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sábado, 30 de janeiro de 2016

O legado de Abraão - O pai de todos os que têm fé

Uma jornada pelo Oriente Médio em busca da memória de Abraão, o personagem que fundamentou o monoteísmo no mundo.


Teria havido, há milhares de anos, um personagem de nome Abraão que mais de 3 bilhões de pessoas – mais da metade da humanidade, portanto – veneram como pai, patriarca e ancestral espiritual de sua fé? Dessas pessoas, 2 bilhões são cristãs; 1,2 bilhão, muçulmanas; e cerca de 15 milhões, judias. Teria realmente Abraão falado com Deus e celebrado com ele as alianças que se tornaram o alicerce dessas religiões?

As linhas gerais da vida de Abraão aparecem em princípio e com mais detalhes no Gênesis, o primeiro livro das sagradas escrituras do judaísmo e do Antigo Testamento da Bíblia. Abraão também figura em outros textos judeus e cristãos, entre eles o Talmude e o Novo Testamento, e é mencionado repetidamente no Corão, o livro sagrado do Islã.

O cristianismo aceitou Abraão como patriarca ainda em seus primórdios. O apóstolo Paulo escreveu na Epístola aos Romanos, no Novo Testamento, sobre a fé que teve nosso pai Abraão. Em Lucas, no Cântico de Maria, a Virgem Maria declara que o Senhor amparou Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua misericórdia, a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais. O profeta Maomé, no século 7, também reverenciou Abraão, reconhecido pelo Corão como um dos profetas do Islã: Cremos em Deus, no que nos tem sido revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacó. O Corão eleva a história de Abraão à condição de prática religiosa. Ordena aos muçulmanos que prefiram a religião de Abraão, o hanif (monoteísta), e proclama que Deus elegeu Abraão como khalil, “amigo”.

Apesar de todas essas referências, quando perguntei a estudiosos sobre a existência de um homem chamado Abraão, eles se mostraram convencidos da inutilidade de tentar encontrar alguém de carne e osso. “Reconstituir Abraão está fora do nosso alcance”, explica Israel Finkelstein, arqueólogo bíblico da Universidade de Telaviv. Sem prova nenhuma da existência do patriarca, a busca de um Abraão histórico é ainda mais difícil do que a de um Jesus histórico.

O mais importante, contudo, talvez seja avaliar o significado e o legado das idéias que Abraão personificou. Ele é visto sobretudo como o fundador do monoteísmo, embora o Gênesis não lhe atribua essa condição. Mas as histórias ali contidas descrevem sua hospitalidade, placidez e, acima de tudo, sua fé em Deus e obediência ao Senhor.

Independentemente do que os estudiosos possam dizer sobre a história de Abraão, a narrativa do Gênesis é irresistível. Por isso parti no ano passado em busca desse personagem fascinante, munido de textos bíblicos e estudos modernos. Segundo o Gênesis, Abraão nasceu em Ur dos caldeus, viajou para Harã, de lá foi para Canaã e então seguiu em direção oeste, chegando ao Egito. Retornou a Canaã e depois a Hebron, onde morreu e foi sepultado numa caverna ao lado de sua esposa, Sara.

Quando essas jornadas poderiam ter ocorrido? O conhecimento islâmico não se aprofunda nas origens de Abraão, e nas outras duas religiões não há consenso. Analisando as linhagens registradas na Bíblia, estudiosos situam Abraão por volta de 2100 a.C. Historiadores que casaram a história bíblica com a arqueologia convergem para o período de 2000 a 1500 a.C. Para outros, o máximo que se pode afirmar é que a figura de Abraão poderia ter precedido a monarquia israelita, iniciada em aproximadamente 1000 a.C.

Apesar de todo esse mistério, Abraão permanece intensamente vivo em nossos dias. Podemos hoje estar tesmunhando o renascimento de sua memória. O papa João Paulo II, fervoroso arauto de Abraão, tinha grande esperança de fazer uma peregrinação em sua honra no primeiro ano do novo milênio, pois judeus, cristãos e muçulmanos se consideram, todos, filhos espirituais de Abraão. Em 1994, o papa me disse que seu sonho era ir a Ur, no Iraque. “Não se pode visitar as terras da Bíblia sem partir de Ur, onde tudo começou”, declarou. Mas, no último instante, em fins de 1999, o ditador Saddam Hussein cancelou o convite.

O papa então anunciou que realizaria no Vaticano “uma comemoração espiritual de alguns eventos fundamentais da trajetória de Abraão”. Assim, em 23 de fevereiro de 2000, Roma viu um imenso auditório do Vaticano ser dedicado a Abraão. O papa ateou fogo em alguns ramos num altar, relembrando o lugar em que o patriarca esteve prestes a sacrificar seu filho. Fumaça e incenso impregnaram o ambiente e, por um breve momento, revivi a história com outras 6 mil pessoas.

