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domingo, 28 de fevereiro de 2016

FEITOSA DOS INHAMUNS - Nertan Macêdo


Quando êle chegou em casa 
Seu pai botou-lhe a bênção. 
Deu-lhe um abraço e lhe disse: 
Meu filho do coração, 
Serás como teu avô, 
Que cento e tantos matou, 
E nunca foi à prisão. 

"História do Capitão Lampião" 
Autor anônimo



SE O PARENTESCO com Antônio Silvino foi uma invenção do povo, não o era certamente a consanguinidade que vinculava os Ferreira de Vila Bela aos valentes Feitosa do São João dos Inhamuns, no Ceará. Um velho amigo e vizinho dos Ferreira, cuja casa de morada não se distanciava cem braças da de Virgulino, como ele, também, afeito ao artesanato do couro, o vila-belense Venâncio Barbosa da Silva, sabia desse parentesco com os Feitosa. 

Venâncio morava numa fazendola, chamada Cipós, ao lado dos Ferreiras. A crônica mais antiga corrente nas redondezas, rezava que o bisavô paterno de Virgulino viera de Tauá, na serra do São João dos Inhamuns, bater com os costados em Vila Bela. Ali casara ou amancebara-se com uma parda, de nome Maria Jacosa, filha, talvez neta, de índios do sertão pernambucano. 

Trazia o bisavô um nome famoso, de guerra: Feitosa. E a tradição oral dessa descendência perdurou entre as gentes do lugar. É provável mesmo que esse antigo Ferreira fosse um Feitosa bastardo, dos muitos nascidos das índias preadas pelos poderosos senhores dos sertões cearenses. Ou fosse um Ferreira Ferro, fugido à sanha de um Monte ou da justiça do rei. De qualquer forma, um Feitosa, como se deduz do que a respeito desse ramo legou à posteridade o doutor Pedro Théberge, do Icó. 

Diz Théberge que o tronco Feitosa havia se passado do Engenho Currais de Serinhaém, Pernambuco, para os sertões do Ceará. Essa retirada se dera em virtude da participação profunda dessa gente de Serinhaém na Guerra dos Mascates, no Recife. Perseguidos ali, perseguição que se estendia no tempo a quantos brasileiros se houvessem metido naquele movimento, escaparam para o sertão cearense, fixando-se nas cercanias do Icó. 

O chefe, Lourenço Alves Feitosa, tomou, no Ceará, o título de Alferes Comissário. Ele havia casado com uma irmã do vigário de Goiana, no seio de uma família importante, Gondim. Outro seu cunhado era provigário do Recife. 

Os Gondim eram aparentados com os descendentes de André Vidal de Negreiros e assinala Théberge, "com uns Ferreira Ferro, moradores em Penedo, e por parentesco tão íntimo que um membro da família Feitosa sempre tomou até hoje este nome de Ferreira Ferro. 

Fugiu Lourenço para o Ceará na companhia de três irmãos, Francisco Alves Feitosa, o coronel Pedro Alves Feitosa e Manoel Ferreira Ferro. No Ceará, radicou-se Lourenço numa fazenda denominada Cachoeirinha, a seis léguas do Icó, molhada pelas águas do riacho Cariúzinho. 

A luta contra os Monte, com os quais se haviam ligado por um casamento, teve origem numa rixa familiar, de cunhado a cunhado, acrescida mais tarde de urna disputa feroz por terras, situadas na ribeira do riacho Jucá, afluente do Jaguaribe. 

O caráter dos Feitosa era marcado de orgulhosa altivez. Deles fala o doutor Théberge como sendo ricos, não menos orgulhosos que os Monte, mais práticos, mais civilizados, acostumados que eram a corromper as autoridades reinóis, ante as quais sabiam todavia, curvar-se, quando achavam oportuno; muito unidos entre eles e dominando, com mão de ferro, os índios Jucás, Caiús e Inhamuns. 

Dá-nos o mesmo cronista notícia de um oficial das milícias do tempo, de nome João Ferreira da Fonseca, que se reuniu aos parciais dos Feitosa e a um troço de oitocentos índios jenipapos, com os quais entrou a percorrer o interior roubando e massacrando os Montes e seus sequazes, praticando contra eles as violências das mais atrozes sem sem atenção nem a sexo nem a idades. Quase todo o ano de 1724 foi assinalado por estes atentados que se estenderam por todo o interior da Capitania. 

Com o passar dos anos, os Monte foram entrando em decadência, sepultando no esquecimento a crônica belicosa da família. 

