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sábado, 30 de janeiro de 2016

O mundo do Islã

Islamismo: uma em cada cinco pessoas pratica hoje o Islã. A mistura entre fé e política coloca a religião em xeque em todo o mundo


Cinco vezes por dia, o chamado à oração ecoa na alma dos muçulmanos em várias partes do mundo – de Shangai a Chicago, de Jacarta a Timbuktu. Transmitida por alto-falantes metálicos em cidades populosas ou elevando-se como um murmúrio entoado por condutores de camelos prostrados na areia, a prece começa com a mesma frase em árabe usada há quase 1,4 mil anos, um melódico tributo do Islã ao Criador. “Allah... u akbar”, entoam os fiéis. “Allahhh... u akbar!” (Deus é grande!)

Cerca de 1,3 bilhão de pessoas – um em cada cinco seres humanos – atendem a esse chamado no mundo moderno. As crescentes conversões fazem do islamismo a religião de propagação mais acelerada em todo o planeta – com 80% de fiéis vivendo hoje fora do mundo árabe. O Islã, para essas pessoas, é uma ligação íntima e pessoal com o mesmo Deus reverenciado por judeus e cristãos. Uma fonte de força e esperança em um mundo conturbado.

O termo “islã” vem do árabe, significa “submissão a Deus” e tem suas raízes etimológicas firmemente plantadas na idéia de salam (paz). Tal significado pode surpreender os não muçulmanos, que tiveram suas percepções sobre essa fé deturpadas por grupos terroristas e seus atos medonhos perpetrados em nome de Alá. “A paz é a essência do Islã”, afirma o príncipe El Hassan bin Talal, da Jordânia, irmão do falecido rei Hussein e considerado descendente do profeta Mohammad (Maomé). O príncipe El Hassan chefia atualmente a Conferência Mundial sobre Religião e Paz e não mede esforços para construir pontes de entendimento entre o mundo muçulmano e o Ocidente. “Respeitar a santidade da vida é o alicerce de nossa fé e de todas as grandes fés”, explica.

Assim como o judaísmo e o cristianismo, o islamismo identifica suas origens em Abraão*, um pastor nômade com quem Deus (Allah, em árabe) fez alianças que sedimentaram a base das três fés monoteístas. Os muçulmanos reverenciam outros profetas hebreus, incluindo Moisés, e consideram ainda o Antigo e o Novo Testamento partes integrantes de sua tradição. Discordam dos cristãos quanto à natureza divina de Jesus, mas o glorificam como um mensageiro especialmente estimado de Deus, pois o supremo mensageiro, para os sectários do islamismo, é Maomé.

Nascido por volta de 570 em Meca, na atual Arábia Saudita, Mohammad, órfão, foi criado pelo avô e pelo tio. Tornou-se um modesto mas respeitado negociante que rejeitou o disseminado politeísmo de sua época e se voltou para o Deus único venerado pelas comunidades cristã e judaica da região. Com cerca de 40 anos de idade, Maomé recolheu-se a uma caverna nas montanhas próximas a Meca para meditar. Ali, crêem os muçulmanos, ele recebeu a visita do arcanjo Gabriel, que se pôs a recitar-lhe a palavra de Deus. Até sua morte, 23 anos depois, Maomé transmitiu essas revelações a um crescente grupo de seguidores. Muitos deles escreveram suas palavras ou as gravaram na memória. Esses versos, compilados pouco depois da morte do profeta, tornaram-se o Corão (ou “recitação”), e são considerados pelos muçulmanos a palavra de Deus literal – e um refinamento das escrituras judaicas e cristãs.

O corão consiste em 114 suratas, ou capítulos, que abrangem desde a natureza de Deus – compassiva e misericordiosa – até as leis que governam os assuntos mundanos dos homens. Ordena o Corão, por exemplo: não usurpe a propriedade de outro por meios injustos e não cace animais durante uma peregrinação. “Sua mensagem básica é uma receita para a harmonia na vida cotidiana”, diz o xeque Anwar al-Awlaki, o imã (líder espiritual), da Mesquita Dar al-Hijara, próxima a Washington, D.C. “No Corão, Deus ordena que sejamos clementes uns com os outros, que a ética norteie nossa vida. Esses conceitos, obviamente, não são novos. O livro apenas confirma muitos dos ensinamentos já expressos na Bíblia. De muitas maneiras, a mensagem de Deus no Corão resume-se a ‘tratemos as pessoas melhor do que elas nos tratam’.”