Por que Abraão está tão vivo em nossos dias? A fé – judaica, cristã e islâmica – e a presença majestosa porém intangível do patriarca são uma resposta. A explicação mais eloqüente que já ouvi, entretanto, veio do rabino Menahem Froman, que mora próximo à cidade de Hebron: “Para mim, Abraão é filosofia, é cultura. Tenha ou não existido, ele é uma mensagem de amor e de desprendimento. Abraão é uma idéia. Abraão é tudo. Carne e osso não importam para mim”.

Terá tomou a Abrão, seu filho, e a Ló, filho de Harã, filho de seu filho, e a Sarai, sua nora [...] e saiu com eles de Ur dos caldeus, para ir à terra de Canaã. (Gênesis, 11:31)

Minha busca por abraão começou com uma viagem de táxi pelos 800 quilômetros que ligam Amã, capital da Jordânia, a Bagdá, no Iraque. Em seguida, num percurso de 300 quilômetros a sudeste, atravessei um deserto de areia e vegetação raquítica. Ao cruzar o rio Eufrates, passei por meia dúzia de barreiras militares e finalmente cheguei a Ur, considerada por muitos a terra natal de Abraão. Minha primeira impressão foi decepcionante: Ur era poeirenta e desolada, sem nenhuma vibração perceptível. O único ponto de referência visual era o zigurate, uma torre de tijolos em forma de pirâmide construída em tributo a Sin, o deus da Lua, por volta de 2100 a.C.

Um vento cortante soprava do leste quando Dheif Mushin me guiava pelos cerca de 50 hectares que englobam o sítio da cidade antiga. Fundada em algum momento do quinto milênio antes de Cristo, Ur foi desenterrada nas décadas de 1920 e 30 por uma expedição chefiada pelo arqueólogo britânico Leonard Wooley. Além do zigurate, a equipe encontrou tumbas reais e ruínas de casas em ruas da cidade, que Wooley batizou com nomes incongruentes como Church Lane (travessa da igreja) e Paternoster Row (rua do Pai-Nosso). As tumbas continham uma profusão de magníficos objetos de ouro, prata e pedras preciosas – provas de que Ur se situava no coração de uma civilização rica e poderosa.

“Esta é a casa”, declara Mushin, um homem de 41 anos, magro, de olhos azuis. Estávamos na esquina de Church Lane com Broad Street, fitando um fosso raso próximo às ruínas do palácio da terceira dinastia de Ur, que governou de 2100 até 2000 a.C. No fosso havia um piso de pedra quadrado e paredes parcialmente restauradas – as ruínas de uma das maiores casas escavadas por Woolley, datada entre 2000 e 1595 a.C. Woolley fez grande alarde e teve reconhecimento pela “descoberta” da casa de Abraão. Embora fosse remota a chance de Abraão ter realmente morado naquela casa, não pude deixar de me emocionar com a idéia.

“Você tem de imaginar Ur como ela era”, recomenda-me Piotr Michalowski, especialista em Mesopotâmia Antiga da Universidade de Michigan, pouco antes de eu partir para o Iraque. “No terceiro milênio, Ur era a metrópole da Mesopotâmia – um porto no Eufrates bem próximo do golfo Pérsico.” O rio trazia enchentes e criava uma rica planície aluvial, provendo generosamente o sustento de uma população de talvez 12 mil pessoas no apogeu da cidade, por volta de 2100 a.C. Desde essa época, a costa fluvial recuou 150 quilômetros, deixando Ur para trás, para as areias.

Devemos nosso conhecimento da região aos mesopotâmios, que inventaram a escrita cuneiforme por volta de 3200 a.C. Em centenas de milhares de placas e cilindros de argila, eles gravaram uma crônica da vida. Só de Ur foram recuperados milhares de textos exclusivos da terceira dinastia. “Temos numerosos arquivos do século 19 a.C. que falam sobre empreendimentos marítimos”, explica Michalowski, que é editor do Jornal de Estudos Cuneiformes. “Vejo um próspero centro urbano, com ruas estreitas apinhadas de gente e lojas, onde artesãos produziam de tudo, de artigos de couro a ornamentos preciosos. Ur era um importante centro comercial. Poderíamos compará-la à Veneza de séculos mais tarde.” O transporte por embarcações fluviais, carros de boi e caravanas de burros ligava Ur e a Mesopotâmia aos atuais Irã, Turquia e Afeganistão e também a Síria, Israel e Egito.

Tamareiras cresciam no interior e canais de irrigação saídos do Eufrates e do Tigre, que na época beiravam a cidade, permitiam o cultivo de cevada, lentilha, cebola, alho. Ovelhas e cabras forneciam manteiga e lã.

Diverti-me imaginando como Abraão teria crescido em Ur. Talvez fosse um adolescente magro, de estatura mediana, usando confortáveis trajes de couro e lã, indo à escola, brincando com seus irmãos Naor e Harã e seus amigos. “Apenas uma pequena parcela da população sabia ler e escrever”, conta Michalowski. “Se Abraão teve instrução, significa que estudou na casa de algum sacerdote ou burocrata, com quem adquiriu várias habilidades. Ele teria aprendido línguas, aritmética e contabilidade, mas sobretudo teria estudado a literatura suméria. Esse teria sido o ambiente intelectual em que ele cresceu.”

