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quinta-feira, 22 de setembro de 2016

LAMPIÃO - SANGUE EM BELMONTE (Em 3 versões)

As versões dos acontecimentos variam de uma forma contundente na história de Lampião e seus inimigos. Para um leitor desatento, que não registre em sua memória o que leu em diversos livros sobre os episódios vividos por aqueles da época e narrados pelos escritores, por certo ao conversar sobre os assuntos, em algum momento, poderá ouvir outra versão do acontecido. Temos disparidades e citarei aqui apenas três ou quatro livros, de autores que merecem todo o nosso respeito, e que colheram informações de fontes diferentes.

Em O Canto do Acauã, na página 157 da sua segunda edição, revista e ampliada, temos a narrativa do histórico episódio sobre Ioiô Maroto e a morte do coronel Gonzaga, narrada por sua autora, Marilourdes Ferraz, que nos conta: "... Apenas quatro meses depois do grande assalto à Água Branca o olho de lince de Virgulino mirou a riqueza de Luís Gonzaga Lopes Gomes Ferraz, residente em São José do Belmonte. Esse senhor gozava do apreço e admiração das pessoas da terra por sua capacidade de trabalho e probidade. Igual à imensa maioria dos sertanejos, teve um difícil começo na vida; foi almocreve e iniciou suas atividades comerciais junto a seu pai, Cândido, e ao seu irmão, João, ainda na vila de São Francisco. 

Quando ali não foi mais possível permanecer, os comerciantes partiram e entre eles estavam Gonzaga e Francisco Pita, mais conhecido por Chico Pita. Este, transformar-se-ia em industrial no agreste pernambucano, mas Gonzaga não foi tão longe, ficando ali mesmo no sertão, em São José do Belmonte, onde seria atingido pela violência na segunda quinzena de outubro de 1922. 

Ampliando suas atividades comerciais, Gonzaga conseguiu reunir bens consideráveis depois de longos anos de extenuante trabalho, movido pelo desejo de assegurar o futuro de sua família. Além de comerciante, era também fazendeiro, industrial, proprietário de uma usina de beneficiamento de algodão e de armazéns. Efetuava transações com couro de caprinos e com algodão, prestava assistência aos agricultores da região através de pequenos financiamentos e não se recusava a auxiliar parentes e amigos. Foi ele que ofereceu uma boa quantia como ajuda financeira para a construção da igrejinha de Nazaré. 

Gonzaga há muito tempo vinha atendendo às exigências dos cangaceiros, fornecendo-lhes dinheiro, tecidos e objetos, para ser deixado em paz, até que sobreveio o incidente que o levou a cair no desagrado dos bandoleiros. Estava ausente de casa quando chegou um mensageiro com uma relação de pedidos a serem atendidos; sua esposa, indignada, negou-se a atender às exageradas solicitações, com um comentário final que o irritou: "Que fossem trabalhar como meu marido sempre o fizera". 

Antes mesmo desse episódio, ainda em maio daquele fatídico ano de 1922, parte do grupo de Sebastião Pereira, incluído Lampião, interceptou na estrada um comboio de tecidos para Gonzaga, proveniente de Arcoverde; a mercadoria foi arrebatada e fartamente distribuída entre os componentes do bando e moradores das proximidades a fim de silencia-los enquanto outra parte foi queimada. O comerciante sofreu com isso enormes prejuízos; depois disso, temendo outros assaltos e como medida de precaução, reuniu um grupo de homens armados para a sua segurança. Foi então que ocorreu outro fato desagradável.

O tenente Montenegro, comandante de uma força volante do Ceará que estava no encalço de Sebastião Pereira em terras pernambucanas, recebeu uma carta falsamente escrita em nome de Gonzaga,(vejam a segunda versão*) na qual se denunciava Crispim Pereira, mais conhecido por "Yoyô Maroto", como colaborador dos cangaceiros. Esse oficial, sem pistas ou sem informações sobre o grupo, foi levado a acreditar na carta-denúncia e antes de regressar ao Ceará passou pela casa de "Yoyô", procedendo a uma rigorosa arguição que levou "Maroto" a passar por sério vexame. 

Inconformado com o acontecido, Gonzaga logo entrou em contato com "Maroto" para explicar-lhe a sua inculpabilidade no caso. Este simulou acreditar na inocência de Gonzaga, tanto que dias depois lhe tomou emprestada uma máquina de descaroçar algodão. Foi nesse tempo que o comerciante resolveu dispensar o pessoal armado que se encontrava à sua disposição encarando com incredulidade um boato que então corria sobre um suposto ataque contra ele, promovido por seu compadre "Yoyô Maroto" juntamente com Lampião. 