Para os muçulmanos, o Corão é também uma pedra de toque poética, uma fonte da mais pura língua árabe, memorizada pelos escolares e recitada pelos adultos muçulmanos em todas as ocasiões importantes – casamentos, funerais, dias santos. Em uma religião que proíbe estátuas e ícones, o livro é a manifestação física da fé, e pequenas cópias puídas andam no bolso da gente comum em todo o mundo muçulmano.

Da mesma maneira que os versos da Bíblia podem ser retirados do contexto e usados para promover uma causa de fanáticos, também o Corão está sujeito a deturpações. Um verso que aconselha as mulheres a se vestir e se comportar com recato é interpretado como um bom conselho prático, mas outras leituras fornecem ao Talibã uma justificativa para aprisionar as mulheres em casa. Versos que recomendam a jihad (luta) contra os inimigos de Deus podem ser entendidos como uma elegia à batalha íntima de cada indivíduo em busca da pureza e da iluminação do espírito. Por outro lado, outros mencionam a luta armada de Maomé contra seus inimigos e dão aos radicais da atualidade um pretexto, por mais desvirtuado que seja, para travar uma guerra santa contra infiéis.

Tais interpretações não podem ser invalidadas, já que o Islã é uma fé que não possui uma hierarquia estabelecida. Não existe um papa muçulmano nem se excomungam os hereges. Assim, embora um imã possa dar orientações e instruções a seus congregados, em última análise a autoridade do Islã está em seu livro santo – o que, em suma, deixa aos indivíduos a liberdade para interpretar a palavra de Deus à sua maneira. O próprio Corão reconhece esse dilema na surata III:7: “Nele há versículos fundamentais, que são a base do livro, havendo outros alegóricos. Aqueles cujo coração abriga a dúvida seguem os alegóricos, a fim de causarem dissensões [...] Ninguém senão Deus conhece sua verdadeira interpretação”.

Deus proibiu a coerção religiosa, mas ordenou a Maomé que declarasse sua nova fé a todo o povo de sua região – uma tarefa nada fácil diante das violentas guerras tribais e da idolatria que grassavam em Meca no século 7, boa parte delas centrada na Caaba. Esse santuário em forma cúbica foi usado em rituais pagãos em honra a várias deidades. Maomé e seus seguidores foram ridicularizados e sofreram violentos ataques por sua crença em um Deus único que não se podia enxergar.

Após uma década de perseguição, eles migraram para Medina, a cerca de 300 quilômetros de Meca. O profeta veio a governar a cidade e, vários anos depois, ele e um pequeno exército de fiéis retornaram a Meca, destruíram os ídolos da Caaba e dedicaram o lugar ao Deus de Abraão. Desde então, peregrinos reverenciam o local como o mais sagrado santuário do Islã. Todos os anos, reencenam a jornada de Maomé a Meca no hajj, a peregrinação que atrai 2,5 milhões de muçulmanos de todo o mundo para circundar a Caaba.

Um dos cinco pilares do Islã (junto com o jejum no mês sagrado do Ramadã, a oração, a caridade e a profissão de fé), o hajj é exigido de todo muçulmano que tem condições de fazê-la ao menos uma vez na vida. “Agora sou um hajji!”, exulta Hamoudi bin Nweijah al Bedoul, um beduíno de meia-idade, habitante dos desertos rochosos a sudeste do mar Morto. Sua reação foi típica do muçulmano que retorna da peregrinação pela primeira vez. “Fomos eu, minha mãe e um milhão de pessoas iguaizinhas a nós. Viajamos de ônibus por uma semana, o caminho inteiro até Meca. Minha mãe chorou o tempo todo na volta.”

Quando o profeta morreu, em 632, o Islã já se consolidara por todas as terras áridas da península Arábica, levando paz e união às tribos pela primeira vez. Um século após a morte de Maomé, os exércitos islâmicos, fortalecidos pela fé inexpugnável, haviam conquistado uma vasta faixa de território que se estendia desde a Índia até a costa espanhola e portuguesa no oceano Atlântico, incluindo o norte da África e o Oriente Médio.

O mundo muçulmano assentou-se nos alicerces intelectuais das culturas romana e persa, patrocinando uma explosão de saber que não teve paralelos antes da Renascença. Segundo o historiador Bernard Lewis, da Universidade Princeton, entre os heróis não celebrados do Islã estão seus tradutores, que foram responsáveis pela preservação de textos gregos clássicos do mundo antigo. Eles adequaram versões para o árabe nas áreas de matemática, astronomia, física, química, medicina, farmacologia, geografia, agronomia e uma ampla gama de outros assuntos, entre eles, notavelmente, a filosofia. Enquanto a Europa definhava na Baixa Idade Média, eruditos e pensadores muçulmanos davam ao mundo um grande centro de saber islâmico – Al-Azhar, no Cairo – e aprimoravam tudo, da arquitetura ao uso dos números. Ao mesmo tempo, comerciantes islamitas navegavam e divulgavam sua fé para o sul da Ásia, a China e a costa oriental da África.

