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sábado, 29 de novembro de 2014

Cangaceira Dadá: A Suçuarana do Sertão.

 
 
Postado pelo confrade Antônio Correia Sobrinho em página do Facebook do Grupo de Amigos LAMPIÃO, CANGAÇO e NORDESTE
 
JORNAL “O GLOBO” – 10/06/1973
COMADRE DADÁ, ANJO DE CORISCO, O CANGACEIRO

Uma entrevista exclusiva de D. Sérgia da Silva, a Dadá, que foi raptada pelo cangaceiro Corisco, perdeu uma perna em 1940, no último combate contra as forças legais, e hoje enfrenta diariamente a máquina de costura, para sustentar 16 netos.
DEPOIMENTO
D. SÉRGIA DA SILVA...
Corisco dividia os homens disponíveis com Lampião. Às vezes, segundo Dadá, passava até oito meses com Lampião, mas normalmente se separavam depois de dois ou três meses. Dadá lembra que, às vezes, chegavam a trocar tiros quando vinham no mato, e ambos pensavam que se tratasse de uma volante.
“Quando não tinha tiro, tinha alegria”.
Assim é que Dadá lembra de sua vida em bando.
- Ah, era tudo de bom. Os coiteiros eram quem trazia as cargas. No tempo de briga tudo era mais racionado, mas quando tinha uma calmazinha, a coisa era bacana. Dinheiro não faltava, era aos montes, era o que mais se tinha. A gente recebia de um tudo. Dizem que eu tenho medo de delatar quem dava armas. Eu sempre digo a quem me pergunta, que não conhecia. Para que me pergunta? A gente não come para quebrar os pratos. A gente come pra lavar os pratos, pra quando precisar. E é mesmo, eu gosto sempre de ter um pouco de reserva com as coisas.
Nos tempos da “calmazinha”, a vida do bando era para descansar e para a diversão. Os homens limpavam a capoeira e colocavam seus cachorros para brigar. A briga de cachorros era importante, cada qual queria ter o melhor animal e alguns deles ficaram famosos. Havia também a “luta de peito”, entre os homens. Os mais fracos eram eliminados até ficar apenas um, o mais forte e mais hábil. Os animais, nos tempos de paz, ocupavam quase todo o tempo dos homens e mulheres. Havia corrida, disputas levadas a sério, principalmente por Maria Bonita, que tinha um burro chamado “velocípede”, considerado invencível pelo bando. Cada animal tinha um nome e uma sela ornamentada especialmente com tirinhas de couro e desenhos que ficaram conhecidos como símbolos do cangaço como: A burra do Zé Baiano era “Brinquedinho”, a de Lampião era “Simpatia”. “Fagueiro”, era o nome do burro de Corisco.
Noite de lua, em tempo de paz, os homens se reuniam para contar seus casos. Alguns tocavam viola, outros tocavam gaita. Corisco era bom na sua flauta amarela e preta, que Dadá guarda até hoje, dentre as poucas coisas que lhe restaram do cangaço.
- Mas em tempo de persiga a vida não era fácil. Muitas vezes, a gente encontrava o bornal e o fuzil encostados no canto. Muita gente via que não era fácil, que era vida pra homem macho e debandava. A entrada de um recruta no bando era sempre a mesma coisa: Ah... O senhor sabe, eu queria seguir com o bando... ficar com vocês... E o chefe do grupo perguntava: você é homem mesmo? E acabavam combinando. Nos primeiros dias, dois homens cuidavam do recruta, observavam suas atitudes, sua esperteza e seu traquejo com uma arma que lhe davam, geralmente não muito boa. Somente quando o homem provava que dava para aquela vida lhe entregavam um fuzil.
Embora nunca tivessem brigado, Maria e Dadá parece que tinham certa rivalidade. Maria de Déia, como era conhecida, no grupo, era a Primeira Dama do cangaço e não abria mão do privilégio. Para Dadá, Maria não era bonita e o apelido somente apareceu depois da sua morte em Angicos, em 38, quando morreu também Lampião, vítima de uma emboscada de uma volante.