Visualizei Abraão transformando-se em um moço esguio e forte, evidenciando qualidades de liderança. Talvez tenha venerado Sin, o deus da Lua, principal deidade de Ur. “Os mesopotâmios veneravam um panteão que incluía deidades importantes como Sin, mas cada indivíduo também tinha um deus pessoal adicional”, explica Michalowski. Eu me perguntei se, de algum modo, as reflexões de Abraão sobre o deus da Lua poderiam tê-lo conduzido à idéia de que o mundo é governado por um só Deus.

Em minha busca por Abraão, a inspiração divina passou a ser uma ajuda e tanto. Era frustrante estar continuamente suspenso entre diferentes conjuntos de lendas – como se fossem realidades virtuais – sem fatos palpáveis para guiar minha investigação.

Para os autores bíblicos, o conceito de tempo era tão elástico que a história genealógica de Abraão desafia a credulidade. No Gênesis, o relato completo da linhagem do patriarca é contado em uma linguagem vertiginosa e resumida, começando por Noé e o dilúvio, prosseguindo com o filho de Noé, Sem, os irmãos de Sem e seus descendentes. Se essa genealogia fosse interpretada literalmente, abrangeria séculos – dez gerações de Noé a Abraão.

Diante do vácuo de provas, é compreensível que historiadores e arqueólogos se engalfinhem em debates sobre a existência e a data de nascimento do patriarca. Abraham Malamat, um lépido septuagenário que é professor emérito de história judaica na Universidade Hebraica em Jerusalém, acredita que Abraão poderia ter vivido entre 2000 e 1800 a.C. “A Bíblia e todo o conjunto da história israelita antiga apontam esse período como o mais plausível”, explica Malamat em seu apartamento em Jerusalém, em uma noite nevoenta. “Possivelmente quem está mais próximo desse tema somos nós. Um historiador está mais perto do que um arqueólogo.”

Israel Finkelstein, chefe do Departamento de Arqueologia da Universidade de Telaviv, por sua vez, afirma que documentos escritos não são a única fonte para reconstituir a história. “Nos últimos 20 anos, a arqueologia se tornou o principal instrumento de estudo dos primeiros tempos da antiga Israel. A arqueologia às vezes é o único instrumento.” Não existem indícios arqueológicos de que fossem usados camelos – com freqüência designados como animais de carga no Gênesis – para transportar artigos antes de 1000 a.C. Para Finkelstein, esse é apenas um indicador de que o modo de vida refletido nas histórias sobre Abraão corresponde a um período muito posterior a 2100 a.C, ao qual chegaram alguns especialistas depois de estudarem as linhagens na Bíblia. “Se houve ou não um Abraão histórico, não posso dizer, mas boa parte da realidade no contexto de Abraão no Gênesis provavelmente deve ser datada do sétimo século antes de Cristo.”

Ur é outro tema polêmico. Os autores do Gênesis referem-se à cidade como Ur dos caldeus, mas os estudiosos concordam que as escrituras são confusas, pois eles só apareceram na Mesopotâmia no início do primeiro milênio antes de Cristo. Finkelstein argumenta que essa é uma confirmação adicional de que as histórias do Gênesis emergiram nessa época, quando o povo de Judá tentou construir uma identidade nacional em um mundo hostil. “Existem anacronismos como o dos camelos, mas isso não anula o quadro geral”, rebate o professor Malamat. Para ele, na realidade essas inconsistências devem ser vistas como adições posteriores feitas por autores bíblicos e, portanto, irrelevantes para o problema da datação.

Em meio a todas as incertezas, uma coisa me pareceu clara quando escalei o célebre zigurate de Ur com Dheif Mushin: para os antigos, aquela torre de três estágios deve ter sido um poderoso símbolo da solidez das crenças tradicionais vigentes na época. O imponente monumento me fez compreender melhor o quanto Abraão se afastou daquelas crenças. Nunca saberemos, mas talvez suas primeiras experiências em Ur o tenham preparado para a centelha de inspiração que o fez partir em uma grandiosa jornada.

Como no atual Oriente Médio, o conflito armado era freqüente na antiga Mesopotâmia. Textos cuneiformes documentam um ataque de exércitos elamitas, do atual Irã, por volta de 2000 a.C. – uma comoção desse vulto pode ter contribuído para que Abraão deixasse Ur. Seja qual for a razão de sua partida, o Gênesis nos diz que ele saiu para a terra de Canaã com Terá, Sara e seu sobrinho, Ló, e foram até Harã, onde ficaram.

