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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Lampião era um mestiço que não gostava de negros

A tomada de posição particular dos sertanejos ante a hipótese da mestiçagem negra de Lampião deve-se a um processo ideológico do qual ele parece ter participado. Muitas narrativas biográficas evocam o horror manifestado por Lampião à simples menção de uma origem africana.  

Conta-se que ele tinha a pele mais escura que seus irmãos, o que as fotografias, entretanto, não deixam transparecer. Curiosamente, o discurso aqui é mais prolixo que a imagem; ele diz, denuncia ou mostra o que Lampião gostaria de esconder quando se mostra por meio das fotografias tal como deseja ser visto, isto é, como um branco. 


Vale lembrar que Sabino, um dos lugar-tenentes mais próximos de Lampião, era negro e que, no momento da entrada triunfal de seu chefe acompanhado de suas tropas em Juazeiro, em 1926, ele se recusou terminantemente a deixar-se fotografar. 



Zé Baiano era negro
Pode-se interpretar essa recusa como a consciência aguda do perigo que representa a divulgação de um rosto quando se sabe procurado por todas as forças policiais do país, mas pode-se ver aí também uma reticência ante a possibilidade de se deixar ver, como se a fotografia e a valorização que a ela se liga só pudesse ser privilégio dos brancos. 

Poderíamos conceber o apelido "Lampião" que Virgulino Ferreira recebeu ao entrar para o cangaço como o contraponto à cor negra de sua pele, que poderia sugerir mestiçagem e, por conseqüência, certa bastardia. Lampião significa luz, clarão, fogo que sai da arma: o que ilumina, que guia e nunca passa despercebido. Numa discussão que Lampião teria tido em 1921, na região de Vila Bela, com Optato Gueiros, oficial de uma Força Volante, ele teria afirmado: 

— Entretanto, continua Lampião, eu não nasci para esta vida de cangaceiro. Falo com franqueza, se não houvesse nego na policia prá manobrar com a gente, eu ainda iria ser soldado. 

— Compadre Virgulino, atalha Sebastião, tu não és preto? 

— Não, diz Antônio Ferreira, ele não é preto, é moreno cor de canela. 

— Sai-te Antônio, observou Lampião, tira lá essa "cor de canela" que eu não sou mulher. 

— É mesmo, acode Sebastião, esse negócio de "cor de canela" não é prá homem; ele é moreno lusco-fusco.

Notei (Optato Gueiros) que ao findar esta narrativa, transpareciam no semblante do bandido visíveis sinais de tolerância e mal estar. O olho direito, defeituoso por um estrabismo esquisito, conservava-se aberto quando estava de bom humor; agora fechava-se, dando-lhe um aspecto de ferocidade repugnante, bruscamente, dirigiu-se a Sebastião e disse:

— Esta na hora compadre. O suor já esfriou demais, estou com frio; vamos andá para esquentá. 

Depois a dona da casa pergunta qual, dentre os cangaceiros, se chama Lampião. Seu irmão, dirigindo o cano de seu fuzil para o rosto de Lampião, respondeu: 

— Oi ele aqui, mas não alumia, é danado de escuro. 

Poder-se-ia discorrer ao infinito sobre essa passagem. Lampião recusa categoricamente ser considerado um negro. Ter um caráter feminino (cor de canela) traz, é claro, prejuízo à sua virilidade, mas ser equiparado aos negros equivale a ser rebaixado, humilhado social e humanamente. 

Ele acusa os negros de impedirem sua reinserção na sociedade a que pertence e nega-se a ser subalterno de indivíduos a quem considera inferiores. 

Percebe-se também, nessa passagem, o quanto a definição da cor da pele de Lampião suscita problemas para os que o cercam e o quanto cada termo empregado tem seu valor metafórico duplicado. 

A negrura da pele parece responder fatalmente a negrura da alma, condenando o negro ao inferno sem alternativa possível: ele é "danado de escuro", dirá o irmão de Lampião de maneira bastante ambígua. 

Aliás, Lampião detestava os negros e os associava ao diabo: "Negro não é gente", teria ele dito; "é a imagem do cão". (Comentário de Volta Seca)

Lampião ao aparecer em Queimada, BA, em 1929, vendo que as pessoas ao redor dele eram negras, teria gritado: Terra de desgraça, toda a justiça é negra..., e teria ordenado que lhe servissem um copo de água! Outra passagem da história de Lampião mostra como ele associa o negro ao diabólico, opinião compartilhada por pessoas próximas e por todo o sertão: depois do massacre de Queimada, onde matou, sem motivo.

A maioria dos cangaceiros do bando de Lampião era de mestiços com miscigenação genética negra. Acreditamos que Lampião não tinha essa carga racista que se pretende e que uma vez ou outra poderia ter dito algo que inflamasse esse raciocínio.

Suas ideias sobre raça era convencional pois o nordestino sertanejo se orgulha de sua relativa brancura. Ele se fosse por exemplo um fazendeiro, teria que lidar com negros assim como lidava com negros em seu bando. Por isso, desse orgulho de relativa brancura, demonstrava um certo desprezo pela raça em geral, mas isso não o afetava de sobremaneira. 

Optato Gueiros, Lampião: Memórias de um Ex Comandante de Volantes, 1952, pp. 25-26. 14 Ver, a esse respeito, Billy Jaynes Chandler, Lampião, o Rei dos Cangaceiros, 1981, p. 239. IS Frederico Pernambucano de Mello, op. rit., 1993. pp. 92-93.