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quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lampião, Coiteiros e Volantes

PEQUENO ESTUDO SOBRE O JOVEM VIRGULINO

O sertanejo plantava milho no dia 19 de março, dia dedicado a São José. Logo depois, plantava o feijão. Plantava também algodão que vendiam ao coronel que tinha uma descaroçadora, e o restante, era usado pelas mulheres da casa, com seus teares rudimentares onde faziam mantas ou tecidos grossos para fazer redes. Havia sempre, ou quase, uma ou algumas vacas e cabras, criadas para o leite diário e vez em quando para a carne da mesa, juntamente com a macaxeira e o cuscuz.

Pois bem, nesse cenário, encontrava-se a propriedade da família Ferreira, pequena, de onde tiravam o sustento. Nessa família nasceu aquele que iria revolucionar o sertão, não pelo social, para trazer melhorias para a população sertaneja tão maltratada pela seca e pelas autoridades, que não forneciam a contra partida de investimentos com os impostos pagos pela população, mas revolucionar a metodologia criada por homens que pegaram em armas e juntaram grupos de cangaceiros para atacar a fazendeiros e transeuntes nas estradas, roubando-os.

"Virgulino* era um destemido jovem, bom vaqueiro, inflexível na perseguição de uma rês barbatão, onde penetrava na caatinga, mato fechado, onde reinavam o xique-xique, a faveleira, o pião, o juazeiro. Era exímio e admirado. Nas festas populares era também admirado por todas as mocinhas, que reviravam os olhos e suspiravam na sua passagem. Dançarino dos bons tanto no xaxado quanto no forró. Tocava sanfona e era afamado repentista. Virgulino era um rapaz cheio de entusiasmo e participava de todas as festas da região. 

Fora das festas, era um excelente profissional do couro e do comércio. Trabalhou em almocrevia para seu pai e foi arrieiro do Dr. Delmiro Gouveia, onde conduzia cargas de couro em mulas e burros, de Pedra (atual Delmiro Gouveia, no estado de Alagoas) para Bom Conselho e Garanhuns, no agreste pernambucano, região que conhecia detalhadamente e palco de grandes combates entre cangaceiros e as forças oficiais. 

A sua família não era abastada como as dos seus antecessores Silvino e Sinhô Pereira. Pode-se dizer que era remediada. Vivia da criação e da agricultura. Seu pai, José Ferreira dos Santos, era pequeno proprietário rural. Não era pobre, "arrebentado", tinha recursos para prover regularmente a família. 

O fato histórico que registra o ingresso de Virgulino e de seus irmãos Livino e Antônio no cangaço, prende-se à inimizade alimentada entre os Ferreira e os Barros, apelidados de Saturninos*. Estes, com mais recursos e parentes influentes na política local, deram início a esbulhos no sítio pertencente a José Ferreira, de nome "Serra Vermelha". 

José Alves de Barros, vulgo Zé de Saturnino, e seu sogro João Nogueira, proprietários do sítio "Pedreiras", confinante com o dos Ferreira, acusavam os filhos de José Ferreira de lhe maltratarem animais e de furtarem chocalhos das suas cabras, avisando-os de se manterem afastados dos seus domínios, sob pena de sérias represálias. As rusgas entre as famílias começaram praticamente em 1916. 

Houve um dia em que Virgulino e seu irmão Livino passavam com o gado por um pasto de propriedade de Saturnino, e foi o bastante para serem admoestados pelos agregados do sítio Pedreiras, iniciando-se encarniçado tiroteio, do qual saiu vítima de morte um jagunço de Saturnino, e Antônio Ferreira, alvejado na coxa. Para apurar responsabilidade foi instaurado inquérito em 7 de dezembro daquele ano, cujo feito depois teve tramitação pelo Cartório do 12 ofício de Serra Talhada, em Pernambuco. O procedimento instaurado com o objetivo de apurar a autoria da infração à lei penal, foi arquivado. 

Os Saturnino, influentes econômica e politicamente, tiveram melhor tratamento pelas autoridades locais. As instituições, no sertão nordestino, eram fracas. As autoridades policiais eram nomeadas por indicação do chefe político regional, instrumentos dóceis aos seus caprichos. 

O Ministério Público era uma ficção jurídica: quando não desempenhadas as suas funções por leigos, ligados à política do lugar, os seus titulares recusavam abrir luta com os mandões da terra — os famosos "coronéis" — visto nela serem fatalmente derrotados com a remoção do promotor e a permanência da chefia situacionista. Melhor era contemporizar, não despertando processos que a polícia sabiamente adormecia... 

