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sexta-feira, 22 de abril de 2016

CANUDOS: Notícias do fim do mundo

Notícias do fim do mundo

Canudos foi um evento de mídia global, com ampla cobertura em jornais europeus. Leitores ingleses souberam do fim do conflito antes dos brasileiros

  • Se a Guerra de Canudos teve, como todas as guerras, traços arcaicos e bárbaros, ela também foi extremamente moderna. Não apenas pelo emprego de avançada tecnologia militar, mas enquanto guerra psicológica, orquestrada por ferrenha produção propagandística na imprensa brasileira. E também na internacional.O telégrafo instalado pelo exército entre as vilas de Queimadas, estação ferroviária mais próxima do teatro de guerra, e Monte Santo, base de operação das forças legais, a 70 km de Canudos, permitia a transmissão rápida de notícias para o país e para o mundo, mas também a censura e as restrições ao trabalho dos correspondentes de guerra: só os bem-comportados podiam se servir desse moderno e rápido meio de comunicação.
    Tudo isso é conhecido. Surpreendente é saber que aquela guerra no distante sertão brasileiro, quase fora da civilização, teve cobertura mundial. Durante meses as vicissitudes da quarta expedição estiveram presentes na grande imprensa das Américas e da Europa, com mil detalhes, fatos, mentiras e boatos, que as representações diplomáticas do Brasil tentavam manipular. As notícias saíam do sertão para as redações de Salvador, São Paulo e principalmente Rio de Janeiro, eram transmitidas para as agências noticiosas de Londres e só então seguiam para as redações de Berlim ou Paris, passando às vezes por Nova York, Lisboa e Buenos Aires.  
    O interesse da Europa por Canudos torna-se constante a partir da derrota da terceira expedição, comandada pelo coronel Moreira César, em 3 de março de 1897, e vai até a vitória final do exército, em 5 de outubro. Durante esses sete meses, o Vossische Zeitung, grande diário liberal berlinense, publica 16 artigos ou notas dedicados à guerra brasileira, e sete ganham a primeira página. No mesmo período, The Times, de Londres, produz 15 artigos direta ou indiretamente relacionados a Canudos. Enquanto isso, em Paris, o Le Temps traz 22 matérias sobre o tema.
    No Brasil, alguns poucos letrados indignaram-se diante do modo pouco civilizado com que a civilização era imposta aos sertanejos, crítica que ganharia expressão de acusação e protesto com Euclides da Cunha no livro Os Sertões (1902), mas que não teve repercussão na imprensa europeia da época. Esta refletia a visão das elites do Brasil, embora deixasse transparecer também algum respeito pela combatividade dos sertanejos. Em princípio, os três jornais europeus não contestam as afirmações e as metas do governo, torcendo claramente pela vitória das armas legais. As únicas críticas referem-se aos comunicados precipitados de vitória, aos erros de estratégia militar e às suspeitas de corrupção contra o alto comando da quarta expedição. A principal fonte dessas objeções era o carioca Jornal do Commercio, conhecido por seu ceticismo para com os republicanos extremistas e no qual escreveu, por curto período, um dos poucos correspondentes críticos em relação ao exército, Manuel Benício, obrigado pelo alto comando a abandonar o teatro de guerra em julho de 1897.
    Tratar Canudos como uma insurreição era facilitado pelo fato de as palavras messias, fanático, insurgente e rebelde serem facilmente traduzíveis. Mais complicado era explicar outro conceito-chave da imprensa brasileira, o calunioso jagunço, descartado pelos europeus. Ainda assim os conselheiristas eram desqualificados com expressões incriminadoras, como “salteadores” e “ladrões de gado”. Porém, na escrita relativamente sóbria desses jornais, não  havia espaço para cobrir o exército com um manto de heroísmo.
    Se fossem deixados em paz, talvez os conselheiristas não se tornassem tão perigosos. Esta inteligente observação sobre o caráter defensivo do movimento aparece no jornal alemão e no londrino, que retoma a mesma ideia várias vezes depois. O Times mantém-se em descrença em relação à suposta conspiração monarquista, posição nem sempre partilhada pelos outros jornais, que parecem mais próximos do governo brasileiro. Em março, o Vossische Zeitung traduziu um artigo quase inteiro do Times mas omitiu dois importantes elementos: o empastelamento de jornais monarquistas no Rio e a avaliação do correspondente de que o apoio dos monarquistas ao Conselheiro carecia de evidências. 