“Estabelecer-se e tornar a partir, guerrear e convencionar a paz, lutar em batalhas e firmar tratados” – esse seria o ritmo básico da vida de Abraão, conforme escreveu Karl-Josef Kushel, professor de teologia da Universidade de Tübingen, na Alemanha. A família e sua caravana de burros teriam sem dúvida levado vários meses para percorrer os sofridos mil quilômetros de Ur até Harã, ao norte, pelo vale do Eufrates. A cidade situa-se às margens do rio Balikh, na encruzilhada de importantes rotas comerciais. Como Ur, Harã era um importante centro de culto ao deus da Lua, Sin.

Em Harã, Abraão teria vivido em meio a uma clamorosa comunidade de amoritas, hurrianos e outros grupos étnicos. Harã é hoje um remoto e escaldante povoado turco de cerca de 500 pessoas abrigadas em casas de barro unidas por arcos para aumentar a sombra e a circulação de ar. Numerosas escavações arqueológicas mostram que os construtores da Antiguidade, com paredes grossas e quintais abertos, também procuraram atenuar os efeitos de temperaturas que podem superar os 50 graus.

Conduzido por um jovem guia de Istambul, Aydin Kudu, visitei as ruínas de uma casa numa pequena colina no centro de Harã, onde, segundo a lenda local, viveu Abraão. A julgar por sua configuração, a espaçosa construção pertenceu a uma família numerosa e próspera. Sentados num muro baixo, Aydin e eu conjeturamos que a família de Abraão deve ter sido muito abastada nos anos que passou ali. Após a morte de Terá, seu pai, Abraão, como o chefe da família, teria supervisionado os rebanhos, trocado lã por trigo com agricultores e recrutado gente da terra para seu crescente clã. Vendo a multidão de ovelhas ao redor de Harã, ocorreu-me que a cena provavelmente não diferia muito na época do patriarca.

Mais tarde conheci Suleyman Sançar, um ancião do povoado. Sançar, 63 anos, muçulmano circunspecto com uma portentosa barba branca, convidara-me para um chá com pão sírio cerimonial em companhia de alguns amigos. Tudo o que consegui extrair dele foi a insinuação de que um rei da região, no início do segundo milênio antes de Cristo, foi tio de Abraão. Não me empolguei. Histórias assim existem para agradar aos visitantes, a maioria cristãos, que chegam de ônibus em pequenos grupos toda semana em busca das emoções bíblicas.

Se a arqueologia nos nega provas diretas da existência de Abraão, o nome de Terá, seu pai, aparece em algumas placas cuneiformes e instiga os estudiosos. Ömer Faruk Harman, da Universidade de Marmara, em Istambul, alerta que “Terá” quase certamente não é nome de uma pessoa. Provavelmente é nome de um clã ou de uma cidade no extremo norte da Síria ou, mais possivelmente, no sudeste da Turquia, próximo a Harã. Ainda assim, Abraão era um filho de Terá, o que pode ter estabelecido a conexão entre Abraão e Harã.

Durante minha estada em Harã, viajei até um lugar que também reivindica sua ligação com o patriarca. ¸Sanliurfa (chamada simplesmente de Urfa até os anos 80) é uma cidade aprazível de quase meio milhão de habitantes, a cerca de 1 hora de carro de Harã. Alguns estudiosos acreditam que, por ser tão mais próxima de Harã do que Ur, ¸Sanliurfa é a candidata mais lógica à terra natal de Abraão. Seja como for, a polêmica há muito vem sendo uma dádiva para o turismo: a cidade instituiu festivais anuais em honra a Abraão, e eles recheiam os cofres municipais.

Sanliurfa, naturalmente, é muito bem provida de lendas sobre Abraão. Uma delas diz que ele nasceu numa caverna na base de um afloramento rochoso, na parte sul da cidade. Segundo essa história, Abraão envelheceu um mês em seu primeiro dia de vida e era um menino de 12 anos em seu primeiro aniversário. Sua fé em um deus único o levou a despedaçar imagens de deidades e ídolos. Furioso, o rei Nimrod ordenou que Abraão fosse queimado vivo, mas um imenso tanque de água se materializou, apagando o fogo. As toras em chamas se transformaram em peixes ferozes que salvaram o patriarca. A poucos passos da caverna, dois grandes tanques – Halil ür Rahman e Aynzeliha – simbolizam o milagre. São generosamente abastecidos com gordas carpas consideradas sagradas: quem comer os peixes de Abraão ficará cego.

Muitos dos peregrinos de ¸Sanliurfa vêm de cidades do Irã. Ônibus chegam várias vezes por semana trazendo devotos muçulmanos, principalmente mulheres de cabeça coberta com lenço. Os devotos entram na caverna por uma pequena mesquita com um minarete, oram lá dentro por alguns minutos e então saem. Alguns rezam do lado de fora, junto ao muro baixo de pedra ao redor da mesquita, curvando-se sobre ele ou prostrando-se no chão. Na tarde de minha visita, uma mulher idosa, de lenço preto na cabeça, orava solitária ao pé do muro, sob um céu riscado de relâmpagos.

