Artigos Variados

segunda-feira, 23 de maio de 2016

O BEATO DA CRUZ NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO

BEATOS E CANGACEIROS 

Esse livro editado no ano de 1920 de autoria de Xavier de Oliveira, nos relata as estórias de beatos e cangaceiros, como história real e observação pessoal do autor, que desde o ano de 1909,  em sala de aula do Colégio São José, na cidade do Crato, Ceará, ter sido dado um trabalho escolar aos alunos, para desenvolverem o tema O Cangaço no Cariry. Nesse artigo, trago a atenção para um beato que viveu na cidade do Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero Romão Batista, a partir do ano de 1894, quando ali chegou para pagar penitências, como um romeiro qualquer. Trazia marcado em sua alma um crime, como a estória abaixo lhe dirá qual foi, e a Síndrome de Jerusalém que trata-se de um grupo de transtornos mentais, envolvendo a ideia obsessiva de temáticas religiosas, delírios e ideias psicóticas, que surgem após uma visita à cidade de Jerusalém, e que em artigo EVENTOS MARCANTES DO CARIRI CANGAÇO 2015 – Edição de Luxo, faço menção, quando digo que tal síndrome é o nome dado a um grupo de fenômenos mentais envolvendo a presença de ideias obsessivas de temática religiosa, delírios ou outras experiências de cunho psicótico que são desencadeadas por alguns que visitam a cidade. Na Jerusalém Brasileira, o Juazeiro do "Padim Ciço" cidade onde respira-se religiosidade, não poderia ser diferente, especialistas da área acreditam que esta síndrome trata-se de um transtorno dissociativo histérico, no qual indivíduos geram outra personalidade, em decorrência da sobrecarga do tema religioso que paira no ar e digo eu, por pesquisas sobre o tema, quando uma pessoa tem uma alta carga de culpa, ao aderir à religião, torna-se um fanático.

Não é exclusiva de uma única religião, porém acomete mais frequentemente judeus e cristãos de diferentes formações sócio-econômicas. O primeiro a identificar esta síndrome foi o Dr. Yair Bar-El, ex-diretor do hospital psiquiátrico Kfar Shaul da cidade de Jerusalém. Este médico examinou 470 turistas e considerou-os temporariamente insanos, entre os anos de 1979 e 1993. Desse total, 66% eram judeus, 33% eram cristãos e 1% não tinha religião definida.

Mas vamos à estória do Beato da Cruz, que deixo ipsis litteris assim como encontrei nesse livro. Uma narrativa bonita e marcante de um homem arrependido que incorporou a Sídrome do Juazeiro dos santos e beatos:

Que é um beato lá no meio religioso de Joazeiro do Padre Cicero? É um sujeito celibatário, que faz votos de castidade (real ou apparentemente), que não tem profissão, porque deixou de trabalhar, e que vive da caridade dos bons e das explorações aos crentes. Passa o dia a rezar nas egrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os mortos, a ensinar orações aos crédulos, tudo de occôrdo com os preceitos do catecismo! Veste á maneira de um frade: uma batina de algodão tinto de preto, uma cruz ás costas, um cordão de São Francisco amarrado á cintura, uma dezena de rosados. uma centena de bentinhos de São Bento, uns saquinhos com breves religiosos e com orações poderosas, tudo pendurado do pescoço. 

São geralmente individuos vagabundos, hypocritas, delirantes religiosos, ou bandidos! Não cabe aqui a historia dos beatos do Joazeiro, visto que, além do Beato da Cruz, apenas dois deles, porque incluidos no numero dos famosos cangaceiros do Nordeste, merecem descriptos: o Beato Vicente e o Beato Ricardo. 

O Beato da Cruz não era um cangaceiro. Não andava de arma longa, nem de arma curta, nem mesmo de facão, e apenas, trazia um punhal occulto na sua batina azul (excepção entre os de sua classe. sua batina era azul, em vez de preta) de modo a não ser percebido por ninguem. 

O Beato da Cruz não era, propriamente um cangaceiro! Apenas, dizem os romeiros que o conheciam do Rio Grande do Norte, sua ferra natal, quando era ahi pelos seos vinte annos, assassinou seu pae. Não sei, ninguem sabe as razões que o levaram ao parricidio. E por isso, mais dificio se torna fazer um juizo approximado a respeito da molestia que lhe deve ter perturbado o mente, desde então. 

