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sábado, 23 de abril de 2016

CANUDOS: O Legado do Conselheiro

Essa matéria da Revista Veja, traz a nós a questão mal resolvida do massacre de Canudos depois de mais de 100 anos. As feridas ainda estão abertas e podemos dizer que trata-se de um emblema do Brasil pois assim como a ditadura militar/civil de 1964, que ainda projeta suas sombras que ainda pairam sobre a sociedade que até hoje ainda está buscando resolver essa situação mais recente da história brasileira, fica sendo procrastinada. Diferentemente da ditadura que existem vivos que a combateram, temos outros conflitos onde o Estado usou a violência de forma pesada. No caso de Canudos, não existe mais ninguém vivo, assim como em outros massacres que se deram no passado.


Canudos em chamas, numa foto da época: calcula-se que 15 000 pessoas morreram 
Antonio Conselheiro vestia um camisolão azul, sem cintura. Tinha cabelos longos como Jesus e barbas longas. Nos pés calçava sandálias para enfrentar o pó das estradas e a cabeça, protegia-a do sol inclemente com um chapelão de abas largas. Nas mãos levava um cajado como os profetas, os santos, os guiadores de gente, os escolhidos, os que sabem o caminho do céu. 

Saudava as pessoas dizendo "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo". Respondiam-lhe dizendo "Para sempre seja louvado". Chamava os outros "meu irmão". Os outros chamavam-no "meu pai". Foi conhecido como Antônio dos Mares, uma certa época, e também como Irmão Antônio. Os mais devotos o intitulavam "Bom Jesus", Santo Antônio". 

De batismo, era Antônio Vicente Mendes Maciel. Quando fixou sua fama, era Antônio Conselheiro, nome com o qual conquistou os sertões e além. O mais célebre cronista de suas aventuras, Euclides da Cunha, escreveu em Os Sertões que poderia tanto ir para a História como para o hospício. Maldade considerá-lo caso de hospício. Foi para a História, e nela cravou um marco profundo — um ferimento. 

Transformou-se num dos personagens mais perturbadores da História do Brasil, figura central de um dos episódios mais extravagantes. equivocados e trágicos da nacionalidade, e também dos mais fascinantes, em que o Brasil defronta o Brasil, estranha o Brasil e choca-se frontalmente com o Brasil.

Onde ficava Canudos, hoje um açude no lugar do arraial e ao fundo os morros do Mário e da Favela
A Guerra de Canudos, na qual, calcula-se, morreram 15.000 pessoas, fez 100 anos em 1997. No dia 5 de outubro de 1897 depois de quatro expedições militares, um ano de lutas intermitentes e uma resistência feroz por parte de seus defensores, o arraial erigido pelo Conselheiro nos ermos do Nordeste da Bahia foi finalmente tomado pelo Exército. 

Quase nada sobrava daquele santuário-cidadela, um povoado que sonhou ser a Jerusalém dos confins do mundo e acabou uma Pompéia sem Vesúvio, reduzida a escombros, cadáveres, sangue e cinzas. 

Escreveu Euclides da Cunha: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5.000 soldados." 

Dias antes, em 22 de setembro, morrera o Conselheiro — de disenteria, segundo alguns, talvez das complicações de um ferimento leve, segundo outra versão, talvez da desolação e da tristeza que cresciam a seu redor naqueles derradeiros momentos. 

Cem anos passados, programam-se seminários, houve cerimônias na Bahia e em outras partes, e continua a pairar sobre o país a enormidade do mistério de Canudos. Mistério, ou misterioso, são palavras usadas muitas vezes por Euclides da Cunha para qualificar o local que descreve, o ambiente e a coligação de jagunços e beatos que se opunha à ordem representada pelo governo da República e o Exército nacional — ou talvez o bando de jagunços feitos beatos, ou beatos feitos jagunços.

Imagine-se a seguinte cena. Depois de um dia inteiro de combates ferozes, tiros, mortos e feridos de lado a lado, correria e cansaço infinitos, caía a noite, depunham-se as armas e fazia-se silêncio no vale onde se situava o arraial e nas montanhas ao redor. De repente. um rumor começava a insinuar-se na escuridão. Aos poucos, percebia-se que era um coro de vozes humanas, com predominância das vozes femininas, num arrastado entoar de ladainhas. 

