Artigos Variados

sexta-feira, 29 de abril de 2016

CANUDOS: De boca em boca

Temos a continuação da reportagem da revista Veja 3 de setembro de 1997 onde o primeiro episódio está nesse artigo  O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado.  Temos também aqui o episódio e terceira parte O Fim do Treme-Terra, e agora passamos aos amigos o quarto episódio da série de cinco reportagens feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo, onde nos mostra que a história de Canudos corre de boca em boca. 

.Igreja Velha - pouco antes de ser destruída e o cruzeiro,ocupados pelos  vencedores 

João de Regis em sua casa
Numa casinha solitária nas Umburanas, a poucos metros do local onde foi abandonado o corpo do coronel Moreira César, vive "seu" João de Régis, 90 anos completados no dia 12 de junho. João de Régis é um sertanejo magrinho e miúdo, meigo e humilde. É filho de conselheiristas. O pai, Reginaldo José de Matos, e a mãe, Joana Batista de Jesus, viveram no arraial do Conselheiro. Foi lá que eles se casaram, sendo celebrante das núpcias o padre Sabino, famoso vigário do Cumbe que, amigo de Antônio Conselheiro costumava visitar Canudos, ali rezar missas e ministrar os sacramentos. E seus pais gostavam do Conselheiro, "seu" João de Régis? "Ave Maria, gostavam demais", ele responde. João de Régis recupera-se de uma pneumonia. Ainda tosse, mas se diz melhor. A cabeça continua boa, a memória, precisa. 

João de Régis mostra um documento. É um salvo-conduto emitido pelo Comitê Patriótico da Bahia, datado de 12 de janeiro de 1898 e assinado por Lélis Piedade, em favor da avó de João de Régis. Josepha Maria de Jesus, e suas filhas Joana (que viria a ser a mãe dele), Maria e Antônia. Pede-se ali às "autoridades do Centro do Estado" fazerem o obséquio de "protegerem-nas. em qualquer emergência". O documento, atente-se, data de três meses depois do fim da guerra. A avó, a mãe e as tias de João de Régis encontravam-se em Salvador. Para lá tinham sido enviadas muitas mulheres de maridos que foram mortos em combate ou executados, bem como suas crianças. Elas se tornariam empregadas domésticas ou prostitutas, em Salvador e em outros lugares. 


No caso, a avó e a mãe de João de Régis queriam voltar porque sabiam que os homens da família estavam vivos. Daí terem pedido ajuda ao Comitê Patriótico, uma entidade beneficente criada para prestar assistência aos sobreviventes da guerra, dirigida pelo jornalista Lélis Piedade. O documento que João de Régis tem em casa é um salvo-conduto para a volta a Canudos. E como elas sabiam que os homens da família — o avó materno e o pai de João de Régis — estavam vivos? Porque eles se encontravam fora do arraial, quando do assalto final, explica João de Régis. Um dia, eles saíram pela Estrada de Uauá, para apanhar farinha Quando estavam fora, a estrada foi fechada pelo Exército. Não puderam voltar. 

Por essa Estrada de Uauá, acrescente-se, fugiram muitos conselheiristas. nos últimos dias. Sobreviventes contaram que. das trincheiras, os soldados gritavam avisando que a estrada estava aberta e que quem quisesse fugir ainda era tempo. O pai de João de Régis era de Pombal, ao sul de Canudos, e tinha vinte e poucos anos quando o Conselheiro passou por lá. "Ele achou bonito aquele jeito do Conselheiro, aquela amizade, aquela vivência", conta João de Régis. Então resolveu acompanhá-lo. 

A mãe era da região de Canudos e aderiu ao Conselheiro junto com os pais e as irmãs. E como viviam seus pais, em Canudos? O pai trabalhava de carapina diz seu João de Régis — isto é, de carpinteiro. fazendo as casinhas do arraial. A mãe fiava algodão e fazia rede. João de Régis explica que quando alguém queria casar, a primeira coisa a fazer em comprar uma rede. 

"O Conselheiro vivia em comunidade, rezando, dando conselho", conta João de Régis. Quando a família se reencontrou, depois da volta das mulheres de Salvador, veio viver aqui. nesta mesma terra onde nos encontramos, nas Umburanas. Viviam "de roça-. de "tropinha de animais", e assim a vida continuou — e continua até hoje. e continuará sempre. O episódio de Canudos foi um espasmo sangrento e tumultuado. e depois o sertão voltou ao sossego de sua eternidade. Aqui, o tempo não se mexe. 

João de Régis nasceu neste recanto do fim do mundo e neste recanto do fim do mundo morrerá. Quem vaga pelo sertão terá sempre a persegui-lo um duplo acompanhamento sonoro: o chocalho das cabras e a Rede Globo de Televisão. O chocalho das cabras está lá desde sempre. A Rede Globo, que se ouve nos restaurantes, nos bares abertos para a rua, nas pousadas e nas casas, deu o ar de sua graça mais recentemente. Quem diz que o tempo não se mexe aqui? Na cidade de Euclides da Cunha a antiga Cumbe, 80 quilômetros ao sul de Canudos, tem seu Ioiô da Professora. 