O júri, dominado pelas paixões da politicagem local, era fator preponderante de clamorosas injustiças, e os próprios juízes togados não tinham força de requisitar um soldado de polícia para o cumprimento de uma diligência. Viam-se, às vezes, na contingência de organizar bandos para o cumprimento das suas decisões. 

Na verdade, a família Ferreira começou a sofrer pressões, face ao comportamento de Virgulino e de seus irmãos Antônio e Livino, que eram fustigados pelo invejoso Zé Saturnino que se punha como vítima, sendo ele o motor de partida para assanhar a fera adormecida que existia no peito de Virgulino e de seus irmãos. A famíla foi sendo obrigada a transferir-se para o lugar conhecido por Nazaré, no município de Floresta, pouco distante de Serra Talhada. 

Com a efetivação da mudança, firmou-se entre a família Saturnino e a Ferreira um pacto, objetivando fossem cessadas as hostilidades entre elas. Pelo acordo, os Saturnino não circulariam por Nazaré e suas imediações e os Ferreira não iriam mais a Serra Talhada, evitando-se conseqüentemente um confronto que, na opinião de amigos comuns, seria sangrento, diante das antigas desavenças e constantes hostilidades. Entretanto, Zé de Saturnino e Nogueira, aliados, não cumpriram a parte que lhes tocava na convenção e passaram a frequentar com alguns cabras a feira semanal de Nazaré, amedrontando evidentemente os Ferreira. 

O fato é que certo dia Virgulino e seu tio Manuel Lopes trocaram tiros com Zé de Saturnino e Nogueira. A partir daí não se teve mais sossego. A falta de segurança da família era total, tendo em vista que a polícia passou a proteger o pessoal de Saturnino. Foi até destacado um soldado especialmente para essa tutela, uma vez que Ferreira, como era conhecido no início Virgulino, e seus irmãos estavam aterrorizando a localidade e causando sensíveis prejuízos ao comércio daquelas paragens. 

A essa altura já andavam armados e começavam a ter fama de valentes. Caracterizavam-se como cangaceiros: roupas de mescla, chapéus de couro com as abas viradas, lenços vermelhos no pescoço, punhais e facas, cartucheiras e rifles "papo amarelo" ou mosquetões. Virgulino já usava um punhal de cinqüenta centímetros de comprimento, com o qual sangraria mais tarde inimigos, delatores e estupradores. 

De Nazaré, os Ferreira mudaram-se para Água Branca, em Alagoas, localidade próxima ao atual município de Delmiro Gouveia, não muito distante da cachoeira de Paulo Afonso. Com as finanças abaladas e sofrendo ainda perseguições dos antigos inimigos pernambucanos, os Ferreira estabeleceram-se num lugar chamado Olho d'Agua, em um sítio arrendado, extraindo da terra os recursos necessários à subsistência, auxiliados por comboios de peles e de cereais que faziam para a Zona da Mata. A esse tempo, Virgulino e seus irmãos já haviam aderido ao cangaço, acompanhavam Sinhô Pereira e Luís Padre. A alcunha de Lampião ele a ostentaria até a morte. Dizem que existem três versões relacionadas à origem do epíteto. 

A primeira dá conta de que, quando atuava como almocreve na condução de comboios de peles, ao entrar em Água Branca, uma de suas mulas esbarrou em um dos lampiões da iluminação pública, pondo-o abaixo. Foi o bastante para que entre os próprios camaradas, nascesse o apelido. 

A segunda e mais precisa talvez surgiu na sua iniciação no bando de Sinhô Pereira, em um combate com a polícia em Buíque, Pernambuco. Para demonstrar ao seu comandante que tinha habilidade com o rifle, Virgulino empenhou-se bastante na peleja. Depois, comentando a luta com Luiz Padre, outro componente do grupo e primo de Sinhô, expressou: 

— O meu rifle, no pega desta noite, não deixou de ter clarão! 

Sinhô Pereira aproximava-se dos cabras, interferiu na conversa e sentenciou:

— Home, se é assim, o rifle deste menino é que nem um lampião! 

Na boca dos violeiros, entretanto, circula uma outra versão, fantasiosa inclusive, cuja veracidade é muito discutida. 

— Até aí Lampião 
Se chamava Virgulino. 
Porém num fogo de noite 
O seu amigo Sabino 
Perdeu na escuridão 
Um cigarro, em aflição, 
Que tomara de Ponto-Fino. 

Então disse Virgulino: 
— Compadre, preste atenção, 
Meu fuzil o alumia, 
Você acha no clarão... 
Sabino, olhando no barro 
Em procura do cigarro Disse: 
— Acende, Lampião". 

E assim foi batizado, 
Seu nome foi Lampião 
Se caía num lugá, 
Queimava a população; 
De longe ele alumiava, 
Mas, quando perto chegava, 
Incendiava o sertão. 

