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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A negritude de Lampião



Em algumas regiões do nordeste brasileiro, era raro ver-se uma pessoa da cor negra. Regiões essas em que a miscigenação entre brancos, índios e negros constituiu-se muito pouco a base de suas sociedades. Foi por isso que levantou-se a questão de saber se Virgulino Ferreira, o Lampião, era de mestiçagem negra.

Muitas narrativas biográficas como por exemplo, a do padre Frederico Bezerra Maciel, entre outros, mostram o horror manifestado por Lampião à simples menção de uma origem negra. Também alguns autores, transcrevendo o que ouviram de pessoas que o conheceram, que ele tinha a pele mais escura que seus irmãos. Será que é isso que as fotos nos mostram?

Mas não é isso que vemos em fotografias e no filme e fotos de Abraão Benjamim Botto. O que as fotografias, entretanto, deixam transparecer era a pele morena que era igual à maioria de seus cabras e dos próprios irmãos. 

Um dos cabras de Lampião, Sabino, que era um dos lugar-tenentes mais próximos dele, era negro e que, no momento da entrada triunfal de seu chefe acompanhado de suas tropas em Juazeiro, em 1926, se recusou terminantemente a deixar-se fotografar. 

Talvez ter se recusado pela consciência do perigo que representa a divulgação de um rosto quando se sabe procurado por todas as forças policiais, mas por mais incrível que se possa imaginar, poderia ser um complexo por ser negro e achar que fotografia só pudesse ser privilégio dos brancos. 

Numa discussão que Lampião teria tido em 1921, na região de Vila Bela, com Optato Gueiros, oficial de uma Força Volante, conforme seus livro "Lampeão: memórias de um oficial ex-comandante de fôrças volantes" ele, Lampião, teria afirmado: "...eu não nasci para esta vida de cangaceiro. Falo com franqueza, se não houvesse nego na policia prá manobrar com a gente, eu ainda iria ser soldado."

E continua Optato Gueiros, relatando uma conversa entre eles: 

— Compadre Virgulino, atalha Sebastião, tu não és preto? — Não, diz António Ferreira, ele não é preto, é moreno cor de canela. 

— Sai-te Antônio, observou Lampião, tira lá essa "cor de canela" que eu não sou mulhé. 

— É mesmo, acode Sebastião, esse negócio de "côr de canela" não é prá homem; ele é moreno luscofusco. [...] 

Notei que ao findar esta narrativa, transpareciam no semblante do bandido visíveis sinais de cólera e mal estar. O olho direito, defeituoso por um estrabismo esquisito, conservava-se aberto quando estava de bom humor; agora fechava-se, dando-lhe um aspecto de ferocidade repugnante e bruscamente, dirigiu-se a Sebastião e disse: 

— Esta é a hora, compadre. O suor já esfriou demais, estou com frio; vamos andá para esquentá. [...J. 

Depois a dona da casa pergunta qual, dentre os cangaceiros, se chama Lampião. Seu irmão, dirigindo o cano de seu fuzil para o rosto de Lampião, respondeu: "— Oi ele aqui, mas não alumia, é danado de escuro". 

No livro de Elise Grunspan-Jasmin "Lampião, senhor do sertão" a autora levanta uma linha de raciocínio a respeito dessa passagem do livro de Optato Gueiro quando diz: 

"Poder-se-ia discorrer ao infinito sobre essa passagem. Lampião recusa categoricamente ser considerado um negro. Ter um caráter feminino (cor de canela) traz, é claro, prejuízo à sua virilidade, mas ser equiparado aos negros equivale a ser rebaixado, humilhado social e humanamente. 

Ele acusa os negros de impedirem sua reinserção na sociedade a que pertence e nega-se a ser subalterno de indivíduos a quem considera inferiores. Percebe-se também, nessa passagem, o quanto a definição da cor da pele de Lampião suscita problemas para os que o cercam e o quanto cada termo empregado tem seu valor metafórico duplicado. 

À negrura da pele parece responder fatalmente a negrura da alma, condenando o negro ao inferno sem alternativa possível: ele é "danado de escuro", dirá o irmão de Lampião de maneira bastante ambígua. Aliás, Lampião detestava os negros e os associava ao diabo: "Negro não é gente", teria ele dito; "é a imagem do cão"

Vemos dessa forma que Lampião não possuía intolerância aos negros, pois em seu grupo, existiam negros e com patente de lugar-tenente, mas o racismo e o preconceito ele realmente tinha. 

Esses são problemas que desafiam a sociedade, trazendo à tona duas perguntas fundamentais - Por que as pessoas manifestam intolerância e preconceito diante daqueles que julgam diferentes? Por que uma pessoa vítima do preconceito, inclusive por racismo, pode vir também a discriminar? 

'Racismo, preconceito e intolerância' é um livro que traz explicações sobre as diversas formas de discriminação e esclarecimentos sobre conceitos como xenofobia, anti-racismo, etnocentrismo e ação afirmativa, entre outros. 

Nessa obra os autores discutem três casos de racismo e discriminação amplamente divulgados pela imprensa brasileira nos últimos anos, mostrando que é possível promover o respeito e a tolerância em relação ao outro por meio do apelo à justiça. Mas "justiça" naquela época de Lampião quase não existia.