De uma feita, os guarda-locaes Pedro Araujo, Zé de Binda e Zé Biá, a mando de um famoso João Bento, por esse tempo delegado da então povoação do Joazeiro, quizeram desinferrufar os seos facões em suas costas. Mas se arrependeram da empreza. O beato arrancou de debaixo da sua batina azul o seo língua de peba (um punhal de dois gumes, estreito e longo) e com a cruz numa mão, e com o punhal na outra, fez debandar a tropa que o queria surrar. 

— Uai... Uai... Uai... meo Pae, perdoae-lhes que não sabem o que fazem — disse, embainhando a arma terrivel, e em pranto, marchou, corcunda, a cruz ás costas, pelo beco da Velha Chica do Sobrado acima.

Que eu saiba, foi essa a sua segunda façanha, e a unica que praticou durante sua longa permanencia em Cariry. Não devia, pois, figurar neste livro, que trato apenas, dos famosos guerrilheiros que conheci nos sertões nordestinos. Em verdade. fui busca-lo no material que possúo para a — JERUSALEM BRASILEIRA (Jaozeiro Padre Cicero), ora em estudos. E só o fiz, para o fim de, com a sua interessante figura de beato penitente, dar uma idéa exata e per- feita ao leitor, do que vem a ser essa entidade exotica e singular, propria do meio religioso, que é o Joazeiro do Padre Cicero. Voltemos ao beato. 

Ahi pelo anno de 1894, um rico fazendeiro norte-rio-grandense, de nome José da Cruz, como tantos outros milhares de sertanejos, veio em romaria a Joazeiro, pagar uma promessa que fizera a Nossa Senhora das Dores. padroeira do santo logar, e ao Padre Cicero. Empolgado o seo espirito fraco pelo sentimento de religiosidade que ali observou nos romeiros residentes, encontrou, assim, o campo onde logo puderam medrar com exuberancia as idéas delirantes de que já se achava possuido. Tanto chegou e, para logo, se tornou o que se vê da sua figura macabra de beato penitente. 

Assim, vestido á frade, e cruz ao ombro, a rezar nas egrejas, a ler a biblia e as historias dos santos, começou por querer imitar o Santo João Baptista, sem dispensar, nem mesmo o seo cordeirinho manso, o animal sagrado dos israelitas. Era para se penitenciar dos seos peccados mortaes. Homem de côr branca, de grandes olhos azues, sem nenhum estygma physico apparente de degenerescencia, de quando o conheço (e foi desde que me entendo) até dois annos, quando felecêo, sua vida foi sempre a mesma: rezar nas egrejas e occupar-se das coisas de Deus. Humor triste, facies abatida, olhar piedoso de perfeito visionario, em constante anciedade, era sua preoccupação unica salvar sua alma das penas eter-nas ! Era para isso que passava a vida inteira a fazer penitencia! Não sei se confessava sempre, o que não é provavel; mas é certo que levava o dia inteiro a ir de uma para outra egreja, a postar-se de joelhos, contricto, deante do altar do Senhor Morto, a orar em extase, a se lastimar, a chorar, a dizer-se culpado de estar ali crucificado o Filho de Maria, o meigo Nazareno de Belém e rei de Judá. - Uai... uai... uai... meo Pai, fazia o beato, prostrado aos pés da cruz, numa anciedade indescriptivel, offegante, a fazer caretas, banhado em lagrimas e coberto de suor. 

Na mesa do Revd. Padre Luiz Maranhão de Lacerda, vigario de Milagres, num dia de 1910 eu estava, quando, com sorpreza para mim, portas a dentro, entrou elle cantando, em voz sonora, e em som de cantochão, o seo bemdicto predilecto:
Na quinta-feira maior, 
O Deus Jesus Christo previa, 
Que na sexta-feira santa,
Ás tres horas elle morria. 

Uai... Uai . . . Uai . . meo Pai!