Seu loiô, se fosse um espetáculo, não um ser humano, seria do tipo que os críticos classificam de "imperdível". Ele conta a história de Canudos tal qual a ouviu do pai, ou do sogro. ou de outras pessoas, quando jovem. Conta o que se dizia na região quando se soube que Moreira César estava chegando: — Vamos arretirar!!! Vem aí um Treme-Terra que não arrespeita sertanejo!!! 

loiô da Professora, ou José Siqueira Santos, seu nome de registro. "da Professora" porque é filho de uma professora primária, tem 89 anos, pele branca, farta cabeleira branca, é magrinho e usa óculos de grossas lentes. Seu sogro era o maior fazendeiro do Cumbe, o "coronel" José Américo Camelo de Souza Velho, inimigo figadal do Conselheiro, mas nada da antiga fortuna, ou prestígio, sobrou para os descendentes. loiô vive de um botequim que ocupa a parte da frente de sua modesta casa, onde basicamente vende cachaça para os bêbados do lugar. 

São muitas, compridas, cheias de detalhes e vivas descrições, as histórias de seu loiô. Ele conta que Pajeú, o guerrilheiro tão temido do Conselheiro, incendiou duas fazendas do coronel Zé Américo. Numa delas, só ficou um quarto onde havia imagens de santos, acomodadas em nichos. "Não sou inimigo de santo", disse Neli, segundo loiô. "Aqui tem santo. Não pode destruir." E loiô acrescenta: "Esse povo do Conselheiro respeitava muito esse movimento de igreja, de santo".

Os bispos estavam contra o Conselheiro, explica Ioiô. Por que motivo? — As rezas dele atrapalhavam a religião. Mas havia outros também insatisfeitos: — O povo não queria mais obedecer os coronéis. Até para emprego era com o Conselheiro. Ioiô explica de diferentes maneiras, a crueldade e os maus bofes de Moreira César: — Era um terrível!!! Pior que Lampião!!! — Não matava mulher, mas homem era uma desgraça. — Era um ateu terrível!!! Dizia: "Não quero saber de santo". loiô senta, levanta, gesticula. Interpreta, exclama dá um acento de voz a cada situação. Preenche os claros das histórias com contribuições próprias. do tipo: "Então ele se sentou": "Tirou o chapéu"; "A ordem de Moreira César foi seca". 

Ioiô conta que Moreira César foi vitima de uma maldição. Uma vez ele mandou fuzilar um médico. A viúva. de nome Olímpia, estava entre as pessoas que assistiram ao embarque de Moreira César, em Salvador, em direção a Canudos. Ela disse. naquele momento: — Vai, bandido sanguinário... Vais a Canudos, mas não voltas.

Não, não cabe dizer "se fosse um espetáculo"... Seu loiô da Professora é um espetáculo. 

A via-sacra de Monte Santo é tão sacra quanto descuidada e suja. As capelinhas pelo caminho encontram-se em estado lamentável. Mas a maior decepção está lá em cima, na Igreja de Santa Cruz, ponto final da escalada. A direita do altar, entre uma coleção de muletas e cruzes que os devotos trazem na subida e ali abandonam, em sinal de reconhecimento por graças recebidas, encontram-se, além de muita poeira. garrafas plásticas de refrigerante vazias. Do outro lado, à esquerda do altar, os ex-votos deixados pelos fiéis, na forma de braços, pernas e cabeças de madeira, empilham-se sem nenhuma ordem. 

Do lado de fora, nos fundos da igreja, outra cena deprimente: mais ex-votos, muito mais cabeças, braços e pernas de madeira, lembram a vala comum onde foram depositados os restos dos combatentes de alguma guerra no fim do mundo. Ou isso, ou o lixão de uma favela. Na casa paroquial, o jovem Expedito, única pessoa presente, informa que havia três padres em Monte Santo, mas hoje não há nenhum. Um foi embora da cidade. Dos outros dois, um foi para Salvador e outro para São Paulo, e talvez não voltem. É sexta-feira, dia de maior afluência de fiéis, mas não há padres para recebe-los. Se o sertanejo continua presente. em sua fé. o mesmo não se pode dizer dos agentes da igreja. Em Euclides da Cunha o padre, procurado reiteradas vezes pelo autor desta reportagem, nunca estava, e a igreja permanecia sempre fechada. 

Em contrapartida, o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua Major Antonino, estava sempre aberto. Esse singelo pormenor pode ser um bom começo para quem quer entender o avanço evangélico sobre as hostes católicas. 

A história da maldição da viúva contada por Ioiô da Professora corrobora a antiga tese de que Moreira César não foi morto pelos sertanejos, mas por um de seus próprios soldados. Segundo uma versão, o soldado que atirou, ao ver o coronel avançar em seu cavalo em direção ao arraial, fez isso porque estava cansado dos maus-tratos a que o coronel submetia a tropa. Segundo outra, a vingança teria sido por conta de ações praticadas por Moreira César na campanha de Santa Catarina. A família de dois irmãos mortos pelo coronel nessa ocasião teria contratado um soldado para vingá-la. Esses irmãos — acrescenta-se, para fechar a história — seriam ninguém menos que o pai e o tio do poeta modernista Ronald de Carvalho.


loiô da Professora, João de Régis, quer dizer: João, filho de Régis, assim como loiô da Professora quer dizer foi filho da professora. Entre o povo do sertão. em vez de sobrenome, usa-se a forma ancestral de identificar as pessoas pelo pai ou pela mãe. Outros exemplos: Joana de Manuel Eliseu. Maria de Sidrônio. Há casos em que um "de" não basta e então usam-se dois: Maria de Totonho de Silvano. Qual seja: Maria, filha de Totonho, filho de Silvano.