Euclides da Cunha explica: "O inimigo, embaixo, no arraial invisível — rezava". O mistério, a sensação de intercâmbio com o sobrenatural, de parte com o Absoluto, baixava sobre as desolações do sertão. 


Canudos não existe mais. A vila do Conselheiro, não bastasse ter sido destruída na guerra, encontra-se submersa. afogada que foi, em 1969. pelas águas do Açude de Cocorobó. A cidadezinha que hoje toma o nome de Canudos fica a 10 km da original. Em volta do açude qual sentinelas de uma história que insiste em não morrer, vigiam os morros tornados nacionalmente conhecidos, à época da campanha como locais de onde o Exército disparava seus canhões contra o arraial insurgente, e onde os rebeldes arriscavam suas escaramuças contra as tropas regulares — o Morro da Favela, o Morro do Mário. 

O Morro da Favela tomou-se tão famoso que veio a nomear um morro similar no Rio de Janeiro — por causa dos casebres parecidos com os de Canudos que nele vieram a erigir, segundo uma versão, ou porque nele se aboletaram os soldados veteranos da campanha. segundo outra. E a partir daí a palavra "favela" passou a ter um significado tão simbólico do Brasil quanto as cores verde e amarela.

Uma multidão de casas de taipa. ordenadas, ou melhor, desordenadas em volta de uma praça: eis o que era o arraial. O Exército calculou em 25.000 os seus habitantes, o que o tornaria a segunda cidade da Bahia na época, só inferior a Salvador.

Considera-se hoje o cálculo exagerado. Na praça central havia duas igrejas, uma em frente da outra — as chamadas "igreja velha" a menor, e "igreja nova" esta uma ambiciosa obra empreendida pelos conselheiristas, nunca terminada. 

Aquela guerra singular tão brasileira quanto a Guerra de Troia foi grega, e tão reveladora de mitos, artimanhas e desencontros da nacionalidade, travou-se em tomo da praça das igrejas. Mais particularmente, da igreja nova em cujas torres incompletas e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para alvejar os inimigos e que por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do canhoneiro dos soldados. 

Quando caiu enfim a igreja nova no finzinho da guerra, houve grandes manifestações de júbilo entre os soldados e segundo o relatório de um dos comandantes militares, "uma entusiástica e violenta vaia na jagunçada". 

Aproximava-se do desfecho a bizarra peleja que teve por centro uma igreja. Hoje, sobe-se ao Morro da Favela ou ao Alto do Mário e não se ouvem rezas. O amplo espaço em tomo é vazio e silencioso. Abaixo, vêem-se as águas do açude — apenas um plácido lago, às vezes cruzado por botes simples de pescadores, que num dia de sorte terminarão sua jornada fornidos de tucunarés, carpas ou tilápias. É um lago como outro qualquer, consideraria o observador, até mais feio, porque cercado de árida paisagem. Mas, se se tem consciência das ruínas que ele encobre, dos muitos cadáveres e da cidade duplamente fantasma, destruída pelo fogo e afogada nas águas, um frêmito pode percorrer o observador. 

O mistério continua, António Vicente Mendes Maciel, nascido em Quixeramobim, no Ceará em 1830 foi professor primário, comerciante e advogado prático — rábula é a palavra — antes de se tomar beato. Não era de família pobre, mas remediada. Não era um ignorante, mas tinha suas letras. Alguns atribuem a guinada que deu na vida a uma desilusão amorosa — o abandono da mulher, Brasilina. Ele ainda se uniria a uma segunda mulher, uma fazedora de imagens conhecida pelo luminoso nome de Joana Imaginária, antes de renunciar aos amores. 

Em 1874 aos 44 anos, já estava avançado na nova senda. É de quando data a primeira notícia sobre suas atividades, um registro do jornal O Rabudo, da cidade de Estância, Sergipe, dando conta de um certo Antônio dos Mares que, em andanças pelo sertão, vinha atraindo um "número espantoso" de pessoas.

Seu modesto mundo circunscrevia-se a lugares perdidos como Natuba, Cumbe, Masseté, Uauá, Jeremoabo, Itapicuru — basicamente o sertão da Bahia, com uma ou outra incursão a Sergipe. 