    Em abril, o jornal berlinense tenta explicar a espantosa derrota da expedição Moreira César sem criticar demais o seu comandante, reduzindo seus erros à subestimação do número de inimigos. O artigo exagera a quantidade de combatentes canudenses e de soldados mortos, tendência geral dos jornais brasileiros e europeus. Enquanto no primeiro artigo os inimigos figuravam apenas como fanáticos, no seguinte eles são chamados de rebeldes e insurgentes. A legitimidade de uma guerra contra meros desgarrados mentais e ideológicos pode ser posta em dúvida, mas contra insurgentes não há como hesitar, pois subvertem a ordem estabelecida, ameaçam a vida e as propriedades. O artigo evoca o perigo, na realidade nunca existente, das capitais do litoral serem invadidas pelos seguidores do Conselheiro, preocupação espalhada por alguns jornais brasileiros. 
    O maior artigo publicado sobre Canudos fora do Brasil naquela época foi provavelmente o do Times de 12 de junho de 1897. Em carta, seu correspondente no Rio recorre a uma sintaxe elaborada e a um raciocínio ora descritivo, ora analítico, para situar a guerra no contexto político e econômico nacional. Atenua as alegadas superstições dos sertanejos e refuta a tese de Canudos ser uma revolução dirigida contra o governo. Se ele é perigoso, isso se deve à repressão – mas agora que esta começou, tem que ser levada até o fim. O correspondente mostra-se preocupado com o endividamento do Brasil, agravado pelas altíssimas despesas com a guerra, o que prejudica, portanto, o crédito internacional do país.
    O grande assalto fracassado do exército, em 18 de julho, passa quase despercebido pela imprensa estrangeira, pois, devido à censura, nem os jornais brasileiros souberam explicar o que ocorreu naquele dia. Artigo do Vossische Zeitung de 10 de agosto levanta pela primeira vez a tese do comunismo como princípio de organização igualitária de Canudos, elogiando sua disciplina interna. Na primeira página de 8 de outubro, o jornal alemão noticia a tomada de Canudos em longo artigo com um balanço da guerra, mas recai em erros aparentemente já superados, como a tese da conjuração monarquista – útil talvez para explicar a longa duração do conflito e o desempenho decepcionante do exército. Os leitores alemães são informados do fim da guerra quase tão rápida e amplamente quanto os brasileiros. Já os londrinos souberam da tomada de Canudos no dia anterior, 7 de outubro, algumas horas antes dos brasileiros devido à diferença de fuso horário.
    O Vossische Zeitung ainda ignorava, porém, a total destruição do arraial. Supunha a sobrevivência de Canudos como cidade e Antônio Conselheiro mais tarde perante um tribunal. As matanças sumárias e o extermínio a ferro e fogo de toda uma comunidade não entram na imaginação do redator alemão. A biografia resumida do Conselheiro dá ênfase a seu papel de profeta, anacoreta (monges cristãos que viviam solitariamente) e messias, juntamente com o de fanático, provavelmente uma tentativa de lidar com um fenômeno social insólito inserindo-o na lógica do cristianismo. Chamar a guerra de conflito entre brasileiros e fanáticos significa, implicitamente, excluir os canudenses da nação. Por outro lado, enfocar a situação econômica como uma das causas da popularidade do Conselheiro é uma explicação quase materialista, não frequente nos observadores brasileiros da época. A cena dos fanáticos agarrando-se aos canhões atiçou a fantasia dos leitores, pois aparece em vários artigos e livros sobre a guerra – é um topos, cena emblemática inspirada pelo romance Quatrevingt-treize, do francês Victor Hugo (1874), relatada e ficcionalizada também por Euclides da Cunha. 
    Entre os três artigos do Le Temps sobre a queda de Canudos, consta a observação verídica de que o fim da guerra fora um  "massacre". Curioso é que o periódico mais citado por outros jornais, o The Times, com correspondente próprio no Rio, pouco noticiou o fim da guerra, resumido apenas em notas nos dias 7 e 9 de outubro de 1897. O órgão central das elites europeias ficou devendo um balanço da guerra, mas no geral sua cobertura foi a mais completa, ponderada e objetiva de todas, a mais confiável à luz das pequisas modernas sobre Canudos.

    Berthold Zilly 1/12/2014 
  • Berthold Zilly é professor visitante da Univesidade Federal de Santa Catarina e tradutor de Os Sertões para o alemão. 

  • Saiba mais:
    BARTELT, Dawid. Sertão, República, Nação. Trad. de Johannes Kretschmer e Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Edusp, 2009.
    CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Campanha de Canudos. Org. de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê/ Imprensa Oficial do Estado, 2002.
    CUNHA, Euclides da. Canudos. Diário de uma Expedição. Org. de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
    GALVÃO, Walnice Nogueira.  No calor da Hora. A Guerra de Canudos nos jornais: 4a Expedição. São Paulo: Ática, 1977.
    ZILLY, Berthold. “Canudos telegrafado: a guerra do sertão como evento de mídia na Europa de 1897”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 160, n. 405, p. 785-812. Rio de Janeiro: IHGB, 1999.