- Maria era como uma criança mimada. Era enjoadinha e encrenqueira. Se Maria tivesse dando sotaque de manhã, Corisco viajava de tarde. Com Lampião, ela fazia ele de peteca. Só faltava dar nele, mas homem disposto não briga com mulher. Quando Maria estava muito levada, Lampião ria e dizia: “... Ave Maria, hoje ela tá danada, não tem quem possa. Junta ela e Guarani (o cachorro) pra me atazanar. Mas no dia que era ele que estava zangado, ninguém brincava, Maria ficava quieta.
Pelo que conta Dadá, Maria Bonita, se não fosse bela, pelo menos era faceira e viva. E sabia aproveitar-se dessa condição entre as outras mulheres. Montava em sua burra enfeitada, fogosa, e dizia pra todos bem alto: “Olha a mulher do Capitão. Olha os ouros da mulher do Capitão, olha os vestidos”. Um dia Maria perdeu uma corrida com sua burra e quis sacrificar imediatamente o animal, o que não fez devido a interferência de Lampião, que sabia acalmar o gênio explosivo da mulher.
Dadá era diferente. Era mais madura e contava muito com a confiança do Capitão. Era desconfiada, não deixava o marido “fazer tratos à toa”. Ou ia na frente de Corisco ou ao pé dele.
- Eu queria estar junto dele, tinha medo de uma emboscada, que atirassem nele.
Logo Dadá aprendeu a lidar com arma e a conhecê-las muito bem.
- A primeira arma que tive era toda enfeitada, bonequinha. Pistolinha bacana, revolverzinho enfeitado. Quando a coisa engrossou, passei a pegar no fuzil e parabelo. Quando era tempo de verão, era duro. A “macacada” tomava conta dos bebedouros. Tem coisas que eu vivi que nem sei contar. Eu nem sei como passei por tudo isso.
Talvez, se tivesse tido chance de ficar com os filhos, teria sido tão boa como mãe como o é como avó, que sempre cuida da compra dos livros, ou da saúde dos netos. Quando um adoece de uma coisa, outro tem uma dor de ouvido, ou uma gripe.
A vida de cangaço não permitiu a Dadá ser mãe. Outros cuidaram dos seus filhos; teve sete, mas somente três estão vivos, Maria Celeste, com doze filhos, Maria do Carmo, com quatro, e Silvio Bulhões, que é economista, “mas que não liga para mim”, com seis filhos.
O primeiro filho de Dadá nasceu em 1º de maio de 1933, mas devido à dureza da vida levada por sua mãe, não resistiu.
- O menino mais velho, Josafá, ficou cheio de espinho, magrinho e morreu. Fiquei com ele três meses, mas o tempo era quente, tinha muita poeira, bagaço e espinho. E o meu medo era deixar um filho meu abandonado na hora de um ataque das volantes. Eu tinha meus filhos e não podia carregar. Aquele agreste não era lugar pra anjo. Quando eu tinha menino, eu ficava ali por perto. Quando o menino caía o umbigo, eu entregava a uma pessoa de responsabilidade. Maria Celeste eu entreguei ao Major Medeiros. Maria de Lurdes ficou com o Padre Soares, mas morreu pequena, e Silvio, com três meses de grávida, o Padre Bulhões me pediu a criança. Meus filhos não morreram assassinados, mas quando um menino cangaceiro ia para a cidade contratavam e quando vinha a medicação da farmácia trocavam por veneno. Nunca pude olhar pelos meus filhos. Somente quando acabou a perseguição pude me encontrar com eles. Mas nada tive para dar. Nós compramos muitas coisas, mas quando sabia que era de Corisco, tomavam. Se soubessem que a gente tinha se encontrado com alguém, tomavam do pobre até a camisa.
Por tudo isso, Dadá e Corisco sempre viveram com bando, mas sem filhos. Como marido e mulher, não tinham problemas. Havia muito respeito. Corisco somente se zangava quando a mulher começava a xingar. Ele detestava nomes feios. Quando Dadá dizia “peste”, ele imediatamente advertia:
- E a camisa que tu veste. Como tu pode andar com esses nomes na boca?
Para muitos autores que escreveram sobre o assunto, a morte de Lampião, em Angicos, em 1938, com Maria Bonita “foi passado o atestado de óbito do cangaço no Brasil”. Dadá, em sua simplicidade, explica a situação em que ficou o cangaço, com a morte do chefe.