Ele andava, andava. Rezava e vivia de esmolas e ajudava os necessitados, acompanhado de um séquito cada vez maior. Quando parava em uma cidade, oferecia-se para recuperar ou quando não houvesse, construir uma igreja ou então os muros do cemitério. Maciel tinha mania de fazer igrejas e arrumar cemitérios. 

Algumas de suas obras subsistem. A cidade que hoje leva o nome de Crisópolis, fundada por ele próprio. na década de 1880, com o nome de Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seguidores, tem em sua praça central uma igreja de sua lavra. A igreja. que Euclides da Cunha considerou "belíssima" está pintada de novo e bem conservada. 

Do séquito do Conselheiro faziam parte pelo menos dois mestres-de-obras, Manuel Faustino e Manuel Feitosa. 


Igreja de Crisópolis, feita pelo Conselheiro. "Só Deus é Grande"
A igreja de Crisópolis obedece a um desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa das paredes internas, pendura-se um medalhão com a inscrição "Só Deus é grande", o dístico favorito do Conselheiro. A praça que se estende à frente da igreja, 
remodelada recentemente. chama-se "Antônio Conselheiro". A cotação de Maciel nunca andou tão alta, no sertão e fora dele. Euclides, entre muitos outros epítetos depreciativos, chamou-o de "messias de feira" e "bufão arrebatado numa visão do Apocalipse". 

Considerava-o o "grande desventurado", e, Canudos, a objetivação daquela "insânia imensa". A cotação do Conselheiro, hoje. variará de herói — para aqueles que vêem nele um certo tipo de bravura e resistência — a um bom homem, que não queria senão a salvação eterna, para si e os adeptos. 

Como se informar sobre esse cearense que procurava a paz de Deus mas acabou joguete dessa obra do Demo que são as guerras fratricidas? Durante décadas, a fonte capital — e sagrada — foi o livro de Euclides da Cunha. Hoje, impossível introduzir-se no assunto sem passar por José Calazans. 


José Calazans:
a história reconstruida a partir do relato dos sertanejos
O octogenário à época, Calazans era o decano dos canudistas da Bahia, um grupo de estudiosos voltado à pesquisa das aventuras do Conselheiro, seu arraial e a guerra. Calazans tinha saído a campo, principalmente, em busca da chamada história oral de Canudos — a história recomposta a partir do depoimento dos sertanejos. 

Como começou a trabalhar na década de 40, ainda alcançou vários sobreviventes do arraial do Conselheiro. Por exemplo: Honório Vilanova, irmão do dono da principal loja de Canudos. Antônio Vilanova, um dos homens mais próximos do Conselheiro. Honório Vilanova, com o irmão e as respectivas mulheres, escapou de Canudos nos últimos dias da guerra, como vários outros conselheiristas. Veio a morrer com mais de 100 anos. Uma vez, contou a Calazans que quando conheceu Maciel em Assaré no Ceará — Honório também era cearense — este era beato. Anos mais tarde, ao reencontrá-lo na Bahia já era conselheiro. "E há diferença?" perguntou Calazans. Honório explicou então que o beato tira rezas, pede esmolas e ajuda os pobres. O conselheiro vai além: dá conselhos.
Qual seja, prega. Na hierarquia informal do sertão, a hierarquia para-eclesiástica do misticismo sertanejo, o conselheiro situa-se acima do beato. 

Essas figuras de guias espirituais surgiam no interior do Nordeste muito em função da ausência de padres, explica o professor Cândido da Costa e Silva, da cadeira de História das Religiões da Universidade Federal da Bahia, autor de Roteiro da Vida e da Morte, um estudo sobre o catolicismo sertanejo. "Portanto, não existiam para contestar a Igreja ofi-cial mas para suplementá-la." O sertão não tinha padres como nas aldeias francesas, que davam assistência permanente às famílias e acompanhavam-nas ao cemitério, inclusive, levando seus mortos, prossegue o professor. Daí, os tiradores de reza e as incelências — eram figuras e fórmulas que supriam a falta de pessoal e de liturgia oficial. 

