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sábado, 4 de janeiro de 2020

Lampião: Sou cangaceiro e não capanga


Raul Meneleu
A bela e aprazível cidadezinha da Chapada Diamantina de Lençóis, na década de 20 era considerada a "capital das Lavras". Com seu vice-consulado da França, era apontada como "Vila Rica da Bahia". Depois de todo esse progresso, porém, a região transformou-se no maior centro do coronelismo e da jagunçada na região da Bahia, com sua complexa estrutura de poder, que geralmente tinha início no plano municipal, exercido com hipertrofia privada  – a figura do coronel  – sobre o poder público — o Estado —, e tendo como caracteres secundários o mandonismo,  o filhotismo (ou apadrinhamento), a fraude eleitoral e a desorganização dos serviços públicos — e abrange todo o sistema político do país, durante a República Velha.
A década de 20 foi o auge do barbarismo na região, pouco afeitos à civilidade e à lei: uma época dos chamados "cabras valentes", onde o modo de resolver conflitos era na base do "revólver na cinta" e das gatas-bravas (mulheres guerrilheiras). Foi nesse cenário, que Lampião esteve nessa cidade, quando de passagem pela Bahia, conhecendo cada palmo de terreno para a sua guerra que sabia por certo, viria.

Segundo depoimentos, Lampião "variando as posições de perspectiva, deslumbrava-se, extático, diante do fantástico espetáculo nunca por ele contemplado" e hoje penso em minhas visitas na década de 70, apenas 42 anos nos separando desse passado, antes do auge do barbarismo nessa região.

Ver este vasto território da Chapada Diamantina, onde aliava meu trabalho, com minhas pesquisas sobre os escravos, filhos de escravos, religiosidade, etc. O via também como Lampião deve ter visto e se assombrado com os enormes aglomerados de gigantescas elevações de granito, "corcovadas e rotundas, tabuladas e bizarras, às vezes mal-assombradas como o morro do Pai Inácio, tomando a forma de castelos feudais, fortalezas medievais, majestosas proas de embarcações, mirantes e promotórios ciclópicos, uma acrópole erguida pela natureza para os deuses da mitologia!".

Vi sim! Todo esse cenário visto tanto pelo Padre Escritor quanto por Lampião. Me deleitei em desbravar essa terra linda e maravilhosa. Banhei-me em suas cascatas e cachoeiras. E como Lampião, me deleitei com as flores silvestres sendo visitadas pela lindas e majestosas borboletas.

Frederico Bezerra em seu relato poético sobre o momento em que Lampião viu essa força divina trabalhando perante seus olhos, disse: "Causariam espanto, qual mundo lunar, aquelas paisagens vagueiras, de impressionante solidão, não fosse o condão de fada ter atapetado os convales e prados de miríades de flores silvestres, variegadas e multicoloridas, sobre as quais esvoaçavam inquietas e ligeiras, enxames de borboletas de todos os matizes.

Os cangaceiros achavam muita graça quando Lampião, por várias vezes, a modo de criança, saía colhendo pelo campo umas florzinhas muito abundantes, de cor azul, campanuladas, parecendo pequenas açucenas de estames amarelos, popularmente chamadas milondas, e, as mãos cheias, jogava-as contente para o alto em agradecimento ao Criador de tanta beleza imensamente grande! De certo, naqueles momentos, se lembrava com ternura e saudade do seu "tempo de inocente", quando "brincava nos cerrados" do seu "sertão sorridente". Recordava, embevecido, a Serra Vermelha, doirada à luz do sol nascente e enfogueirada nos arrebóis... a caatinga florida e cheirosa no inverno... os areiais brancos do riacho São Domingos em cujas águas mergulhava e nadava feito peixe... as noites inconsúteis cheias das doces claridades do luar... tanta e tanta lembrança tão longínqua!"

E o Padre arremata: "Ah! deve de existir, recalcado, algo de monstruoso no espírito vesgo daqueles que consideram esse homem um monstro! Como é fácil condenar! Por que não enxergam nele, com olhos alimpados, a delicadeza de seus sentimentos artísticos e humanos?"

Voltemos aos homens valentes daquela região e vejamos o que já foi sinônimo de jagunço. Lutador por ideal ou profissão, jagunço não era o mesmo que cangaceiro. Era "soldado" porque serviam a um "coronel" sertanejo, a serviço de uma causa e de um chefe, cujo mando era a força, não a lei ou o reconhecimento da população, que, segundo o mito, desconhecia o medo no campo de batalha. No entanto, era apenas mais um pobre, excluído, da história do Brasil, servindo ao poder local, muitas vezes contra a lei e o Estado de Direito. Mas as notícias jamais chegavam ao governo central. Não era de interesse para os coronéis a não ser as que lhes interessavam! É tanto que, até hoje, há forças no Nordeste brasileiro que enaltecem os coronéis, como se isso fosse motivo de orgulho para o país. Fazem isso por interesse pessoal, já que muitas vezes são descendentes daqueles oligarcas que conseguiam e se mantinham no poder pela violência, o assassinato e o roubo.