O município de Canudos tem 15.000 habitantes, cerca de 60% dos quais na zona rural. O progresso que o engenheiro Peixoto previa para a cidade, na década de 50, com a construção do açude que, em vez de poesia, ofereceria água e alimento à população, ainda não chegou. Luiz Paulo Neiva, que. como coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Uni-versidade Estadual da Bahia, dirige um trabalho de levantamento da situação no município, com vista a um plano de desenvolvimento, desfia alguns dados: 65.4% dos chefes de família recebem menos de um salário mínimo por mês; 25.6% recebem de um a três salários mínimos; 52% da população acima dos 15 anos são analfabetos; 22% das crianças até 6 meses sofrem de desnutrição. 

Canudos, onde se cria bode, pesca-se no lago e poucas coisas mais, é um dos municípios mais pobres da Bahia. Quer dizer, do Brasil. 


O Cruzeiro que se ver na foto acima, na sala que fica guardado

Não é bem que a atual Canudos não tenha nada que lembre o Conselheiro, como se afirmou páginas atrás. Tem. Mas é preciso procurar bem, porque está escondido. Vai-se à casa onde fica um "centro de convivência" da Igreja Católica, um local para reuniões e festinhas. Procura-se pela irmã Cirila, que veio do Rio Grande do Sul. Pede-se para abrir a sala na qual ela guarda os livros sobre a guerra, alguns objetos do período e pronto, lá está: a cruz de Antônio Conselheiro. Sim, aquele cruzeiro que se encontrava em frente da igreja velha e que foi transportado para esta nova Canudos quando a velha foi afogada. A cruz está deitada no chão. A madeira, escura e cheia de fendas, necessita cuidados, para não apodrecer. É a mais importante relíquia que se tem do arraial. Ao lado da cruz repousa uma lápide, onde se lê: "Edificado em 1893 por A.M.M.C.". 
As iniciais referem-se a Antônio Mendes Maciel Conselheiro e a lápide costumava ficar ao pé do cruzeiro. Irmã Cirila guardará a preciosa relíquia em sua sala quase secreta enquanto não se construir um local adequado para exibi-la. 

Fonte: Revista Veja 3 de setembro de 1997






quinta-feira, 28 de abril de 2016

A Serpente Localizando a Vítima


Foto da Revista A Noite Ilustrada 09.08.1938
Quanto mais lemos a respeito da Saga Cangaço, onde encontramos diversos relatos, descobrimos acontecimentos mais que marcantes, que travestem-se de marcos significantes na vida e na morte do maior cangaceiro caudilho que já existiu no nordeste brasileiro. Comandante de forças irregulares que lhe eram fiéis e que possuía nessa força para-militar guerrilheira, sua sobrevivência.

Foto da Revista A Noite Ilustrada 09.08.1938
Começou a decair seu semblante, quando depois de quase duas décadas combatendo forças legais nas caatingas, passou a relevar suas desconfianças e estratégias, isso aliado à sua auto-confiança, o que gera descaso, também ao cansaço e seu potencial bélico ultrapassado, perdeu a última batalha.

Detalhes Foto da Revista A Noite Ilustrada 09.08.1938


Em sua obra-testemunho "Lampião, o Último Cangaceiro", 1966. pp. 239-242, Joaquim Góis lembra-se muitos anos depois, de sua chegada ao local do drama e pouco tempo depois da batalha. 
Fora encarregado para identificar o que restara dos cadáveres decapitados dos cangaceiros.

Góis evoca o horror que lhe inspirou o espetáculo de Angico: "Um vendaval parecia haver destroçado Angicos. Lascas de pedras, cápsulas de balas, cartas de baralho, peças de vestuários, páginas de livros, escritas em latim, o que nos deixou admirados, lenços e tantos outros pertences do uso dos cangaceiros. Tudo do revolvido, tão escalavrado como se uma chuva de raios tivesse fulminado aquele pedaço solitário do São Francisco. Corpos sem cabeças, espalhados em várias posições, poças de sangue coalhado, como se as veias de granito das pedras tivessem se rompido numa hemorragia em borbotões. Pedro de Cândida inicia a identificação fúnebre, o reconhecimento de cada um dos cadáveres. Lívido, o medo ascendendo-lhe nas pupilas a covardia, assustado, nervoso. incontrolado nos gestos, o coiteiro era um feixe de fibras prestes a se romperem numa crise de pranto ou de remorso. O menor ruido o espantava na rapidez reflexa dos arrancos de quem quer fugir de um fantasma invisível, mas que existe na sua imaginação. Aquele é Lampião, ou melhor é a sobra do que foi a majestade do Rei das caatingas. Nu da cintura para baixo, as pernas picadas pelos urubus, a pele era de um roxo negro e pelos cantos das unhas escorria um liquido viscoso da cor de cobre. O tronco sem cabeça, vestido numa túnica de mescla azul com três ligas de sutache branco nas ombreiras. Três galões que o ridículo decreto do maior coiteiro de batina deste país com função impune em Juazeiro do Ceará, o promoveu ao posto de capitão do crime e do roubo. Ali estava ele enrodilhado na sua própria carniça, exposta ao tempo como uma gangrena na infecção da paisagem. O dedo trêmulo de Pedro de Cândida o espeta num reconhecimento pronto: 

— Este é o Capitão. 