As ultimas palavras de sua toada plangente, desfez-se em pranto o beato. Ainda era o mesmo. Havia, seguramente, seis annos não o via. Fizera progresso nos habitos de religioso, pois já então, estava com a sua cruz de penitente cheia de milagres que obrara para os fieis que tinham fé em sua santidade, em seo prestigio junto a todos os santos do céo e junto ao proprio Deus !... 
— Uai. . . Uai... Uai. . . meo Pai! disse em prantos, banhado em lagrimas. cahindo de joelhos aos pés do sacerdote e beijando-lhe a batina. 
— Sente-se ahi, José, deixe-se de choro e vamos comer, disse para elle o bom do parocho, apon-tando-lhe uma cadeira á mesa. 

E o beato fez-nos companhia no agape. Puxei então de conversação com elle, e durante todo o almoço. falámos de Juazeiro. Disse-lhe o mêdo que me causava quando menino, o via aos pés da cruz, ou deante do Senhor Morto, ao meio dia em ponto, a chorar, a gemer dolorosamente... Uai... Uai... Uai... meo Pai! .. e que mais me parecia o uivo lastimoso de um cão soffredor do que os lamentos de um beato penitente. Uai... Meo Padre, eu sou peor que um cão, bradou lamentoso o beato, quando o padre: — Ora, José, não faça assim deante do major... O major, na ironia christã do ilustre Revdo. era eu então, um segundannista de gymnasio... — Sim meo Padre, - e terminou o beato dizendo-me de referencia ao Revd. Maranhão: ele é muito bomzinho para mim. Consolado, continuou o comer. 

Depois da refeição, dando graças a Deus e ao sacerdote que lhe dera o pão daquele dia, rezou muitas orações, fez uma centena de — em nome do Padre - os grandes olhos vermelhos do pranto er-guidos aos céos, piedosos, despedia-se de nós e sahio, a cruz ás costas, com o seo manso cordeiri-nho pelas ruas de Milagres, a cantar em voz cava e sumida, numa toada plangente, o seo bemdicto predilecto: 

Na quinta-feira maior,
O Deus Jesus-Christo previa, 
Que na sexta-feira santa, 
Ás tres horas, elle morria. 

Quem o poderia saber? Era, talvez, o remorso do beato, por haver morto seu pae, possivelmente, numa sexta-feira tambem, que explodia naquellas palavras que dizia cantando, em voz penosa e sombria, e numa musica funebre de cantochão... Só de tempos em tempos ia o Beato da Cruz a Joazeiro, donde fora obrigado a sahir, em vista da rixa que se creou entre elle e os guarda-locaes da cidade que, de outra feita, o pegarem de geito, e lhe deram uma grande sova. Mas, ainda que distante de Centro... quando apparecia era um successo. Empanava o prestigio santo de todos os seos collegas de classe, á excepção apenas, do beato Manoel Antonio da taba furada, bebedor de kerozene e fallador da vida alheia, como elle proprio se dizia.

Este, que passava a vida a escrever ás centenas, aos milhares, as orações: 

Oh! Maria Concebida sem peccado,
Rogue por nós que recorremos o Vós

e a distribui-las gratuitamente aos romeiros, como aos demais beatos, levava na troça o proprio Beato da Cruz, a quem para melindra-lo, chamava-o em tom de brincadeira: MANCEBADO 
— Uai... meo Pai, perdoae-lhe... fazia o beato, e sabia rua fora a chorar emquanto o seu collega e rival, Manoel Antonio de taba furada, ria á bandeira despregada, do effeito da sua pilheria. 

Eis ahi está o beato da Cruz, com o seo cordeirinho santo, á porta da egreja de Nossa Senhora do Perpetuo Soccorro, em cuja nave, num carneiro a um canto, á direita de quem entra pela porta principal, está o sepulchro da celebre beata Maria de Araujo.

Além, por traz do beato vë-se um paredão. É o muro do cemiterio do Joazeiro. Foi lá que em 1914 baixou ao tumulo o corpo do celebre beato e grande cangaceiro Ricardo: e foi lá tambem que ha dois annos teve sepultura o corpo innanimado do santo Beato da Cruz, que apenas matou seo pae, e, com sua cruz numa mão e com seo punhal na outra, fez debandar, em Joazeiro. um bando de guarda-locaes. O seo cordeirinho, certamente já foi comido pelos famintos da grande metropole sertaneja. Mas a sua memoria e as suas virtudes jamais deixarão de ser veneradas, enquanto houver um romeiro credulo na JERUSALEM BRAZILEIRA. 

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