Quando o compadre Lampião morreu, o mundo acabou. Ninguém podia substituir, ele veio para aquilo mesmo. Uma só palavra bastava. Um “não” bastava. Era um exemplo do mundo, apesar de feio, alto e magrinho. Ele tinha uma força diferente dentro dele, quando zangado dizia nomes que nem se sabia o que era. O sol quente, ele com sede, dava nomes que a terra parecia que ia pegar fogo. Com a morte dele todo mundo começou a se entregar, sem combinar nada. Nos primeiros acordos eu fui contra. Eu disse a Corisco: “Se você quiser se entregar, se entregue. Eu não vou. Eu ouvi dizer que pegam os cangaceiros e matam. As mulheres, eles cortam os pescoços, como fizeram com Maria, mas não proíbo que você se entregue, se você quiser ir, e, se caso vencer na vida, me chame depois que eu vou”.
Corisco preferiu ficar com a opinião da mulher. Diziam que ela o governava. Ela desmente, mas concorda que “quando pegava numa ideia, ele me ouvia muito”.
Numa reunião melancólica e triste, Corisco falou para seus homens que poderiam ir embora, entregar-se, tomar qualquer destino. Quem ficou com medo, entregou suas armas ao chefe, e abandonou o grupo. Corisco seguiu o seu caminho, agora irreversível, já que vários tinham depositado confiança nele.
Segundo Dadá, o maior desejo de Corisco era abandonar aquela vida. Uma vez pediu permissão a Lampião para abandonar o cangaço. Chegou a ir para Sergipe, sua terra, para viver como lavrador, ao lado de Dadá, sonhando criar filhos, umas duas cabeças de gado para o futuro dos meninos e esquecer os tiros, os sobressaltos, as fugas. Não passou de sonho. Foi reconhecido e forçado novamente a se unir a Lampião. Tinha que se conformar, “não podia beber de qualquer água”.
Em 39, de maio para junho, viveu seu penúltimo combate, seguido por oito homens e sua mulher Dadá, “que valia por dez”.
- Tudo que ia se dar com a gente eu via. Eu tinha visões, via passar pernas, via assim aquela fileira passando, me assustava. Comecei a temer porque se eu tivesse um sonho hoje podia preparar que tinha de ser aquilo. A gente tava viajando para Sergipe, para pegar um gado que Corisco queria dar para uma menina nossa. Mas essa viagem foi a maior atrapalhada. Um dia acordei assustada com as visões e disse: não fico mais aqui. Empaquei nisso. E tinha razão. Tinha oito dias que nós estávamos ali descobertos. Um rapaz que estava com a gente bebeu demais e disse numa venda que estava com Corisco. Um soldado que trabalhava na rodagem foi a Jeremoabo e contou onde estava Corisco e começou a perseguição. Nós saímos numa segunda-feira, uma hora da tarde, às sete da noite, a roça estava cercada de volantes.
Durante toda a viagem para buscar o gado em Sergipe, aconteceram coisas estranhas. Andavam, andavam, andavam, e, quando reparavam, tinham andado em círculos. Quando iam passando pela terceira vez, pelo mesmo riacho, pulou um sapo amarelo pintado de preto, pulando “na nossa frente”. Dadá advertiu: “Olha aí”. Corisco ficou com raiva e esmagou o sapo com a coronha do fuzil. Depois todos se sentiram tranquilos, menos Dadá. Se já era cuidadosa, passou a observar ainda mais cada movimento no mato. Cuidava mesmo assim de tudo, principalmente de um menino de 14 anos, chamado Roxinho, que fazia parte do grupo e a quem dera um fuzil, forrara o cantil como só ela sabia fazer e confeccionou com carinho cada peva de seus arreios; eram oito pessoas, ao todo.
- Quando a gente ia atravessando uma catingueira, eu ouvi aquela rajada e não vi mais ninguém por causa daquela poeira levantada pelos tiros. Depois vi Corisco atirando e me acenando com a mão, me chamando para junto dele. Quando a “macacada” ouviu ele me chamar de Dadá começou a gritar também pelo meu nome. Já estava Guerreiro baleado, levantando e caindo e me chamando. Como eu não tinha mais bala no parabelo e era impossível botar balas no pente, eu me abaixava e metia pedra na cara dos “macacos”. Roxinho foi baleado e quando cheguei junto de Corisco, ele disse: “Dadá, olha pra aqui. A mão estava dependurada, presa nos nervos, depois que uma bala varou também o ombro. Com um lenço, enrolei o braço dele e disse: Vombora. Seguimos pela camaratuba, um mato mole, deixando aquele rastro mole no chão. Corisco ia pendendo para frente, perdendo as forças e eu gritando: “vombora, vombora, vamos morrer andando”.