A serpente localizando a vítima que mordeu. 
Joaquim Góis - Lampião, o Último Cangaceiro", 1966. pp. 239-242 

Feito o reconhecimento dos cadáveres, o médico-legista que acompanhava a expedição ordenou que se abrisse uma fossa para enterrar o que restava dos corpos decapitados de Lampião, Maria Bonita e três outros dos seus companheiros. Os demais foram deixados insepultos, à mercê dos urubus e de outras aves de rapina... como fundo do quadro trágico, na moldura de pedras do grotão fatídico. Ás tontas, enjoados, deixamos o palco enlameado de podridão em que ficaram para nunca mais sair Virgulino Ferreira e seus comparsas. 

Um fato esporádico merece registro pelo sentido do nada a que se reduz o homem quando arrebatado pela morte. Em cima do montão fofo de terra que cobria os cadáveres, um dos soldados escreveu com a ponta do dedo, na terra ensanguentada, este epitáfio cruelmente verdadeiro: 

"Aqui jaz Virgulino Ferreira da Silva Lampião o ultimo Cangaceiro". 

Uma legenda de morte que o vento varreu e espalhou no vazio da caatinga, no nada da vida, na contingência do tempo e na passagem da história por uma das pedreiras das margens do velho São Francisco. 

"Que os afeiçoados ao cangaço não esqueçam a lição brutal de Angicos." Joaquim Góis 

Em seu livro Lampião, senhor do sertão : vidas e mortes de um cangaceiro, Elise Grunspan-Jasmin citando a reportagem de Melchiades da Rocha, sobre a batalha de Angico para a revista A Noite Ilustrada e que tinha chegado ao local pouco depois de Joaquim Góis, achava que "os cadáveres decapitados de Lampião e Maria Bonita foram atados um ao outro em Angico para expressar que o amor os unira e reunira até na morte e que era preciso levar isso em conta. Doravante, Lampião e Maria Bonita tornavam-se heróis lendários, entrando definitivamente no imaginário coletivo: Foi-nos difícil descobrir os corpos de Virgulino Ferreira e Maria Bonita. Onde estarão eles? Perguntei ao Tenente Ferreira de Melo, oficial que nos acompanhava e nos prestara excelente e inestimável serviço. Amável, solícito, o bravo oficial da Policia alagoana esforçou-se quanto pôde por atender á nossa curiosidade. Conhecedor que era do local, pois foi a sua volante a que primeiro ali penetrou na manhã do dia 28, o Tenente Ferreira, entretanto, só após investigar conosco o leito do riacho, desencantou os cadáveres de Lampião e Maria Déa. Ambos estavam semi-cobertos de uma ligeira camada de areia. E que, antes, alguém que nos precedera — soubemos depois por um morador da vizinhança que haviam estado lá autoridades sergipanas — compadecido do trágico destino do terror das catingas, pusera, em gesto louvável e piedoso, um pouco de areia sobre os cadáveres do "Rei do Cangaço" e de sua amante, tendo tido também a lembrança de juntar-lhes os corpos. Unidos na vida e na morte como estiveram era justo que depois desta, unidos continuassem. Por bastante tempo estivemos contemplando em silêncio os restos mortais daquele bandoleiro que durante tantos anos trouxera o sertão em polvorosa. Dormia ele ali, ao lado de sua enfeitiçada companheira. o sono eterno." 
                       Melchiades da Rocha - Bandoleiros das Caatingas - 1940 pg 89 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Lampião era um mestiço que não gostava de negros

A tomada de posição particular dos sertanejos ante a hipótese da mestiçagem negra de Lampião deve-se a um processo ideológico do qual ele parece ter participado. Muitas narrativas biográficas evocam o horror manifestado por Lampião à simples menção de uma origem africana.  

Conta-se que ele tinha a pele mais escura que seus irmãos, o que as fotografias, entretanto, não deixam transparecer. Curiosamente, o discurso aqui é mais prolixo que a imagem; ele diz, denuncia ou mostra o que Lampião gostaria de esconder quando se mostra por meio das fotografias tal como deseja ser visto, isto é, como um branco. 


Vale lembrar que Sabino, um dos lugar-tenentes mais próximos de Lampião, era negro e que, no momento da entrada triunfal de seu chefe acompanhado de suas tropas em Juazeiro, em 1926, ele se recusou terminantemente a deixar-se fotografar. 



Zé Baiano era negro
Pode-se interpretar essa recusa como a consciência aguda do perigo que representa a divulgação de um rosto quando se sabe procurado por todas as forças policiais do país, mas pode-se ver aí também uma reticência ante a possibilidade de se deixar ver, como se a fotografia e a valorização que a ela se liga só pudesse ser privilégio dos brancos. 