Os Feitosa, não. Continuaram, diz o cronista, a viver a sós consigo mesmos, sem relação nem comunicação com o resto da população, e conservando sempre grande séquito de malvados, que acoitavam contra as perseguições da autoridade. Tinham os Feitosa uma parentela numerosa, não apenas no Ceará, como em Pernambuco, principalmente no Recife e no Icó. Na vila do Penedo do Rio São Francisco moravam primos célebres dessa gente, os capitães Manoel Ferreira Ferro e João Ferreira Ferro, sendo todas pessoas ligadas por laços de consanguinidade ou de afinidade, escreve o doutor Théberge, assim terminando a sua narrativa: "A família Feitosa ainda existe nos Inhamuns, na mesma ribeira do mesmo rio Jucá, quase no mesmo pé que seus antepassados, ligando-se pouco com outras famílias, e conservando ainda quase sem alteração os seus costumes de prepotência, riqueza e valentia". 

Virgulino Ferreira tinha assim por quem puxar. A ser verdadeira a doutrina tradicionista, que afirma ser a alma uma transmissão genética. Herdara do sangue português a coragem e o gosto pela solidão. Do índio, de língua geral, mais provavelmente de língua travada, ficou-lhe a astúcia, a rebeldia e o nomadismo guerreiro.(*) (**) 

(*) "Manuel Ferreira Gondim. E esse quem era? Em todos os atos públicos onde figura o seu nome encabeça a lista dos assinantes. Devia pela idade provecta e pela atuação respeitável merecer êste privilégio. Sabemos ser oriundo da estirpe pernambucana dos Gondins de Goiana, filho de um irmão do Sargento-Mor Francisco Ferreira Pedrosa, sobrinho de D. Antônia de Oliveira Leite, mulher do Comissário Lourenço Alves Feitosa e do Padre José Ferreira Gondim, Vigário de Goiana e Vice-Vigário do Recife. Sua mãe, Luzia Monte, pelo lado materno (Isabel Monte), e Feitosa, pelo lado paterno (Cel. Francisco Alves Feitosa), vinha dos tempos da dominação. Situado no rio do Umbuzeiro, onde possuía terras nas fazendas "Aroeiras", "Gameleira" e "Araras", tinha como vizinhos o Sargento-Mor Leandro Custódio Bizerril e o parente próximo Capitão-Mor José Alves Feitosa. Foi no Centro-Oeste cearense patriarca no verdadeiro sentido. Por tôda parte parentes seus têm destaque em todos os ramos de atividade humana. Desaparecendo aos 31 de dezembro de 1833, uma récua de filhos chorou a sua morte. Dez legítimos um natural, ao todo onze. Já na Bíblia encontramos Abraão, o patriarca de Israel, o preferido de Deus, também constituindo família com uma concubina —Ismael foi o produto destes amores, como JOSÉ FERREIRA o era do patriarca dos Inhamuns. Nos autos de inventário de Manoel Ferreira Gondim e sua mulher Isabel Alves está escrito: "Ajuntem os meios dotes e somem e repartam pelos onze herdeiros, incluindo o herdeiro José Ferreira, filho natural do falecido velho Gondim, que na regra de direito é herdeiro de seu falecido pai por isso que deve entrar na meação". A figura bíblica do homem de Hur identifica-se nos mesmos anseios com o Gondim das "Aroeiras". O mesmo destino a que ficam sujeitas as pessoas marcou-lhes, em sentido diverso, a passagem pela terra. O filho de Abraão, banido para o deserto, foi ter ao vale de Meca, o de Manoel Ferreira Gondim, na procura dos favores de parentes importantes, perdeu-se nos sertões agrestes de Pernambuco. De Ismael, descende Maomé, o místico que ainda reina nos corações de milhares de asiáticos. De José Ferreira, rezam as tradições, provém Lampião, o famoso bandoleiro que reinou nos sertões". — Gomes de Freitas, Novos Subsídios para a História dos Inhamuns, edição de "O Povo", Fortaleza, Ceará, 21-12-63. 

(**) "Filhos do português João Alves Feitosa, casado, como já ficou dito, com uma filha do Coronel Manoel Martins Chaves: 
1 — Comissário Lourenço Alves Feitosa, casado com Antônia de Oliveira Leite, irmã do Padre José Ferreira Gondim, Vice-Vigário do Recife e do Vigário de Goiana; 
2 — O Coronel Francisco Alves Feitosa, casado, em primeiras núpcias, com Isabel do Monte, irmã do Capitão-Mor Geraldo do Monte; em segundas núpcias com Catarina Cardosa da Rocha Resende Macrina, descendente da família Cavalcanti e Albuquerque, de Pernambuco, e, em terceiras núpcias, com Isabel Maria de Melo. 