A fuga de Corisco e Dadá, em sua penúltima batalha, durou três dias e três noites de insônia, fome e sede, andando pela dourada, “um mato verde que ninguém esconde rastro”. Depois tiveram que atravessar a macambira, espinhos, “e tudo o mais”. Para alcançar um lugar seguro, como as alpercatas de Corisco eram muito pesadas, Dadá calçou as suas no marido, rasgou o vestido e enrolou nos pés.
- Que tem de morrer para o ano, não morre este não.
Mais uma vez, durante a marcha, encontraram “macacos”, trocaram tiros e conseguiram escapar. Quando atravessavam uma várzea surgiu um soldado. Dadá conta que ainda teve tempo de apanhar o seu fuzil, que estava pendurado no ombro de Corisco, e atirar primeiro. Quando tentou subir uma ribanceira para ver se ainda havia mais “macacos” por perto, deram “mais uma rajada de tiros tão grande que arrancaram o barranco de terra do tamanho de uma mesa. Me levantei com aquele bolo nas costas, os olhos cheios de terra e corri arrastando o fuzil”.
Ao fim da fuga, dos homens que estavam com Corisco sobrou apenas um, “Caixa de Fósforo”. Dadá mandou que ele fosse conseguir água, comida, roupa, qualquer coisa numa fazenda próxima, mas não confiou e continuou arrastando Corisco com medo de Caixa de Fósforo voltar com os “macacos”.
“O cabra de Corisco voltou sozinho, mas, um dia depois, disse que tinha se perdido; mentira, não resistiu e dormiu”.
Talvez Corisco só tenha saído com vida desse combate porque os três encontraram uma “farmácia”, um pote grande enterrado por coiteiros numa roça. Finalmente Dadá pôde olhar o ferimento do marido e passar outro medicamento, além de raspa de quixabeira, uma planta do sertão que dá umas frutinhas negras.
- Botei cachaça em cima e deixei. Quando rasguei o paletó com o canivete, estavam aquelas placas pretas enormes. Eu carregava uma binga cheia de fumo. Destampei e botei fumo em cima das placas. O homem estava com aflição de dor, mas depois disso desceu aquele suor e ele disse que passou toda a dor. Quando ele arriou o braço, desceu aquela água preta, bicho assim. Rasguei toda a roupa dele de faca para curar a ferida.
Passaram-se três meses e dezenove dias para Corisco ficar bom. Dadá lhe tirou o ferimento com farinha, cebola, lavava tudo com raspa de aroeira, deixava de molho com emplastro e no outro dia lavava tudo de novo. Para chegar um curativo levava dois dias e duas noites. Caixa de Fósforo viajava, aproveitando a noite e trazia algum medicamento. Mas como o cotovelo continuava inchado, Dadá abriu com um canivete. Mas, com todo cuidado de mulher enfermeira, cozinheira, parteira, anjo, Dadá não devolveu à mão de Corisco os movimentos. Ele, o Diabo Louro, escondia a mão para não verem que estava aleijado. Portava arma, mas tinha que confiar na mira de Dadá, porque não podia apertar o gatilho.
- Eu tive um sonho. Nós estávamos ali e passava uma rede de defunto assim, pelo alto do céu, coberta de urubus. E eu dizia: “tá vendo, Corisco, ali é Zé Baiano que já mataram, vamos embora.
Se todos os sonhos de Dadá eram uma previsão segura, quando ela acordou de manhã e contou o seu sonho a Corisco, estava contando também o fim do cangaço, se é que se pode falar na existência de apenas um cangaceiro, mesmo assim com a mão inutilizada, oito meses antes.
Dadá mais uma vez acreditou nos seus sonhos e chamou o marido, que tinha parado na Barra do Mendes, apenas para fazer companhia a um homem que tinha perdido a sua mulher. Dadá estava fazendo as roupas de luto do viúvo, mas estava disposta a deixar a linha preta, a tesoura e a agulha para seguir seu caminho errante com o marido, a quem protegia como um guarda-costas. Aquele homem com quem se casaria um dia em Porto da Folha, Sergipe, com um padre rezando o Ofício, “morrendo de medo”, era o ser mais valioso para ela. Defendera-o dos ataques das meninas mais novas, atraídas por seus longos cabelos amarelos e bigodes tratados e fazia o mesmo agora, contra o Zé Rufino que o caçava. Por isso Dadá insistia em deixar aquela Fazenda e seguir viagem. Corisco disse que tinha mandado um rapaz no povoado fazer umas compras e, tão logo chegasse, reiniciariam a viagem, como sempre sem destino certo. Mas quando o rapaz voltou da venda, a força policial tinha chegado primeiro.