E o ataque aconteceu realmente. No dia 20 de outubro, às cinco horas da manhã, a residência de Gonzaga estava cercada por numeroso grupo de cangaceiros liderados por Lampião e "Yoyô Maroto". Gonzaga pelejou com todo empenho ouvindo os golpes de machados contra as portas, que foram arrebentadas. Quando os facínoras conseguiram entrar, Gonzaga refugiou-se no sótão, mas uma tábua do assoalho cedeu e ele caiu no meio da horda, que o liquidou friamente. Seguiu-se o saque, estendido a um armazém vizinho pertencente a Gonzaga; as mulheres da casa foram violentamente despojadas de suas jóias. 

Foi então que o cangaceiro Zé Terto, apelidado de "Cajueiro", vendo aquela situação constrangedora para as mulheres, reuniu-as num compartimento e postou-se à entrada em guarda, não permitindo que os companheiros tentassem outras violências. Aliás, era esse o comportamento habitual de "Cajueiro" durante os assaltos, proteger as mulheres contra ataques sexuais; dizia relacionar essa atitude com seus próprios sentimentos de respeito à sua mãe. 

Os cangaceiros aquartelados na casa invadida respondiam agora ao tiroteio do bravo sargento José Alencar de Carvalho, que mesmo enfermo estava à frente de seu pequeno destacamento composto por oito soldados, tentando impedir que o assalto se estendesse a outras casas e estabelecimentos comerciais. Também extraordinária foi a atuação do parente e vizinho de Gonzaga, Manuel Gomes de Sá; juntamente com os filhos, João e Antônio, também sustentou a resistência, disparando contra os cangaceiros desde o início. O bando não conseguiu suportar por muito tempo o tiroteio cerrado do famoso sargento Alencar e bateu em retirada; deixava três mortos (Antônio "da Cocheira", "Baliza¹" e "Berdo") e seis feridos (entre os quais "Yoyô Maroto" e Cícero Costa). 

A facção contrária perdeu, além de Gonzaga, o soldado Heleno; houve um ferido, João Gomes de Sá. O trauma provocado pelo trágico desaparecimento de Gonzaga levou sua esposa, Martina, a retirar-se do sertão com sua família, fixando residência no Sudeste do país. Com ela seguiu a família de seu cunhado, João Lopes Gomes Ferraz. Gonzaga, que foi também prefeito de São José do Belmonte, deixou os seguintes filhos: José, médico na Marinha Mercante (falecido); Napoleão, químico (falecido); Laércio, funcionário do Banco do Brasil; Ramiro e Otacílio, dentistas; e as filhas Nair, Diva, Maria de Lourdes e Edy (as duas últimas falecidas)."

¹ - Segundo Baliza (Dic. Biográfico Cangaceiros e Jagunços pg 66 - Renato Luís Bandeira

* A segunda versão:  

Já no livro de José Bezerra Lima Irmão, Lampião a Raposa das Caatingas, a tratativa entre Gonzaga e o tenente Montenegro deu-se não por causa de carta anônima, e sim por um conchavo, pois a política afasta até mesmo irmãos, quanto mais compadres. 

Nos tópicos "Lampião faz justiça à sua maneira" na pg 122 sobre o "Desagravo a loiô Maroto e a morte do coronel Gonzaga, o autor cita sua fonte no escritor Billy Jaynes Chandler em seu livro Lampião o rei dos cangaceiros.**

Desagravo a Ioiô Maroto a morte do coronel Gonzaga 

"Dando seguimento ao seu projeto de vingança, o próximo passo de Lampião foi o cumprimento da promessa feita a Sinhô Pereira, com relação aos maus-tratos infligidos à família de Crispim Pereira de Araújo, conhecido como Ioiô Maroto. O episódio era ainda resquício das desavenças históricas entre as famílias Pereira e Carvalho. Ioiô Maroto, fazendeiro em Belmonte, Pernambuco, parente de Sinhô Pereira, havia tido um problema com o coronel Luís Gonzaga Gomes Ferraz (coronel Gonzaga), prefeito (intendente) daquela cidade, ligado à família Carvalho, porque, apesar de serem compadres e amigos, Ioiô votara contra sua chapa na eleição para prefeito. 