Poderíamos conceber o apelido "Lampião" que Virgulino Ferreira recebeu ao entrar para o cangaço como o contraponto à cor negra de sua pele, que poderia sugerir mestiçagem e, por conseqüência, certa bastardia. Lampião significa luz, clarão, fogo que sai da arma: o que ilumina, que guia e nunca passa despercebido. Numa discussão que Lampião teria tido em 1921, na região de Vila Bela, com Optato Gueiros, oficial de uma Força Volante, ele teria afirmado: 

— Entretanto, continua Lampião, eu não nasci para esta vida de cangaceiro. Falo com franqueza, se não houvesse nego na policia prá manobrar com a gente, eu ainda iria ser soldado. 

— Compadre Virgulino, atalha Sebastião, tu não és preto? 

— Não, diz Antônio Ferreira, ele não é preto, é moreno cor de canela. 

— Sai-te Antônio, observou Lampião, tira lá essa "cor de canela" que eu não sou mulher. 

— É mesmo, acode Sebastião, esse negócio de "cor de canela" não é prá homem; ele é moreno lusco-fusco.

Notei (Optato Gueiros) que ao findar esta narrativa, transpareciam no semblante do bandido visíveis sinais de tolerância e mal estar. O olho direito, defeituoso por um estrabismo esquisito, conservava-se aberto quando estava de bom humor; agora fechava-se, dando-lhe um aspecto de ferocidade repugnante, bruscamente, dirigiu-se a Sebastião e disse:

— Esta na hora compadre. O suor já esfriou demais, estou com frio; vamos andá para esquentá. 

Depois a dona da casa pergunta qual, dentre os cangaceiros, se chama Lampião. Seu irmão, dirigindo o cano de seu fuzil para o rosto de Lampião, respondeu: 

— Oi ele aqui, mas não alumia, é danado de escuro. 

Poder-se-ia discorrer ao infinito sobre essa passagem. Lampião recusa categoricamente ser considerado um negro. Ter um caráter feminino (cor de canela) traz, é claro, prejuízo à sua virilidade, mas ser equiparado aos negros equivale a ser rebaixado, humilhado social e humanamente. 

Ele acusa os negros de impedirem sua reinserção na sociedade a que pertence e nega-se a ser subalterno de indivíduos a quem considera inferiores. 

Percebe-se também, nessa passagem, o quanto a definição da cor da pele de Lampião suscita problemas para os que o cercam e o quanto cada termo empregado tem seu valor metafórico duplicado. 

A negrura da pele parece responder fatalmente a negrura da alma, condenando o negro ao inferno sem alternativa possível: ele é "danado de escuro", dirá o irmão de Lampião de maneira bastante ambígua. 

Aliás, Lampião detestava os negros e os associava ao diabo: "Negro não é gente", teria ele dito; "é a imagem do cão". (Comentário de Volta Seca)

Lampião ao aparecer em Queimada, BA, em 1929, vendo que as pessoas ao redor dele eram negras, teria gritado: Terra de desgraça, toda a justiça é negra..., e teria ordenado que lhe servissem um copo de água! Outra passagem da história de Lampião mostra como ele associa o negro ao diabólico, opinião compartilhada por pessoas próximas e por todo o sertão: depois do massacre de Queimada, onde matou, sem motivo.

A maioria dos cangaceiros do bando de Lampião era de mestiços com miscigenação genética negra. Acreditamos que Lampião não tinha essa carga racista que se pretende e que uma vez ou outra poderia ter dito algo que inflamasse esse raciocínio.

Suas ideias sobre raça era convencional pois o nordestino sertanejo se orgulha de sua relativa brancura. Ele se fosse por exemplo um fazendeiro, teria que lidar com negros assim como lidava com negros em seu bando. Por isso, desse orgulho de relativa brancura, demonstrava um certo desprezo pela raça em geral, mas isso não o afetava de sobremaneira. 

Optato Gueiros, Lampião: Memórias de um Ex Comandante de Volantes, 1952, pp. 25-26. 14 Ver, a esse respeito, Billy Jaynes Chandler, Lampião, o Rei dos Cangaceiros, 1981, p. 239. IS Frederico Pernambucano de Mello, op. rit., 1993. pp. 92-93. 




Mestre Vitalino e sua Arte Popular


Nasceu em 1909 na vila de Ribeira dos Santos, perto da cidade sertaneja de Caruaru em Pernambuco, em criança modelava boizinhos, louças em miniatura e outros brinquedos para serem vendidos na feira local. 


Quem primeiro atentou para a criatividade e originalidade de sua obra foi o artista plástico Augusto Rodrigues (1913-1993) que no ano de  1947 o convidou a participar de uma exposição coletiva no Rio de Janeiro, 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, com diversas obras suas e de artesãos e artistas populares pernambucanos, como Manuel Eudócio e Zé Caboclo. Eram todos desconhecidos ainda.


Depois da “estreia” no Rio de Janeiro, uma nova exposição, em janeiro de 1949, ampliaria a fama de Vitalino, desta vez no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Dali em diante, sua trajetória acumularia momentos altamente consagradores.
Segue-se uma série de eventos que contribuem para torná-lo conhecido nacionalmente e são publicadas diversas reportagens sobre o artista, como a editada pelo Jornal de Letras em 1953, com textos de José Condé, e na Revista Esso, em 1959.

A Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana foi um sucesso, e até hoje é considerada um marco na história do interesse pela arte popular, não só por revelar a obra de Vitalino, mas também por chamar atenção para a existência desse gênero de criação em diferentes regiões do país. 
A dura realidade do sertanejo nordestino da década de 1940 passava a ser conhecida e abordada por um caminho até então pouco usual: seus principais atores. Vitalino criou uma narrativa visual expressiva sobre a vida no campo e nas vilas do interior pernambucano. 

Fez esculturas tais, como “Violeiros”, “O enterro na rede”, “Cavalo-marinho”, “Casal no boi”, “Noivos a cavalo”, “Caçador de onça”, “Família lavrando a terra”, entre outras. 
“Eu, além de analfabeto, criei-me trancado vivo”, contou o Mestre a René Ribeiro, um de seus mais abalizados biógrafos. Essa difícil realidade, compartilhada com a maioria dos lavradores/artesãos de sua região, não impediu que o trabalho nascido nas cercanias de Caruaru desse, origem a um dos maiores polos produtores de artesanato figurativo popular no país.

Para explicar seu processo criativo, Vitalino utilizava o verbo “estudar” – ou seja, projetar e executar a obra, atividades também definidas por ele como “fazer no sentido”.  
“Estudei um dia de fazer uma peça… Peguei um pedacinho de barro e fiz uma tabuleta; do mesmo barro peguei uma talisca e botei em pé, assim; botei três maracanãs (onças) naquele pé de pau, o cachorrinho acuado com os maracanãs e o caçador fazendo ponto nos maracanã pra atirar”, descreveu.

Em 1955, integra a exposição Arte Primitiva e Moderna Brasileiras, em Neuchatel, Suíça. O Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e a Prefeitura de Caruaru editam o livro Vitalino, com texto do antropólogo René Ribeiro e fotografias de Marcel Gautherot (1910 - 1996) e Cecil Ayres. 

Nessa época, conhece Abelardo Rodrigues, arquiteto e colecionador, que forma um significativo acervo de peças do artista, mais tarde doadas para o Museu de Arte Popular, atual Museu do Barro de Caruaru.
 Mestre Vitalino, em 1960, realiza viagem ao Rio de Janeiro e participa da Noite de Caruaru, organizada por intelectuais como os irmãos João Condé e José Condé, ocasião em que suas peças são leiloadas em benefício da construção do Museu de Arte Popular de Caruaru. 


Participa de programas de televisão e exibições musicais, comparece a eventos e recebe diversas homenagens,  como Medalha Sílvio Romero. Nessa ocasião, a Rádio MEC realiza a gravação de seis músicas da banda de Vitalino, lançadas em disco pela Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro na década de 1970. Em 1961,  atendendo a pedido da Prefeitura de Caruaru, doa cerca de 250 peças ao Museu de Arte Popular, inaugurado nesse ano.

 Em 1971, é inaugurada no Alto do Moura, no local onde o artista residiu, a Casa Museu Mestre Vitalino. No espaço administrado pela família, estão expostas suas principais obras, além de objetos de uso pessoal, ferramentas de trabalho e o rústico forno a lenha em que fazia suas queimas.

A consagração de Mestre Vitalino foi, sobretudo, a consagração de um gosto e de um tipo de olhar sobre a realidade. Daí ter sido sua criação legitimada quase instantaneamente como “arte”.
Aplaudido por seus companheiros de Caruaru, transformou-se numa atração da feira da cidade. Foi homenageado em festas públicas importantes, tendo sido recebido com honras por governadores da antiga Guanabara, de Pernambuco, Goiás e Alagoas, e louvado em jornais, revistas e livros por escritores e poetas como Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira e Hermilo Borba Filho.

Exemplares de sua obra foram adquiridos pelos principais museus brasileiros e por colecionadores particulares. O estudo de sua vida deu origem a publicações e teses. Após sua morte, ocorrida em 1963, seu círculo de influência se ampliou – ele foi convertido em personagem da cultura de massa. Mestre Vitalino foi o principal personagem dos enredos de várias escolas de samba no Rio de Janeiro. 

No carnaval de 1977, a Império da Tijuca apresentou “O mundo de barro do Mestre Vitalino”. 
No ano seguinte, a Mocidade Independente de Padre Miguel desfilou com o tema “Brasiliana”, no qual o escultor era citado. No desfile de 1982, a Beija-Flor cantou os versos de Wilson Bombeiro, Carlinhos Bagunça e Joel Menezes: “Mas Mestre Vitalino molda em barro o destino do povo tão sofredor”. 


E em 1983 foi a vez da Unidos da Tijuca, com o samba “Devagar com o andor que o santo é de barro”. Sua obra também inspirou os documentários cinematográficos “O mundo de Mestre Vitalino”, produzido por Armando Laroche (1953), e “Adão foi feito de barro”, de Fernando Spencer (1976). Em 1977, Geraldo Sarno filmou “Vitalino, Lampião”.

