JOAZEIRO DO CARIRY*
— Sim, meu caro, 'procurarei de alguma forma
satisfazer-te. O povoamento inicial do Joazeiro do Cariry data, pouco mais ou
menos, de 1800. Começou com o padre Pedro Ribeiro Monteiro, de saudosissima
memoria. Apenas alli chegara, pioneiro, tractou de logo esse padre comprar
terras e de situar n'ellas fazendas de gado e miuças.
Religioso que era, afortunado, dispondo de uma larada
de mancípios que trouxera com sigo dos sertões de Jaguaribe-mirim, em quanto
que assim procedia, levantava a primeira orada, o primeiro altar, a primeira
cruz.
Feita a ermida que consagrara à N. Senhora das Dôres,
familias, vindas de longe e das immediações do local, foram-se à volta d'ella
arraiando. De aspecto alacre, à margem de um ribeirinho anonymo que se chamou
depois Salgadinho, ao poente a serra do Catolé, do norte para o nascente a
serra do Araripe, formando um triangulo com o Crato e Barbalha, levantou-se, a
grandes raçadas do sol forte, o pittoresco povoado. Era, em começo, e como tudo
conspirava para o seu bem estar — o ar mais doce e mais suave, o ceu mais azul
e mais belfo, a natureza mais risonha e mais amavel, e o homem sobretudo mais
livre, mais serio, mais espiritual e mais celeste; era, em começo, um como
ninho de pombas, alli, n'aquella altura, interrompido apenas pela bicharia dos
brejos, cantarolando à noite a psalmodia da lama.
Mais tarde, porém, com a morte do velho padre em 1856,
si me não engano, lá vieram de romania as rixas e as discordias e as contenções
e os arrancos do odio e da ambição perturbando a paz, desconcertando a ordem,
desmantellando o ninho... Tão animado, tão cheio de vida que então ia o
logarejo, alargando-se com as suas casinhas, com os seus humildes cochicholos,
ruto em fora de sua evolução social, estacionara de todo, e, poucos annos
depois, em 1868, era um cadaver, decompondo-lhe à forma a autopsia da morte.
Mas, em 1872, eis que, com a presença do reverendo
padre Cicero, foi-se, a pouco e pouco, com admiração de todos, recompondo o
cadaver, e, recomposto, galvanisado, resurgira! Em contacto com o jovem do
sacerdote ascendido em zelo de Jesus Christo, inflammado em amor do proximo, as
mãos cheirando ainda aos sanctos oleos; em contacto com esse sacerdote humilde
e pobre que, a convite dos macotas da terra, para lá se fôra e lá se ficara
como capellão, deu mais o Joazeiro uns passos para adeante e de seguida estacou.
Adentrado, com as suas casinhas, formando em conjuncto
um ponto branco no azul do tempo, ah! esperava elle um d'esses momentos
invenciveis, tão raros na historia de um povo, para, vertiginosamente, e à
semelhança de um grande polvo, estender por sobre aquelle scenario os seus
tentaculos. E esse momento chegou. Com a affluencia, em 1890, dos devotos,
vindos de todas as partes, attrahidos pelos taes factos miraculosos que
attribuiam «a in-tuito de mercês com que Deus queria premiar as gentes», mas
que a S. Sé condemnara, desdobrou-se, pois, e alastrou-se, admiravelmente, o
povoado.
Seu commercio que se resumia em tres ou quatro tabernas
de aguardente de envolta com tres ou quatro peças de fazenda, desenvolveu-se de
um modo espantoso. Em todas as direcções do togar ergueram-se tendas e
officinas de chumecos, de oleiros de flandeiros, de carpinteiros, de
imaginados, de alfaiates, de quantos artistas, n'uma palavra, havia por ahi fora.
Familias contavam-se por centenas, e, como sempre chegavam, iam os alveneis
edificando ao som de lôas ao sangue precioso, à N. Senhora das Dôres, à beata
Maria de Araújo e ao padre Cicero.
E assim por mais de vinte annos, tornando-se o
Joazeiro, hoje villa por decreto do governo n.0 1028 de 22 de julho de 1911, o
maior nucleo de população que existe em todo o Ceará. Não ha mal que, nas
plicaturas de seu vestuario negro, algum bem não traga. O puro mal não existe.
*Como escrito no original