Onde quer que Abraão tenha nascido – ¸Sanliurfa, Ur ou algum outro lugar –, diz o Gênesis que foi em Harã que ele recebeu as palavras com as quais estabeleceu sua relação de obediência com Deus. Mais uma vez ele teria de deixar sua casa. Disse o Senhor a Abrão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. De ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção”. Robert Alter, da Universidade da Califórnia em Berkeley, explica a passagem bíblica: “Abrão, mera figura em um arrolamento de genealogia e migrações [...] torna-se um personagem individual [...] quando Deus se dirige a ele nesse trecho.”

A única vez em que cheguei perto de vislumbrar o patriarca como um ser humano de carne e osso foi em Jerusalém. O professor Abraham Malamat mostrou-me um livro com reproduções de um afresco pintado em um palácio antigo de Mari, na Síria, cerca de 320 quilômetros a sudeste de Harã. Datado do início do segundo milênio antes de Cristo – período que Maramat considera o certo para situar Abraão –, o palácio, juntamente com milhares de placas cuneiformes, foi escavado por uma expedição francesa iniciada em 1933.

O que vi foi um homem simples, de pele morena e uma curta barba negra. Ele está de chapéu preto com uma faixa branca e segura a cabeça com chifres de um touro sacrificado. “Seu rosto é característico do tipo semita ocidental”, analisa Malamat. “O chapéu e o touro também são. Eu acho que o mais provável é que Abraão descenda de tribos nômades semitas ocidentais, possivelmente da Síria ou do sul da Mesopotâmia. Essa imagem, na minha opinião, aproxima-se da de Abraão”, prossegue Malamat. “Talvez ele seja um conceito, mas sua figura tem sentido. Existem imagens nas paredes de Mari, figuras que podem ser próximas de Abraão, Isaac e Jacó.”

Tinha abrão 75 anos quando saiu de Harã. Levou Abrão consigo Sarai, sua mulher, e Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido [...] Partiram para a terra de Canaã. E lá chegaram.

Na melhor reconstituição possível com base nos mapas imprecisos da região, Abraão viajou de Harã para sudoeste, atravessando a Síria e passando por Damasco. Numerosos agregados o teriam acompanhado. A travessia até Canaã provocou-me a sensação de estar emergindo de uma névoa e começando a ver a paisagem da história. Não só o Gênesis é um mapa rodoviário mais minucioso desse ponto – menciona Canaã e lugares específicos dali –, mas a própria história é razoavelmente explícita quanto à região e às pessoas que Abraão teria encontrado na viagem à Terra Prometida.

Canaã, uma terra que mana leite e mel, como a descreve poeticamente a Bíblia, estende-se aproximadamente da Síria, ao norte, até as areias do Egito, ao sul. Os cananeus produziam uma singular tintura púrpura, feita de moluscos, que granjeou para a região o nome de “terra púrpura”. Eles foram negociantes empreendedores (um dos significados de cananeu é “comerciante”) e assim estiveram sujeitos às influências das civilizações contíguas – do Egito e da Mesopotâmia. Por volta do período em que Abraão poderia ter chegado lá, a Mesopotâmia era uma fonte especialmente importante de mercadorias, pessoas e idéias.

Atravessou Abrão a terra até Siquém, até o carvalho de Moré, proclama o Gênesis. Siquém é uma das cidades mais antigas do Oriente Médio. Suas origens remontam ao início do segundo milênio antes de Cristo. Situada a oeste do rio Jordão, é hoje a movimentada cidade de Nablus, de 130 mil habitantes, sob o controle da Autoridade Palestina. Em Siquém, Deus apareceu a Abraão e declarou: Darei à tua descendência esta terra. O Gênesis não registra nenhuma resposta de Abraão, mas menciona que ele edificou um altar ao Senhor.

Quanto à religião dos cananeus, Abraão teria encontrado um culto à fertilidade, com festivais sazonais e sacrifícios de animais. No Levítico e no Deuteronômio, a Bíblia retrata esse povo como adoradores de ídolos que praticavam o sacrifício humano e o sexo fora dos padrões, o que era visto como uma ameaça a um monoteísmo emergente. A arqueologia e a história, porém, não corroboram essa descrição bíblica dos cananeus.

Em Nablus encontrei Avner Goren, um arqueólogo com conhecimentos enciclopédicos sobre a história bíblica. Procuramos pistas da Siquém de Abraão, mas nada encontramos que pudesse ser associado ao patriarca. Tudo parecia tranqüilo enquanto estávamos lá, mas pouco tempo depois eclodiriam batalhas letais entre palestinos e israelenses. Disparos de armas automáticas atroariam os ares sobre a tumba que se acredita ser a do profeta José, bisneto de Abraão. Canaã ainda é um campo de batalha, como vem sendo, sem parar, há milhares de anos.