Florescente no fim do primeiro milênio, o reino do Islã foi posto à prova quando a Europa Ocidental despertou e reagiu, lançando uma série de Cruzadas armadas para reaver o controle da Terra Santa, incluindo os santuários cristãos de Jerusalém. Embora fragmentados e subjugados de início, os muçulmanos se reergueram e por fim derrotaram os exércitos cristãos, cujo legado sangrento – a matança indiscriminada de milhares de inocentes, muçulmanos, cristãos e judeus de Jerusalém – até hoje está vivo na mente de boa parte dos habitantes do Oriente Médio.

Enquanto a Europa ascendia à glória durante a Renascença, o mundo islâmico continuava a prosperar após a criação do Império Otomano, em fins da década de 1200. Esse Estado poderoso só foi soçobrar no final da Primeira Guerra Mundial, e o resultado foi a subdivisão de suas terras, em grande parte muçulmanas. Formaram-se nesse momento histórico os países do Oriente Médio que conhecemos hoje.

A maioria das nações islâmicas é pobre, embora algumas sejam ricas em recursos petrolíferos. Poucas sociedades muçulmanas desfrutam as liberdades civis hoje corriqueiras nas nações ocidentais, como a de expressão e o direito de votar em uma eleição justa. E suas populações crescem a olhos vistos: de cada dez habitantes, quatro têm menos de 15 anos.

Insatisfeitos e privados de seus direitos, há décadas os muçulmanos têm se voltado para a religião e para os movimentos políticos de sua religião a fim de afirmar sua identidade e reaver o poder sobre sua própria vida. No mundo árabe, muitos estão zangados com os Estados Unidos por seu apoio a Israel, sua presença militar na Arábia Saudita – terra de lugares santos – e suas contínuas sanções econômicas contra o Iraque, vistas por muitos como inócuas para Saddam Hussein mas perversas para o povo iraquiano, seus irmãos de fé. Além disso, as sociedades islâmicas têm uma antiga relação de amor e ódio com a cultura popular americana, e atualmente esses sentimentos intensos podem estar mais próximos da repulsa do que do respeito. “Para muitos muçulmanos, especialmente nas sociedades tradicionais, a cultura americana se parece demais com um despudorado paganismo, um culto que venera o dinheiro e o sexo”, explica o imã Anwar al-Awlaki. “Para essas pessoas, o Islã é um oásis de veneráveis valores de família.”

Alguns países muçulmanos, como Irã e Arábia Saudita, hoje baseiam seu governo na sharia, as leis e os ensinamentos corânicos, eles próprios sujeitos a debate e interpretação. Outros, como Malásia e Jordânia, combinam esses princípios de justiça tradicionais com formas mais modernas de governo e sociedade.

Para a maioria dos 1,3 bilhão de muçulmanos, o Islã não é um sistema político. É um modo de vida, uma disciplina baseada em ver o mundo com os olhos da fé. “O Islã me deu algo que estava faltando em minha vida”, conta Jennifer Calvo, de Washington, D.C. Ela tem 28 anos e parece ter saído de um quadro de Botticelli, com traços aquilinos e deslumbrantes olhos azuis, destacados por um lenço branco na cabeça meticulosamente preso dentro de sua túnica longa até os pés. Jennifer foi criada como católica e é enfermeira com formação universitária. “Eu ficava deprimida demais tentando me moldar à nossa cultura insana e à sua imagem de como deve ser uma mulher, com a ênfase que damos à boa aparência – cabelos, maquiagem, roupas – e com nossa avidez por bens materiais. Isso fazia com que me sentisse vazia o tempo todo”, resume ela.

Dois anos atrás, como muitas pessoas têm feito há 1,4 mil anos, Jennifer tornou-se muçulmana simplesmente proferindo as palavras: “La ilaha illa Allah, Mohammad rasul Allah” (Não há Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta). “Agora tudo é bem mais simples”, declara Jennifer. “Somos só eu e Deus. Pela primeira vez na vida, estou em paz.” Para ela e para a maioria dos seguidores do islamismo na Terra, é esse o sentimento básico transmitido pelos melódicos chamados diários à oração. Ajoelhar-se diante de Deus cinco vezes por dia, em uníssono, voltados para Meca de onde quer que estejam. Assim eles encontram a sua paz.

Fonte da matéria: National Geographic EDIÇÃO 21/JANEIRO DE 2002