria que ser nas
fortes rezas, nos escapulários com papeis escritos e costurados, como se
costurado à alma do suplicante e usuário dos mesmos, fechando seus corpos de
faca e bala, doenças, pobreza, contra injustiças, contra mau-olhado e inveja.
Esse foi e ainda é o sertão de Lampião.