O Gênesis não traz nenhuma menção ao tempo em que Abraão teria permanecido em Siquém. Ficamos sabendo apenas que ele, passando dali para o monte ao oriente de Betel, armou a sua tenda, ficando Betel ao ocidente e Ai ao oriente. Ali edificou um altar ao Senhor, e invocou o nome Dele. Alguns estudiosos acreditam que, sendo Betel um local de culto dos cananeus, a Bíblia, por associá-lo diretamente a Abraão, forneceu também um modo de os hebreus o reivindicarem para si.

Betel é hoje a cidade árabe de Baytin. Abraão rumou dali para o sul, até o deserto de Negev. Grande parte do trajeto foi uma descida através da terra estéril. A irrigação hoje traz prosperidade ao Negev, mas na época de Abraão a paisagem entre Berseba e o golfo de Aqaba era nada mais que uma área árida e rochosa. Para piorar tudo, uma seca extraordinariamente severa assolou o Negev logo depois da chegada de Abraão, forçando-o a mais uma mudança. Diz a Bíblia: Desceu, pois, Abrão ao Egito, para ali ficar: porquanto era grande a fome na terra. A atração do Egito vinha do Nilo e de seu delta fértil e exuberante. A essa altura, porém, talvez Abraão estivesse questionando as promessas divinas de dar-lhe um filho e uma terra. Ele continuava sem filhos e, depois de chegar a Canaã, foi novamente desarraigado.

Numa manhã de primavera, parti do Cairo para Avaris, um sítio arqueológico em Tell el Daba, onde Abraão poderia ter fixado moradia. A região produz arroz, milho, algodão e, nos meses de primavera, trigo. Fui recebido cordialmente por Manfred Bietak, diretor do Instituto de Egiptologia da Universidade de Viena, que está chefiando as escavações no sítio. “Absolutamente nada”, responde, quando pergunto o que as fontes históricas egípcias diziam sobre Abraão. “No que diz respeito aos egípcios, é como se Abraão nunca tivesse posto os pés no delta”, declara.

A época da chegada de Abraão ao delta do Nilo é tão indeterminada quanto o local onde ele se estabeleceu. Alguns estudiosos acreditam que ele poderia ter chegado ao Egito na época dos hicsos (palavra egípcia que significa “governantes estrangeiros”), na primeira metade do segundo milênio antes de Cristo, mas a maioria afirma que ele teria estado no local muito tempo antes.

Fosse quem fosse o faraó durante a estada de Abraão no Egito, sua ligação com o patriarca foi íntima e desafortunada. Quando Abraão se aproximou da fronteira egípcia, disse a Sarai, sua mulher: “Ora, bem sei que és mulher de formosa aparência. Os egípcios, quando te virem, vão dizer – é a mulher dele – e me matarão, deixando-te com vida. Dize, pois, que és minha irmã, para que me considerem por amor de ti e, por tua causa, me conservem a vida.” Prossegue o Gênesis: Viram-na os príncipes do faraó, e gabaram-na junto dele – e a mulher foi levada para a casa do faraó. O faraó não parece ter se importado que Sara já não fosse virgem.

O Gênesis não faz nenhum juízo moral sobre esses acontecimentos nem envereda por outros aspectos da vida de Abraão enquanto Sara, presume-se, fez parte do harém do faraó. O New Jerome Biblical Commentary, uma compilação de estudos bíblicos, sobretudo católicos, aventa que o logro tramado por Abraão põe em xeque sua fé de que Deus o protegeria e cumpriria a promessa de dar à tua descendência esta terra. O JPST Torah Commentary, uma análise judaica, argumenta que Abraão poderia ter errado se esperasse que Deus realizasse um milagre para livrá-lo daquele apuro. Acontece que Deus, contudo, interveio: O Senhor, porém, puniu o faraó e a sua casa com grandes pragas, por causa de Sarai, mulher de Abrão.

A ausência de detalhes sobre o comportamento de Abraão é um exemplo frustrante das lacunas geradas pela transformação de tradições orais nas histórias escritas do Gênesis. Enquanto o logro com Sara está aberto a diversas interpretações dos historiadores, a reação do faraó no episódio é bem clara. Chamou, pois, o Faraó a Abrão e lhe disse: “Que é isso que me fizeste? Por que não me disseste que era ela tua mulher? E me disseste ser tua irmã? Por isso a tomei para ser minha mulher. Agora, pois, eis tua mulher, toma-a e vai-te.”

Ao deixar o egito, segundo a Bíblia, era Abrão muito rico. Possuía gado, prata e ouro. A essa altura eu o vejo começar, conscientemente ou não, a assentar os alicerces para o estabelecimento da religião monoteísta. “Para compreendermos bem a ligação de Abraão com o monoteísmo, precisamos olhar para além do próprio Gênesis, que não lhe faz nenhuma menção direta”, explica James Kugel, da Universidade Harvard. “Séculos e séculos depois do tempo em que Abraão poderia ter vivido, intérpretes leram sua história no Gênesis. Esses intérpretes apareceram a partir do terceiro século antes de Cristo. Quando leram o capítulo 12, eles se perguntaram: ‘Por que será que Deus começa a falar com Abraão e lhe promete todas essas coisas maravilhosas, como fazer dele líder de uma grande nação?’ Por fim, chegam ao Livro de Josué, onde está escrito que toda a família de Abraão adorava outros deuses.” Para Kugel, os intérpretes concluíram que Abraão era o único que não adorava aqueles outros deuses.