Depois de atuar no grupo de Sinhô Pereira, em algumas incursões perigosas contra as volantes, não só as do estado de Pernambuco, como as de Alagoas, Lampião pretendeu retornar ao seio da família, reintegrando-se, socialmente. Voltou para Água Branca, mas já estava sendo procurado pela polícia alagoana, notadamente pelo sargento José Lucena e os seus soldados. A sua família já não tinha sossego, sendo forçada a mudar-se mais uma vez. 

Foi então que se juntou a Antônio Matildes e a Antônio e Manuel Porcino. Seu pai, já em estado de viuvez, dispersou os filhos e foi viver sob a proteção de Sinhô Fragoso, fazendeiro em Mata Grande. Os filhos João, Ezequiel, que viria a ser o famoso Ponto-Fino, e Angélica seguiram para Bom Conselho e passaram a viver amparados pelo "coronel" José Abílio, que os sustentou por mais de quatro anos, até quando João Ferreira veio estabelecer-se no comércio de Propriá em Sergipe. 

Iniciando a sua vida de bandido destacado, Virgulino e os seus novos chefes fizeram um ataque a Pariconhas, no estado de Alagoas. Logo após o ataque àquela povoação do semi-árido alagoano, o bando teve no seu encalço a volante do sargento José Lucena, da polícia de Alagoas. A volante esteve à procura dos bandidos por toda parte e foi até a fazenda onde morava o pai de Lampião, na suposição de que encontraria o bando. Os soldados cercaram a casa e começaram a atirar, matando José Ferreira e Fragoso, proprietário da fazenda. 

A morte de José Ferreira foi uma das maiores tragédias na vida de Virgulino. Tinha sido pai amoroso, consciente dos seus deveres, bom amigo. Morreu antes de completar cinqüenta anos de idade. Na retirada para Pernambuco, onde se achavam mais seguros, os bandidos atearam fogo no interior de Alagoas, sob a voz austera de Lampião: 

— Baixem o facho nas casas. Alagoas vai ficá de sentimento. 

A atividade dos bandidos endurecia a vida dos sertanejos, como endurecia, também, o cerco que as volantes faziam aos malfeitores. Matildes abandonou o grupo, seguindo para a Paraíba, tendo assumido a chefia Antônio Porcino. Tempos depois, os Porcino deixavam o banditismo e embrenharam-se na Bahia. Lampião tornou-se, por isso, chefe do grupo de bandoleiros, posto supremo em que se manteve até à morte. 

Reuniu, logo após agosto de 1922, os ex-cabras de Sinhô Pereira: Antônio Rosa, Meia-Noite, Joaquim Coqueiro, Plínio, Bem-te-vi, Patrício, Raimundo Agostinho, João Genoveva, Pedrão, Zé Dedé, José Melão, Laurindo, João e Antônio Mariano. O apoio logístico dispensado a Lampião foi o mais notável durante toda a época da existência do banditismo. 

O "grito do mateu" era a senha anunciadora da sua presença, transmiti-da de ouvido a ouvido do coiteiro. O coiteiro era o sertanejo que dava asilo ou protegia os cangaceiros. Havia coiteiros por sugestão, ou imitação, simpatizantes ou admiradores do bandoleiro, frutos do mesmo meio, vítimas do mesmo mal de crescimento social ou jurídico, impulsionados pelos mesmos fatores, sujeitos, portanto, à mesma prevenção ou repressão dada aos protegidos. Havia, porém, os coiteiros por interesse, traficantes do crime, cúmplices do cálculo, que auxiliavam os bandidos, visando lucros e vantagens.

Por outro lado, existiam coiteiros coagidos, os que, reconhecendo a impossibilidade de obterem auxilio das autoridades legais, ajudavam os bandidos para não perderem a vida ou a propriedade. Nessa última classificação figuraram inúmeros vaqueiros, que, por sinal, foram os mais eficientes coiteiros de Lampião: roceiros, pequenos e médios proprietários rurais, comerciantes, caixeiros-viajantes. 

João Barroso, por exemplo, coiteiro de grande prestígio junto a Lampião, que tinha atuação em Alagoas, certa ocasião, num rasgo de coragem, desabafou: 

— O governo não pode com Lampião! Nós matutos não podemos. Nem as cobras podem com ele. Quem é o grande? Lampião! Então, eu vou ficar com ele." 

* Veja o comentário abaixo.

** Com quase certeza, isso fez que Zé Saturnino, sentisse inveja de Virgulino. 

Fonte: pequena parte em aspas, do livro de José Anderson Nascimento, CANGACEIROS, COITEIROS E VOLANTES.