Aborrecido com o fato, Luís Gonzaga aproveitou o ensejo da passagem de uma força policial do Estado do Ceará que tinha andado por Pernambuco à procura de jagunços de Zé Inácio do Barro e fez um conchavo com o comandante, o tenente Peregrino Montenegro, para que a volante fosse à fazenda São Cristóvão, de Ioiô Maroto, e desse uma surra nele. Os soldados fizeram mais que isso: saquearam a casa, maltrataram o fazendeiro e fizeram propostas obscenas às mulheres da família. Ioiô, profundamente desgostoso, sentindo-se desmoralizado, deixou de ir à cidade, não tirava a barba nem cortava o cabelo. 

Lampião procurou Ioiô Maroto e disse ao que vinha. Maroto ponderou que não queria vingança, entregava tudo a Deus. Lampião insistiu: — Eu prumiti a Sinhô Perera que risurvia esse negoço, e vou risorvê. Vá tirá essa barba e corta esse cabelo, seu Maroto! Quero qui o sinhô vá cumigo, pra vê a coisa! Vão se arrependê do dia qui pensaro qui o sinhô nun era home! 

O coronel Luís Gonzaga, também conhecido como Major Gonzaga, além de fazendeiro era também comerciante, dono do maior armazém da cidade, vizinho da sua residência, na praça da igreja. Lampião entrou em Belmonte com uns 70 cangaceiros na madrugada de 20 de outubro de 1922. Levava em sua companhia o jovem Tiburtino Inácio de Sousa, vulgo Gavião, filho de Zé Inácio do Barro, amigo de todas as horas de Sinhô Pereira. Chovia muito. Gonzaga e os vizinhos acordaram com uns estrondos, que a princípio pensaram ser trovões — eram os cangaceiros derrubando o portão do muro e em seguida a porta da cozinha a golpes de machado. 

Um vizinho foi correndo avisar ao sargento José Alencar de Carvalho Pires, conhecido como Sinhozinho Alencar, tido como sujeito valente, dotado de uma pontaria invejável. Embora na cidade só houvesse 7 soldados, alguns moradores se juntaram à polícia e logo começaram a atirar dos telhados e janelas das casas próximas. Os primeiros a entrar na casa foram Livino e Cajueiro. Na sala de jantar, toparam com dona Martina, mulher de Luís Gonzaga. — Cadê o Majó Gonzaga? — perguntou Livino. — Tá aí... — respondeu a mulher, assustada. Os cangaceiros espalharam-se pela casa, vasculhando cada cômodo — casarão enorme, com um corredor central, quartos de um lado e do outro. 

Livino entrou no quarto do casal, olhou atrás da porta, debaixo da cama, escancarou os armários. Nada do homem. Ao ouvir um ruído no sótão, Livino subiu a escada, forçou a porta e meteu a cabeça para espiar lá dentro. Mas o sótão era muito escuro. Gonzaga, de pijama, com uma pistola Browning na mão, recuou para o fundo do compartimento. Por azar, uma tábua do assoalho arrebentou e ele estatelou-se no chão, na sala da frente. Com uma perna quebrada, ele entrou num quarto e tentou saltar a janela, mas foi agarrado e arrastado de volta à sala. 

Ioiô Maroto aproximou-se manejando o rifle cruzeta. Gonzaga arregalou os olhos, levantou os braços, as mãos espalmadas e trementes, suplicando clemência. Ioiô deu-lhe três tiros — dois no coração e um no meio da testa. Lampião abaixou-se, tirou a aliança do coronel e enfiou nela o próprio dedo médio. Contemplou a valiosa joia e calculou: — Esta vale pelo meno um conto de réis... Jogou em cima do corpo roupas e lençóis, e tocou fogo. Dona Martina despejou um balde de água sobre o corpo, debelando as chamas, de modo que o morto ficou apenas chamuscado. 

Um cangaceiro chamado Vereda ia arrastando Abgail (Biga), filha de Gonzaga, para um quarto, mas foi impedido por Cajueiro: — Você nun vai fazê isso, Vereda, só se me matá premero. Quais foi as orde qui nóis recebeu? Depois disso, dona Martina e a filha foram postas na despensa, e o cangaceiro Fiapo foi encarregado de protegê-las até o momento da retirada."

** A terceira versão: 

Trago agora para os amigos, a obra apontada pelo autor do livro Lampião: Raposa das Caatingas, como referência, essa é terceira versão que comento. Billy Jaynes Chandler em seu livro Lampião o rei dos cangaceiros, na referência que faz ao assassinato de Luis Gonzaga, diz que não se sabe ao certo se Maroto pediu a Lampião para - se vingar, ou se Lampião, ao ouvir o que tinha acontecido a seu amigo acorreu e induziu-o a agir, pois contam as duas histórias. Uma versão conta que Sebastião Pereira, antes de deixar o cangaço, pediu a Lampião, na despedida, para matar Gonzaga. 