A pessoa ascendia à condição de beato ou conselheiro, ainda segundo Costa e Silva, de forma natural, pelo destaque que haviam obtido na sociedade, em virtude de sua liderança, capacidade de expressão, piedade e outras qualidades. Maciel jamais ousou ir além do que permitia sua condição. Nunca se aventurou a ministrar sacramentos. Tampouco podia ser acusado de desvios de doutrina, pois não pregava senão a teologia conservadora daqueles rincões e não aconselhava senão práticas de longa tradição sertaneja, como o jejum, quanto mais jejum melhor, caminhadas longas, até se esfalfar, e carregar pedras, para pagar os pecados. 

Mesmo assim a hierarquia da Igreja lhe era crescentemente hostil. Em 1887 o arcebispo de Salvador, dom Luís Antônio dos Santos cobrou providencias ao governo do Estado que por sua vez pediu socorro ao governo do Império. A idéia era internar Maciel no Hospício Dom Pedro II no Rio de Janeiro. A autoridade imperial consultada respondeu, no entanto, que não havia vaga no referido hospício.

Em seu ímpeto repressor, na verdade, a autoridade eclesiástica aliava-se à aflição dos coronéis do sertão, que se viam ameaçados duplamente no poder econômico e no poder político. 

Estudiosos contemporâneos, como o brasilianista americano Ralph Della Cava, demonstraram como o Conselheiro, e também o padre Cícero, no Ceará, na mesma época, drenavam a mão-de-obra das fazendas, ao mesmo tempo que retiravam da influência dos chefetes os votos de cabresto que lhe garantiam o controle dos instrumentos do Estado. 

Acresce que, quando o movimento do Conselheiro aproximava-se de seu auge, ocorreu a mudança de regime no país, de Monarquia para República, e o Conselheiro, tradicionalista como era, recusa-se a aceitar o novo regime. A República era o Anti-cristo, era a ordem de Satanás. Ousara separar a Igreja do Estado. E, entre outras disposições odiosas, instituíra o casamento civil, roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Uma mulher casada no civil, segundo o professor Costa e Silva ouviu de um sertanejo. em época bem mais recente, seria uma "p... testemunhada". 

O novo regime também delegara aos municípios a faculdade de instituir impostos. Certa vez, o Conselheiro encontrou os habitantes de Natuba inconformados com os impostos anunciados em editais no centro do povoado e incentivou-os a destruí-los. Foi seu primeiro gesto de desobediência civil. Em conseqüência, uma tropa policial saiu-lhe ao encalço. Depois de um choque violento, na localidade de Masseté, que resultou em três mortos de cada lado, a tropa retirou-se, mas para o Conselheiro ficou um sinal de alerta. 

O clima crescentemente desfavorável pedia uma decisão. Chegara a hora de mudar de vida. Depois de vinte anos de andanças, ele se estabeleceria com sua gente num lugar onde pudesse rezar em paz, aconselhar em paz e viver em paz, ao abrigo dos agentes do insano governo dos incréus, ou dos bispos que faziam o jogo do Diabo. Nascia Canudos. 

O fotógrafo Flávio de Barros (foto ao lado, abaixo) tinha um estúdio, em Salvador, e isso é quase tudo o que se sabe dele. Nas últimas semanas da guerra, seguiu para Canudos, comissionado pelos militares, para cobrir a Quarta Expedição. A foto ao lado é uma de suas mais famosas — a foto conhecida como das "prisioneiras”, embora, olhando bem, perceba-se que nela há homens também, no fundo. As mulheres prisioneiras foram, uma vez destruído o arraial, transportadas para Salvador. Os homens foram executados. Ao longo desta reportagem, estão estampadas mais fotos de Flávio de Barros, (que prepararei e postarei em outros artigos). Foram selecionadas principalmente as que mostram aspectos do arraial do Conselheiro — uma minoria, dentro de um conjunto em que a ênfase do fotógrafo foi nos militares. Se constituem um documento precioso, dos mais importantes da história da fotografia no Brasil, as fotos de Flávio de Barros apresentam também uma das mais lamentadas lacunas dessa mesma história: por força da censura, ou das obrigações que o prendiam ao Exército, ou ambas as coisas, ele deixou de documentar a selvageria e as atrocidades que caracterizaram o fim do conflito.

Pesquisa do Texto em base da reportagem de Roberto Pompeu de Toledo 
Fonte: Revista Veja 3 de setembro 1997