Em numerosos textos posteriores – entre eles o Livro dos Jubileus (encontrado com os Manuscritos do Mar Morto), o Novo Testamento, textos cristãos antigos e o Corão –, Abraão é apresentado como um modelo de fé e monoteísmo puro. Essa idéia simplesmente caiu na aceitação geral e se consolidou.

Voltando a Canaã, Abraão decidiu uma disputa de terras entre seus pastores e os de seu sobrinho, Ló, que viera com ele do Egito. Para isso, não recorreu a uma luta, apenas deixou que o mais moço decidisse. Ló escolheu seguir para o viçoso vale do rio Jordão, até a costa sul do mar Morto, local das cidades de Sodoma e Gomorra. Abraão – que o futuro consagraria como um pacificador – contentou-se em permanecer entre as montanhas e os desertos da Terra Prometida, instalando-se temporariamente sob os carvalhais de Manre.

A essa altura, Deus havia aparecido a Abraão, reafirmando sua dádiva: Ergue os olhos e olha desde onde estás para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente, porque, toda esta terra que vês, eu ta darei, a ti e à tua descendência, para sempre. [...] Levanta-te, percorre esta terra no seu comprimento e na sua largura, porque eu ta darei. No antigo Oriente Médio, percorrer uma propriedade era um ritual para tomar posse definitiva de um trato de terra. O Gênesis não menciona se Abraão teria cumprido a ordem de Deus para percorrer a área. O Gênesis Apócrifo, um texto interpretativo encontrado na década de 40 entre os Manuscritos do Mar Morto, porém, preenche essa lacuna, descrevendo em pormenores uma jornada feita por Abraão pela Terra Prometida.

Para mostrar sua gratidão a Deus, ele construiu um altar em Hebron, situada numa depressão nas montanhas de Judá, cerca de 25 quilômetros a sudoeste de Jerusalém. Embora, em janeiro de 1997, Israel retirasse boa parte de suas forças militares dessa cidade de população predominantemente árabe, como parte de um processo de paz com a Autoridade Palestina, o governo israelense manteve o controle de uma faixa que abriga uma pequena comunidade judaica ao longo da rua Al Shudada, no centro da cidade antiga. Tendo como vizinhos 210 mil árabes, cerca de 450 judeus vivem na rua, que estava fechada para o trânsito de cidadãos árabes e era guardada nos dois extremos por sisudos soldados israelenses. Foi perturbador passar de carro por aquela rua silenciosa e vazia, com suas lojas de portas fechadas.

Em hebron Abraão subitamente viu-se na posição de comandante militar. Um emissário levou-lhe a notícia de que Ló fora capturado em Sodoma por quatro reis belicosos. O Gênesis, que às vezes é bem preciso, relata que Abraão convocou 318 de seus agregados e atacou os inimigos durante a noite, perseguiu-os na direção norte, passou pela cidade de Damasco, na Síria, e enfim libertou Ló.

Abraão regressou triunfante e chegou a Salem – a cidade que mais provavelmente se tornou Jerusalém, sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. Pode ter sido ali que ele teve uma “conversa” com Deus na qual expressou suas dúvidas acerca das promessas divinas. “Esse primeiro entendimento com Deus revela uma dimensão humana de Abraão não vislumbrada até então”, salienta Robert Alter, da Universidade da Califórnia em Berkeley. A ansiedade por uma recompensa divina levou Abraão a lamentar que ainda não vira Deus cumprir as promessas feitas anteriormente. Ele comentou: “Senhor Deus, que me haverás de dar se continuo sem filhos [...] A mim não me concedeste descendência”. Deus replicou: “Olha para os céus e conta as estrelas [...] Será assim tua posteridade”. Naquele dia, continua o Gênesis, Deus firmou uma aliança com Abraão: “À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio Eufrates”.

De Salem Abraão foi para Manre e Hebron, onde passou boa parte do tempo. Eu o imagino um venerável ancião, sentado sob uma árvore, ministrando sábios conselhos, supervisionando as finanças da família e conversando com Deus.

Nesse ponto o Gênesis registra um evento que influenciaria profundamente o rumo da história mundial. No antigo Oriente Médio, as esposas incapazes de gerar filhos incentivavam o marido a procriar com escravas e concubinas. Assim, Sara, que já sabia ser estéril, convenceu Abraão a ter um filho com Hagar, uma escrava egípcia que provavelmente estava com eles desde que o faraó os expulsara do Egito.