Embora se reconheça o papel fundamental de Mestre Vitalino na atenção que o universo da criação popular passou a receber, o fértil universo artístico surgido no Alto do Moura não foi obra de um homem só, nem fruto do acaso. Tratava-se de uma comunidade oleira, onde muitos dominavam as técnicas da cerâmica numa época em que começava a diminuir o interesse por objetos utilitários feitos dessa forma. 

A industrialização recente passava a oferecer louças e outros utensílios feitos de alumínio e de plástico, considerados mais atraentes e práticos. Com isso, os ceramistas tradicionais se viram pressionados a descobrir novos usos para seus talentos. Ao mesmo tempo, mudava o entendimento do que poderia ser admitido como arte e sobre quem poderia ser considerado artista.


Vitalino virou mito e personagem da cultura de massa, numa atualização do interesse que a temática sertaneja despertava no imaginário nacional desde o século XIX. De padre Cícero e Antônio Conselheiro ao fim do cangaço, com a morte de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, em 1938, os símbolos da cultura popular nordestina corriam o país e ganhavam as artes. 

Em 1953, o filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, recebeu no Festival de Cannes, na França, o Prêmio Especial do Júri na categoria de melhor filme de aventuras. Até aquele momento, o filme foi a produção nacional de maior sucesso de bilheteria no Brasil e no exterior. 


Na literatura – que punha em xeque a erudição acadêmica, revelando a sofisticação presente na linguagem popular –, o exemplo paradigmático foi Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (1956). A temática regional voltou a ter destaque no cinema em 1962, com a vitória em Cannes do filme “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte.


Vitalino não foi apenas um artista talentoso, também era músico e tocava numa banda de pífano. Entre suas virtudes, destaca-se a solidariedade dedicada aos seus companheiros, que foram os primeiros a reconhecerem-no como mestre. 



A consagração como uma espécie única tornou sua posição extremamente integradora, permitindo que amplos setores sociais reconhecessem e qualificassem positivamente, pela via das artes plásticas, um vasto contingente popular que até então raramente ganhava notoriedade.


Também contribuiu para desestabilizar estereótipos sobre o mundo rural, revelando homens de carne e osso que, por todo o Brasil, se dedicavam a atividades sensíveis e criadoras – da moda de viola à literatura de cordel, da criação de adereços para festas à produção de ex-votos, do entalhe em madeira à atividade artesanal cerâmica.

Fez jus à fama de mestre: foi um autêntico mediador, permitindo que os mundos erudito e popular, até então distantes, se encontrassem.
Onde encontrar Vitalino
O acervo de Mestre Vitalino está espalhado por diversos museus do Brasil e do exterior. Até o Louvre, em Paris, abriu espaço para as obras do ceramista. No Brasil, grande parte das obras está no Rio de Janeiro, em Recife e no Alto do Moura.


O Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, o maior e mais significativo acervo de arte popular do país, detém o maior número de obras do artista. Fica aberto ao público de terça a domingo, das 9h30 às 17h. O endereço é Estrada do Pontal, 3295, Recreio dos Bandeirantes. Telefones: (21) 2490-3278 e (21) 2490-4013. Na cidade, também abrigam obras de Vitalino o Museu do Folclore Edison Carneiro, o Museu da Chácara do Céu e o Museu Nacional de Belas Artes.



No Recife, o Museu do Homem do Nordeste, integrado à Fundação Joaquim Nabuco, abre às terças, quartas e sextas-feiras das 11h às 17h; às quintas, das 8h às 17h, e sábados, domingos e feriados, das 13h às 17h. O museu fica na Av. 17 de Agosto, 2187, Casa Forte. Telefone: (81) 44415500.
No Alto do Moura, comunidade de artistas que fica a sete quilômetros do centro de Caruaru (PE), funciona na antiga casa do mestre a Casa-Museu de Mestre Vitalino, administrada por um dos seus familiares. No local estão expostos objetos de uso pessoal do artista, fotos, suas ferramentas de trabalho, móveis e utensílios. No quintal fica o forno a lenha circular, para a queima da cerâmica. Telefone: (81) 3725-0805.

Fontes da matéria:

ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Rocco,Funarte, 1998.

CABRAL DE MELLO, Paulino. Vitalino sem barro: o Homem. Rio de Janeiro:Fundação Assis Chateaubriand/MinC,1995.

COIMBRA, Silvia; MARTINS, Flávia e DUARTE, Letícia. O reinado da Lua – escultores populares do Nordeste. Rio de Janeiro: Salamandra,1980.

FROTA, Lélia Coelho. Mestre Vitalino. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,Massangana, 1986.

Angela Mascelani - Diretora do Museu de Arte Popular Brasileira Casa do Pontal e autora de O mundo da Arte Popular Brasileira (Mauad, 2002) Revista de História 8/7/2009  

terça-feira, 26 de abril de 2016

CANUDOS: O Fim do Treme-Terra

Temos a continuação da reportagem O Legado do Conselheiro, e na segunda reportagem Duas Vezes Morto, Duas Vezes Ressucitado, e agora a terceira parte O FIM DO TREME-TERRA, de uma série de cinco episódios, feitas pelo Jornalista Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja 3 de setembro de 1997. 


Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o Corta-Cabeças. o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra, ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta quadra, recolhida por José Calazans: 

Moreira César foi ao céu 
Com Tamarindo ao seu lado 
Sdo Pedro falou assim: 
A que cara de malvado! 

Antônio Moreira César era o seu nome,  coronel a sua patente. O oficial talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual. Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano. 

Euclides da Cunha o descreve: 

"O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura diminuta — um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses —, era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na farda, que raro deixava o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo". E no entanto, quanto respeito — e quanto medo — impunha à sua volta. Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois movimentos que haviam desafiado o regime florianista — a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. 

Em Santa Catarina para onde foi enviado com plenos poderes, para apagar os últimos fogos da Revolução Federalista distinguiu-se pela ferocidade. Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na legenda do sertão. 

"Na Guerra de Canudos, depois de Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos, autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra." 

O elenco da epopeia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel Tamarindo, o segundo de Moreira César, cabo Roque, herói efêmero de uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra. Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se tomar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o "comandante da rua", como era conhecido — "rua" no sentido de "arraial", de "cidade", de "área urbana" e comandante porque era o chefe militar supremo: Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans, quando já nonagenário, e entrevado: "Faz pena um homem como eu morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar". 

A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas estreitas do arraial. Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino. Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. 

A Guerra de Canudos é tão rica de personagens quanto a — releve-se a insistência na comparação — de Troia e de personagens que igualmente foram se credenciando à mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes atribuem. 

Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como Hollywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú, Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general Custer e Touro Sentado. 

Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida história, com uma trama de emoções e imprevistos. A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos — estamos em novembro de 1896 — uma expedição punitiva. 

Tinha 104 homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo — uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância — velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr.
Terminava aquela que passou para a História como a primeira expedição. 

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho — 550 homens — e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se repetiria nas expedições seguintes.

Monte Santo, 100 quilômetros ao sul de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Sena de Piquaraçá, que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe serve de majestoso pano de fundo — um monte sulcado por um caminho que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase perder de vista e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". 

Lá no alto, no fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz. Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam as passos da Paixão. Foi construída no século XVIII. 100 anos antes de Canudos, por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa Cruz, longa de 3 km, é penosa. O caminho é não só íngreme, quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras, cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e descortina-se um panorama deslumbrante da região.

O Monte Santo de frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus — na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém —, é o mais eloquente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito de penitência de severidade, de purgação atormentada e permanente dos pecados.

Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo. Welcome. Bienvenido. Monte Santo. Altar do Sertão". Como se a cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros. Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa, costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. 

O caminho de pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras. Fica-se a perguntar que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de penitência? Monte Santo evoca tanto a religião como cidade santuário, quanto a Guerra de Canudos. 

No tempo de suas peregrinações pelo sertão, antes de estabelecer-se no arraial. Antônio Conselheiro visitou-a várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou. com seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da montanha. 

Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros: "Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição demorou quinze dias na cidade antes de se pôr a caminho. E então, tudo foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial insurreto.

A humilhação era demasiada. O irredentismo dos fanáticos" sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional. O histerismo que tão frequentemente caracteriza a vida política brasileira, materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que desqualificam o adversário num dia como um "comunista" no outro como "neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-lança de uma reação monarquista. 

Lembre-se de que o regime republicano fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que sem dúvida se ramificava pais afora, nos arraiais monarquistas, e quem sabe tinha até apoio do exterior. 

Para debelá-la. só um bravo como Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o coronel foi convocado para chefiar os 1.300 homens que formariam na terceira expedição. Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região. Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe. apontarão ao visitante a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos — um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. 

Em Queimadas, Monte Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde corre o riacho do mesmo nome há uma cruz, no meio do mato. Uma lápide explica, embaixo: "Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março de 1897, o cadáver do coronel Moreira César..."

O marco, mandado edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último, centésimo aniversário do evento que rememora. Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-las. 

À medida que se aproximava, o otimismo aumentara: "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que Moreira César rinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o Conselheiro — ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques durante a campanha de Canudos. Além disso. apresentava um temperamento instável e impulsivo. 
Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. 

Conselheirista preso entre seus captores
Em Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa. sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas — o que, além de facilitar a movimentação do adversá-rio familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia que não podia disparar sob pena de atingir os próprias companheiros. 

A situação se complicava. Moreira César ordenou um ataque de cavalaria mais desastroso ainda em se tratando não de uma planície aberta. mas de um inimigo entrincheirado num reduto cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia o coronel deixou seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.

Atingido no ventre por uma bala, vergou-se. largando as rédeas. Os companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse. Morreu naquela noite. Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente descritos em "Os Sertões". 

Morto o comandante, a desarticulação da tropa foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando — um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranquila — proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si". 

Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas, empalado e erguido num galho. para assustar os imprudentes que porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. 

No atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira César nas Umburanas. A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de ordem. 

Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquia o coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias. Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo profanasse a sagrada relíquia. 

Uma rua no Rio e outra em São Paulo foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque aparece são e salvo, entre as últimos fujões retardatários e destrói o Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer glória veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio. Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi abandonado o corpo com o da morte: 

Coronel Moreira César 
Olho de cana caiana. 
Tomou chumbo em Canudos 
Foi morrer nas Umburanas.