"Lampião... Uns dois meses depois, matou, de novo, por vingança, desta vez em Pernambuco. Foi um dos crimes mais famosos do princípio de carreira, pois a vítima foi um chefe político muito conhecido, Coronel Luís Gonzaga de Souza Ferraz.*¹º 

Gonzaga, que morava na cidade Belmonte, em Pernambuco, perto da fronteira com Ceará, não era inimigo pessoal de Lampião, mas este ajudou a matá-lo, por causa do amigo, Ioiô Maroto. 

Maroto era parente de Sebastião Pereira, que um dos companheiros de Lampião no cangaço, enquanto que Gonzaga pertencia à família dos Carvalho, inimigos tradicionais de Pereira. Durante anos, Gonzaga viveu armando intrigas contra os Pereira, também morou em São Francisco, a cidade natal de Sebastião Pereira. Mas o que realmente provocou o assassinato, foram os maus tratos que Maroto sofreu nas mãos de uma força da polícia do Ceará, que tinha vindo para Pernambuco, para caça aos bandidos. Em Belmonte, o comandante fez amizade com Gonzaga. No caminho de volta ao Ceará, os soldados passaram por São Cristóvão, a fazenda de Maroto e o maltrataram, bem como à sua família. Além de saquear a casa e dependências, eles insultaram Maroto e fizeram propostas obscenas às mulheres da família. Maroto pôs a responsabilidade da afronta a Gonzaga." 

E continua Billy Jaynes: 
"Não se sabe ao certo se Maroto pediu a Lampião para - se vingar, ou se Lampião, ao ouvir o que tinha acontecido a seu amigo acorreu e induziu-o a agir, pois contam as duas histórias. Uma versão conta que Sebastião Pereira, antes de deixar o cangaço, pediu a Lampião, na despedida, para matar Gonzaga.  

De qualquer modo, Lampião e Maroto, à frente de setenta homens, chegaram a Belmonte, uma pitoresca cidadezinha situada num planalto, numa região de serras, na madrugada do dia 20 de outubro. Ao entrarem na cidade ainda adormecida, pensaram que não precisavam se preocupar, pois haviam só sete soldados no destacamento da polícia. O bando então se encaminhou para a casa de Gonzaga, situada na praça principal. A futura vítima era um fazendeiro abastado, e homem de negócios, e seu armazém, o maior da cidade, ficava pegado à casa. 

É evidente que o assalto foi por vingança, mas uma vingança que trazia lucro. Ao tentarem entrar na casa, os cangaceiros foram recebidos à bala. Isto serviu para alertar a polícia e outras pessoas na cidade. Seguiu-se, então, um tiroteio que durou umas quatro a cinco horas. Quando terminou, Gonzaga estava morto e seu armazém tinha sido saqueado. Maroto estava vingado. Terminado o trabalho, o bando teve que abrir seu caminho à bala, porém, com vítimas: quatro ou cinco cangaceiros morreram. 

Maroto nunca pagou pelo crime. Na confusão que se seguiu, a polícia não estava em condições de processá-lo, e portanto, ele continuou a viver em paz, e bem protegido, na sua fazenda, a uns dez quilômetros da cidade. Quando as condições melhoraram e finalmente foi aberto um processo contra ele, deixou a região e se refugiou na casa dos Feitosa, em Inhamuns, Ceará. Os Feitosa tinham adquirido a fama de dar proteção aos fugitivos da lei, de mais prestígio. 

Alguns anos antes, mais ou menos em 1905, os Feitosa tinham também dado proteção a vários membros da família de Antônio Silvino, quando estavam sendo perseguidos pela polícia de Pernambuco. Seus descendentes, assim como os de Maroto, ainda vivem em Inhamuns. Os descendentes de Maroto se misturaram com os Feitosa."

* 10 - A narração da morte de Gonzaga se baseia principalmente numa entrevista com João Primo de Carvalho, Belmonte, 30 de julho de 1975. O Diário de Pernambuco deu uma pequena nota, no dia 21 de outubro de 1922. Ver também Wilson: Vila Bella P 338-340. 

Vemos assim três versões mais ou menos iguais, se complementando em informações, mas com alguns conflitos. Nessa avaliação não me arvoro em opinar o que está certo ou errado, pois sei que até mesmo grandes historiadores e pesquisadores, colhem suas investigações na procura da verdade, buscando-as nas indagações a pessoas que viveram à época ou que ouviram a história de quem esteve presente, também averiguando jornais, revistas, e livros, explorando e indagando. E que a mente humana é falha em guardar os acontecimentos ao longo dos anos que se passaram.