Estas três mulheres eram viúvas e traziam filhos dos seus leitos anteriores. Dos filhos do primeiro casamento de Isabel do Monte, descendem grande parte dos Pinheiros, dos Meios e dos Fernandes Vieira, conforme o testemunho do Dr. Helvécio Monte ("Unitário", n. 2.168, de 4 de junho de 1916). 

Dos filhos do primeiro casamento de Catarina Cardosa da Rocha Resende Macrina, segundo uma tradição que sempre circulou, no seio da família Feitosa, descendem os Pereiras de Pajeú de Flôres.

— "O Coronel Francisco Alves Feitosa fundou a sua primeira fazenda no lugar Barra do Jucá, em terras do Rio Jaguaribe, à margem direita deste, cerca de uma légua de sesmaria abaixo da atual vila de Arneiroz, construindo ali uma Capela de taipa, e, por isso, com a edificação da Igreja de Arneiroz, por um neto do mesmo Francisco Alves Feitosa, ficou aquela fazenda com o nome de Igreja Velha (esta denominação já desapareceu com a demolição dos prédios antigos). 

Procedeu-se ao inventário do Coronel Francisco Alves Feitosa em Cococi; foi apenas uma partilha, porque não havia órfãos e o monte total orçou em NCr$ 12.000,00, isto é, perto desta importância, porque as avaliações foram muito baixas, conforme se vê, não havendo avaliações de posses de terra, e sim de sítios: um sítio São Nicolau, com 3 léguas de terra, avaliado por NCr$ 200,00; um sítio Figueiredo, com duas léguas, avaliado por NCr$ 400,00; o sítio Ôlho d'Águia do Urucu, por NCr$ 50,00; uma légua de terra, das extremas do Latão até a Estiva, por NCr$ 300,00; um sítio, com engenho, no lugar Engenho da Serra, por NCr$ 400,00; o sítio Pouco Redondo, com 3 léguas de comprimento e uma de largo para cada lado, por NCr$ 550,00, e assim por diante, outros sítios em Inhamuns, Quixelô, antiga Santana do Cariri e Rio de São Francisco, da Cachoeira de Paulo Afonso para baixo. Os bens semoventes tiveram as avaliações seguintes; um cavalo de fábrica, em Cococi, por NCr$ 5,00; as éguas, avaliadas a NCr$ 3,00; as vacas, a NCr$ 2,00; as novilhotas e novilhotes, a NCr$ 1,20; e os bezerros, a NCr$ 0,50. (Os escravos, de moleques a negros, tiveram avaliação de NCr$ 40,00 a NCr$ 80,00, mais disto um ou outro.) Esta partilha foi feita em Cococi, no dia 17 de junho de 1770, com assistência de todos os herdeiros e co-herdeiro do Capitão-Mor Arnauld de Holanda, casado com Francisca, neta do inventariado. 

Os bens inventariados, por morte do Coronel Francisco Feitosa, atualmente teriam valor para algumas centenas de contos de réis. Não nos constam os nomes dos estados do Coronel Francisco Alves Feitosa do primeiro casamento. Do segundo casamento constam-nos os nomes dos seguintes enteados: 1 — Antônio Pereira do Canto, casado com Antônia, filha de Antônio Barbosa Galvão; 2 — Leonor, casada com o português, a quem chamavam Marinheiro José da Silveira, que cultivava a Serra, que ficou com o nome de Serra do Silveira; 3 — D. Rosa, da Boa Esperança, não teve casamento e nem descendência. Do terceiro casamento do mesmo só nos consta ter dois enteados: 1 — O Sargento-Mor Francisco Ferreira Pedrosa, que já vimos casado com Josefa Alves Feitosa, filha do seu padrasto; 2 — O marido de Luzia, filha do primeiro casamento do Coronel Francisco Alves Feitosa, cujo nome ignoramos". — Leonardo Feitosa — TRATADO GENEALÓGICO DA FAMÍLIA FEITOSA. — Tipografia Paulina — 1952 — Fort. — CE.

Como se vê do livro de Leonardo Feitosa, os Pereiras do sertão pernambucano são parentes dos Feitosa do Ceará. Não seria sem razão que Virgulino Lampião começara sua vida de cangaceiro à sombra de Sinhô Pereira, acostado, assim, ao poderoso clã do Barão do Pajeú. Os mesmos Pereiras são também aparentados dos Alencares, outra importante família sertaneja cearense.