Eram dezoito homens e meteram fogo em tudo. Atiraram em Corisco e quando eu pulei uma cerca, não achei o pé. Só ficou pegado com um nervo. Eu dizia: corte isso, me dê a faca que eu corto, mas eles não atendiam. Veio um soldado para cá: acaba de matar essa... E eu disse, me dá esse fuzil e me chama de novo desse nome sujeito amarelo, magro, desgraçado. Eu cortava ele pelo meio...
Foram colocados em um caminhão e seguiram acompanhados pelos soldados, que iam cantando o tempo inteiro da viagem. Corisco agonizava e morreu doze horas depois de baleado. Dadá chamou Zé Rufino, comandante da força policial e pediu que mandasse os soldados pararem de cantar. Antes de morrer, quiseram dar água a Corisco, mas ele não aceitou. “O que tiveram de fazer por mim, façam por Dadá”. Sempre que tinha forças para falar perguntava se a companheira ainda esta viva. Trinta anos depois da morte de Corisco, Zé Rufino, sentindo que estava muito doente, mandou chamar Dadá para lhe pedir perdão. Agarrou-se em suas mãos e, cheio de arrependimento, ouviu o perdão de Dadá, que só fez questão de lembrar que Corisco não tinha morrido em combate, mas desarmado, porque não podia sequer pegar numa colher.
- Não concordo com o procedimento dos autores. Trocam tudo. Mentem. Dizem coisas que não aconteceram, inventam. Minha revolta é contra o filme de Glauber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Ele foi errado em não combinar comigo. Diz que é assunto público. Mentira. Não pode ser. Eu existo. Estou viva. E não tem nada de cangaço ali. O que o filme tem é uma bandalheira, sujeira, povo sujo enrolado com uns molambos nos pés. Corisco, um homem bacana daquele (mostra fotografia do marido, com toda a sua bolsa, os braços arqueados de tanto equipamento). O filme mostra Corisco dando um tapa em mim – isso é o que mais me revolta. Ora, eu, hoje, uma pessoa me gritando eu não gosto, quanto mais pra me dizer que vai me dar um tapa. Nem Corisco. Todo mundo ali me respeitava. Até hoje, quando encontro os sobreviventes, eles me abraçam e começam a chorar.
O filme “Corisco, Diabo Louro” foi o que lhe rendeu algum dinheiro, além de uma estada de três meses em São Paulo. Mesmo assim, prometeram uma avant-première em seu favor, que nunca houve.
Dadá se queixa da moça que se apresentou em um programa de televisão, respondendo sobre o cangaço e que vem explorando o seu nome constantemente. Chega em muitas cidades para lançar seu livro e fazer conferências, prometendo a presença de Dadá. Depois, inventa uma desculpa qualquer.
Dadá se aborrece na hora. Depois esquece tudo, envolvida pelos 16 netos que sustenta. Agora tem uma grande esperança. Está fazendo artesanato. Belas bolsas enfeitadas como as dos cangaceiros, bordadas com linhas coloridas. Pretende vender, e com o dinheiro, se tudo der certo, comprar uma casinha longe da Rua dos Perdões, onde o ruído dos automóveis e caminhões lhe tiraram o direito à paz que não encontrou desde que veio para Salvador, em 1940. Porque os soldados achavam que todos os que morreram com balas de arma curta foram baleados pela mulher de Corisco.
Até mesmo para ela, tudo mais parece uma fábula desde que aquele homem magro de bigode e cabelo amarelo a montou na garupa do seu burro e andou doze anos pela caatinga. Somente os 33 anos que a separam daquela vida deixa o cangaço distante. Tão distante como aquele homem de pouca conversa, boca pequena, que gostava de rezar, e que quando entrou no cangaço o cabra Jararaca disse: “Deixa que eu tomo conta deste. O apelido dele é Corisco.”