Horácio de Matos, que dominou a região das Lavras Diamantinas, foi o último e o maior de todos os chefes dos jagunços. O próprio governo de Epitácio Pessoa foi obrigado a assinar com ele um acordo de pacificação, e a Coluna Prestes teve de sair do país depois que invadiu os seus domínios, tal como sempre ocorre com os governos brasileiros, que não podem contra as milícias particulares até a presente data.

O interesse de Lampião em ganhar a Chapada Diamantina, não eram as belezas assoberbadas e pitorescas da natureza; de seus sentimentos artísticos e humanos e nem  das Lavras Diamantinas, com suas zonas de mineração  e nem a procura de pedras preciosas nos "veios" ou linhas de diamantes. Nesse ponto lembrei de uma de minhas passagens pela Chapada Diamantina, quando em conversa com um dono de pequeno restaurante onde parei para almoçar. Falava ele dos tempos gloriosos dos diamantes. Disse-me que, "cansou de levar as "pedras" para os EUA e as escondia no cós de sua camisa de linho indiano. Que ainda tinha um garimpozinho e convidou-me a ir até lá. Era o ano de 1975 e eu sozinho naquelas pairagens, estudando e pesquisando os hábitos daquela região, tive receio de ir. Perdi a oportunidade, mas quem sabe o que ganhei?

Pois bem... Lampião sabia o que queria. Tem pessoas que acham que ele queria ficar rico. Nada disso! Lampião era um guerreiro valente em busca de alcançar o vento. Ali era a terra dos coronéis que mandavam na Bahia. Não eram os coroneizinhos das caatingas. Ali residiam os jagunços "mandiocas" do coronel Horácio de Matos, de Lençóis, e os "mosquitos" do coronel Fabrício de Oliveira, estava nas terras de antigas lutas de conquista onde giravam as famosas "gatas bravas", guerrilheiras masculinizadas, cabelos cortados à escovinha, chapéu de couro, armadas de punhal e pistola, sobre as quais Lampião, talvez com o tempo, quando da entrada no cangaço das mulheres, lembrasse que eram inferiores às cangaceiras, de vez que aquelas, perderam as características e os sentimentos de feminilidade, já as cangaceiras, entre elas a famosa e bonita Maria do Capitão, tão linda, feminina e faceira, eram superiores pelo carinho e amor a seus homens!
Seu interesse era duplo: tático e político. Era um General. Conhecer o território para campo de ação e refúgio; estabelecer contatos com os coronéis-chefões para lhes obter o apoio em dinheiro e material bélico.

Em seu livro "Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado" O Padre diz: "Foi assim que, de primeiro, atacou a cidade de Morro do Chapéu, cometendo depredações. E dai, sempre bordejando a cordilheira do Sincorá, atingiu Palmeiras, às margens do riacho Grande, Mais adiante tomou refrescante banho salutar nas águas limpíssimas do "engrunhado" ou rio subterrâneo que corta a gruta de Pratinha, uma das muitas, pequenas ou imensas, todas encantadoras e misteriosas, existentes nos recôncavos das serras. Em Lençóis, esteve com seu grande amigo, o coronel Horácio, o maioral dos garimpos e o mais poderoso chefão de jagunços da Bahia, que, em desde os primeiros dias de setembro de 1928, lhe vinha dando proteção. É evidente que isto por política do famanaz coronel Horácio a modo de dividir a atenção das autoridades quanto às lutas de conquista das lavras diamantíferas. Por seu lado, beneficiava-se Lampião deste jogo, de parte a parte consciente.
Nessa oportunidade, o coronel convidou Lampião para se engajar como chefe de toda a sua jagunçada. A resposta foi dada com altivez:
- "Sou cangaceiro e não capanga!"

Admitia assim, Lampião, a diferença de conceito entre os dois termos. Descendo, entrou nas terras de Andaraí, onde imperava o coronel Aurélio Gondim, passou ao largo da grande quantidade de "montoeiras" de antigas lavragens, em Mucugê, do coronel Douca Medrado." E daí ganhou o mundo baiano, fazendo estripulias.

Aracaju, 04 de janeiro de 2020

Bibliografia:
- A Campanha da Bahia, Frederico Bezerra Maciel
Os Grandes Diamantes Dos Coronéis, Maria Helena Guedes