Foi o nascimento de Ismael, o primeiro filho de Abraão, que prenunciou a emergência, no século 7 de nossa era, de uma nova religião dominate na Arábia – o Islã – conduzida pelo profeta Maomé. O Corão refere-se ao primeiro filho de Abraão como um mensageiro e um profeta [...] dos mais aceitáveis aos olhos de seu Senhor. A linhagem de Ismael conferiu legitimidade à nova fé, mas o Corão não menciona em nenhum trecho o nome de Hagar.

Abraão e depois Ismael são os modelos perfeitos de devoção para os fiéis do islamismo. O nome de Abraão aparece em 25 dos 114 capítulos do Corão, e até hoje Ibrahim e Ismael são prenomes comuns entre os muçulmanos, sobretudo na Arábia. “O Corão nos explica que todas as verdadeiras revelações provêm de Deus”, afirma John Voll, professor de história islâmica do Centro de Aproximação entre Muçulmanos e Cristãos da Universidade de Georgetown. “É o registro da grande revelação divina, comum a todos os textos sagrados.” Parece não haver dúvida de que Maomé e seu círculo mais íntimo de discípulos sempre consideraram Instados a cumprir o hajj – a peregrinação anual de oração e devoção da fé islâmica –, multidões seguem a Meca para circundar a Caaba, o santuário que Abraão (ou Ibrahim, como os muçulmanos o chamam) e seu filho Ismael edificaram por ordem de Deus. Mais de 1 bilhão de pessoas – cerca de um sexto da humanidade – são muçulmanas. O alicerce de sua fé é a submissão de Abraão a Deus, e seu livro sagrado é o Corão. Para os muçulmanos, esse texto divino, revelado ao profeta Maomé no século 7, é o remédio para as distorções religiosas surgidas na esteira dos profetas anteriores ao Islã – Moisés e Jesus.

Reacendendo a chama da fé, padres da igreja ortodoxa grega testemunham a Paixão de Cristo durante uma procissão da Sexta-Feira Santa em Jerusalém. A linhagem espiritual dos cristãos liga Jesus a Abraão, cujo sacrifício, obediência e dedicação prefiguraram a vinda do messias. “Abraão personifica a necessidade e o desejo humanos de ter uma relação com Deus, pois o pecado original nos impede de entrar no reino dos céus por iniciativa própria”, explica Frank Marangos, padre grego ortodoxo. “Jesus salva do pecado não só os que vêm depois dele, mas também todos os que vieram antes – inclusive Abraão.”

O nacionalismo palestino há muito reivindica seu direito sobre Jerusalém, considerada a terceira cidade mais importante da fé islâmica. Muitos israelenses, contudo, garantem que seus laços milenares com Jerusalém – o centro da história judaica – predominam sobre os dos palestinos. Essas visões conflitantes culminam no “epicentro espiritual” da cidade, que os judeus chamam monte do Templo e os muçulmanos, nobre santuário. Uma resolução apoiada pelo falecido rei Hussein, da Jordânia, foi determinar que naquele lugar a soberania é de Deus. “Nos moldes do direito internacional normal, a proposta pode parecer bizarra, mas esse pedaço de terra específico não é normal”, diz o escritor israelense Gershom Gorenberg.

Terá gerou a Abrão, a Naor e a Harã; e Harã gerou a ló. Morreu Harã, na terra de seu nascimento, em Ur dos Caldeus, estando Terá, seu pai, ainda vivo. (Gênesis, 11:27-28)

Quando contam suas histórias sagradas em Jerusalém, muçulmanos, judeus e cristãos se vêem como personagens. Nesse drama, Deus cria o mundo, expulsa Adão e Eva do Paraíso, provoca um dilúvio e ordena a Abraão que parta em missão. Os muçulmanos crêem que tal missão lhes foi revelada por Maomé, descendente de Ismael, filho de Abraão. Os judeus dizem ter herdado a bênção divina com outro filho de Abraão, Isaac, e seu filho Jacó. Para os céticos essas histórias foram escritas apenas para fins de autoglorificação tribal. Se isso fosse verdade, replicam os crentes, como explicar a árvore genealógica tão fragmentada, capaz de gerar confusão sobre quem de fato recebeu a bênção de Deus?

Com suas coberturas apontando para o céu, casas em Harã, no sudeste da Turquia, deixam entrever a paisagem que acolheu Abraão há 4 mil anos. Embora a Bíblia não indique o motivo de o patriarca ter deixado sua terra natal, Ur dos caldeus, uma antiga história judaica preenche essa lacuna: o rei Nimrod viu nas estrelas o presságio de que um homem se levantaria contra ele e sua religião pagã. Perseguido por Nimrod, Abraão fugiu para Harã, onde Deus falou com ele pela primeira vez: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, e vai para a terra que te mostrarei. De ti farei uma grande nação”.

Fonte do texto: National Geographic EDIÇÃO 20/DEZEMBRO DE 2001