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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Volantes e Cangaceiros - Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come

O velho fazendeiro dizia a seu hóspede, que lhe pedira para passar uma noite arranchado em seu alpendre, visto o tempo ter fechado no horizonte próximo com nuvens escurecidas de chuva.

- Tem que ter cuidado pois essa região está infestada de cangaceiros!

E o mascate que pela primeira vez aventurava-se por aquela região, concordava com o balançar de cabeça e olhos arregalados. Vestia-se como um dandy. Seu modos finos e trejeitos denunciavam-lhe como um citadino que tentava imitar, e o fazia com perfeição, os modos finos daqueles que tinham bom gosto e senso estético, mas que não necessariamente pertenciam à nobreza. 

Trazia junto com ele, muitas quinquilharias de uso doméstico, juntamente com finos tecidos no intuito de vender para aqueles que tinham dinheiro para isso. As quinquilharias não; essas eram geralmente de preço acessível para as donas de casa em geral. Toda a mercadoria armazenada em uma cafuringa pequena, tipo T modelo 1929 da Ford.

A mulher e as filhas do fazendeiro, não saiam de perto, admirando aquele homem de fino trato e de olho nas mercadorias que ele lhes mostrava. As de uso doméstico mais cobiçada pela mulher do fazendeiro, e pelas filhas os mimosos e coloridos tecidos que poderiam fazer vestidos de festa.

- Pois bem, dizia o fazendeiro, "tive até que contratar jagunços pra proteger nossa propriedade e a gente. O governo seu moço, não cuida do sertão e abandona toda essa gente dessas bandas..."

A noitinha já tinha chegado e estavam sentados à mesa para fazerem a refeição da janta quando ouviram pisadas lá fora e um barulho de confusão. O fazendeiro levantando-se, foi abrir a porta e deparou-se com soldados de polícia, segurando os dois jagunços que tinha contratado e que foram presos pelo comandante da volante que apresentava-se à frente.

- Ora, ora, então quer dizer que coiteiro agora se protege com jagunços em armas né? Disse de chofre o tenente que comandava a volante.

- Que é isso seu tenente... esses homens estão ai pra proteger a gente dos cangaceiros! Disse o fazendeiro.

O tenente olhando pra dentro da casa, viu a mulher, as filhas e aquele homem engraçado com aquelas roupas apertadas, e entrando sem pedir licença foi dizendo:

- Quem é você cabra? O que está fazendo por essas bandas? É seu aquele caminhãozinho que tá lá fora?

E o comerciante, levantou-se e todo aprumado respondeu a inquirição:

Me chamo Aderbal Ventura, sou do Recife e estou nesse sertão de Deus para trazer progresso para essa gente tão abandonada. Minhas mercadorias estão como o Senhor pode ver, naquele canto ali, apontando para a lateral da sala.

- Pois muito bem 'seu" Aderbal, vá se afastando pro lado pois a conversa aqui não lhe compete. E virando-se para o fazendeiro disse: "Soubemos que o senhor está acoitando cangaceiros e viemos aqui pra lhe dar um aviso!"

Ao ouvir isso, o fazendeiro ficou lívido de temor e disse de imediato: "Como! Estou gastando dinheiro pra manter cangaceiros fora de minhas terras e protegendo minha família como o senhor pode bem ver com esses dois homens que estão ai presos! Como pode dizer isso?"

- Esses dois cabras estavam armados ali na porteira e devem fazer parte do bando que se acoitou aqui. Diga a verdade homem!

- Esses dois foram contratados por mim para proteger a fazenda e não são cangaceiros não "seo" tenente!

O tenente olhando malevolamente para a moças e para a mulher do fazendeiro, que entraram no quarto com medo, disse a seu sargento:

- Oiticica, pega um desses cabras, esse mais moço... e leve ali pra fora e tenha uma conversinha com ele pra ver se ele abre o bico.

De dentro da casa, todos ouviam a peia cantar em cima do pobre rapaz, que gritava espavorido da surra que tomava.

- Senhor tenente... mande parar por favor! - disse Aderbal.

- Que nada senhor Aderbal, o senhor tá passando por aqui pela primeira vez e não conhece essa corja de fazendeiros coiteiros de cangaceiros! O senhor vai ver que esse safado - se referido ao dono da casa - é coiteiro sim!

O fazendeiro olhava fixamente para o oficial e disse: "Isso que o senhor está fazendo é pior que os cangaceiros fazem!"

O tenente com muita raiva, partiu pra cima do velho e disse-lhe: "Véio safado é melhor você calar a boca senão lhe meto a chibata!" - Nisso o sargento vinha entrando na casa e disse: Senhor, o homem desmaiou,o que faço? E o tenente disse: "Pega o outro" - E o outro jagunço foi levado e feito o mesmo serviço com ele. Apanhou até dizer chega, mas não disse nada que incriminasse o dono da fazenda.

O Tenente, abriu a porta e disse para o cabo que guarnecia a porta: Juventino, vá lá na cozinha e pegue a empregada e leve ali pra fora pra ela se explicar também!

O velho fazendeiro, com ira nos olhos arregalados por ver tanta perversidade, disse: "Essa é sua autoridade tenente! Bater nas pessoas de bem?"

- Cala a boca véi safado, senão lhe meto uma bala nela!

Foi quando a mulher do fazendeiro e as filhas, chorando e gritando pedindo que parassem com aquilo, saíram do quarto e a mulher do fazendeiro foi dizendo: "Eu conto tudo "seo" tenente! Não faça nada com meu marido!" - e o chororô aumentava e as moças tremiam de medo - E ouvia-se o clamor da empregada sendo surrada no pátio da fazenda. A lua iluminando com sua luz prateada, o terreiro, o curral e os bois deitados como se tudo estivesse bem. Os soldados riam daquela cena, espichados pela calçada do alpendre. A empregada não tinha levado nem três lamboradas de cipó de pau-ferro, quando gritou que iria falar.

- Eu conto... eu conto tudo... - gritava a mulher. - "eles estiveram aqui a cinco dias atrás... estão agora lá naquele lagêdo das seriemas. Ficaram aqui apenas uma noite e foram embora. Ouvi eles dizer que iam pra Seriema "seo" tenente!"

- Não disse senhor Aderbal? O senhor pode entender de comércio, mas quem entende de coiteiro sou eu. - E virando para o sargento disse: "Solta todo mundo! Vamembora gente, vamo pegar esses safados!"

Esvaziaram a dispensa, saquearam o que podiam saquear, e a soldadesca invadiu a casa e levaram também muitas bugingangas e tecidos do dandy que olhava estupefato sua mercadoria sumir na noite adentro.

Já eram umas quatro horas da manhã e o dandy arrumando o restinho de sua mercadoria na cafuringa, ouviu quando a empregada disse baixinho para a patroa "que tinha mentido para se ver livre da peia."

- Fala baixo menina, fala baixo... dizia a patroa.

A manhãzinha já vinha clareando tudo e o sol amarelado despontava. A chuva que prometera arriar no sertão tinha ido embora como se dissesse que aquela terra não merecia suas águas. O galo cantava e o mascate apressado para ir embora dali, rejeitou o convite do fazendeiro para tomar café. O fazendeiro despediu-se dele dizendo:

Tá vendo "seo" Aderbal... é cangaceiro de um lado e a volante do governo por outro!