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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Do cangaço para a passarela


O artesão Espedito Velozo de Carvalho, 74 anos, cresceu ouvindo uma história curiosa do pai, um vaqueiro de Inhamuns, sertão cearense, conhecido pelas selas, chapéus e gibões de couro que costurava. Certa noite, ele trabalhava sob um alpendre iluminado por uma lamparina quando um “cabra” surgiu da escuridão e disse:
- Seu Raimundo, o senhor faz umas selas tão bonitas. Se eu trouxer o modelo de uma alpercata (sandália), o senhor faz?
- Rapaz, eu não sou bom nisso não, respondeu ele, tentando fugir do pedido.
O visitante misterioso insistiu um pouco mais. Tirou do bolso um papel todo “escangalhado” e mostrou. Era o modelo de uma sandália de solado quadrado, do tipo que quando a pegada fica no chão não dá pra saber para qual lado a pessoa vai. Pediu que fosse feito no número 39 e, diante da concordância um tanto atônita de seu Raimundo, disse que voltaria depois de 29 dias para buscar o calçado.
O pai de Espedito começou, então, a trabalhar. No prazo marcado, o visitante chegou e, contente com o resultado, encomendou novas mercadorias. Antes de ir embora, perguntou se seu Raimundo sabia para quem era a sandália:
- Rapaz, é pra você mesmo. Foi você quem me pediu.
- Pois não é não. É para o coronel Virgulino. 

A descoberta de que a encomenda era para Lampião, o temido rei do cangaço, deixou seu Raimundo apavorado. Tão apavorado que ele nem cobrou pelo serviço. “Meu pai foi se tremendo todo. Ficou até com vontade de fechar as portas e correr. Naquele tempo, todo mundo tinha medo de encontrar com Lampião”, diverte-se Espedito.
A família, unida em uma associação com quase 30 pessoas, que formam o corpo de funcionários, produz, entre 200 e 300 pares de sandálias por mês
Ele tinha apenas oito anos quando ouvia o pai contar o relato na oficina, agora na cidade de Nova Olinda, também no Ceará, onde a família vive até hoje. Muitos anos depois, o relato voltaria de sua lembrança, marcado pela chegada de uma mudança radical na vida de toda a família.
O artesão é herdeiro de uma longa linhagem de costureiros de selas de montar iniciada pelo bisavô, que pelo trabalho ficou conhecido como Antônio Seleiro, “sobrenome” que passaria adiante para o filho, Gonçalves Seleiro, e para o neto, Raimundo Seleiro, pai de Espedito Seleiro.
Seu Raimundo morreu em 1971 e, aos 31 anos, o primogênito se viu, de uma hora para outra, responsável pelo sustento dos irmãos, todos bem mais novos, e dos próprios filhos. Naquela época, a família só fabricava as peças para os vaqueiros e, a cada ano, as vendas diminuíam, afetadas pelo fim da tradição da profissão.
Até que um dia, no início da década de 1980, Alemberg Quindins, diretor da Fundação Casagrande, uma premiada organização educativa de Nova Olinda que capacita crianças da região, entrou na oficina com um desafio. Trazia nas mãos uma sandália que foi usada por Lampião e estava em exposição, ao lado de outras peças sobre o cangaço, na Fundação. Perguntou, então, se Espedito conseguia reproduzir o modelo, mas com detalhes, um tipo de rococó nordestino que ele já fazia nos gibões e nas selas.
O artesão se lembrou, então, da história contada pelo pai e, mesmo nunca tendo feito sandálias antes, topou. “Fiz uma bem mais bonita porque sou mais caprichoso”, brinca. O solado era normal, sem o formato quadrado que dificulta o andar. Alemberg gostou e Espedito viu a oportunidade de um novo negócio. Passou a produzir as sandálias de Lampião. A situação financeira melhorou, mas as vendas não decolaram porque sandálias de couro cru já existiam aos montes no mercado. “Eu chegava nas lojas e o povo dizia: ‘Já tenho. Só quero se for bem baratinha’. Eu me obrigava a vender porque precisava, mas não compensava nada, era uma mixaria.”
Desgostoso com o trabalho, mas sem querer desistir, ele resolveu que não venderia mais peças iguais as dos outros. Foi dormir pensando. Levantou às 4h do dia seguinte, começou a desenhar e decidiu que dali em diante só faria sandálias coloridas. Costurou, então, um monte de sapatos e levou para uma “loja bonita, grande”, de Juazeiro do Norte, cidade vizinha a Nova Olinda. Chegou e disse:
- Seu Pedro, trouxe doze pares de sapato para você comprar.
O dono da loja nem abriu a caixa e recusou a oferta.
- Aqui tá tudo cheio de sapato. Não vou comprar, não.
Espedito insistiu:
- Mas, homem, tem um monte de sapato, mas nenhum é igual ao meu.
Seu Pedro olhou meio por cima e, com um certo descaso, disse para ele deixar a caixa num canto, que se vendesse alguma coisa daria o dinheiro para o seleiro. “Era um dia de segunda-feira. Deixei a caixa de sapato lá e peguei um, que estava no capricho mesmo, e botei na tampa. Combinei de voltar na outra segunda-feira para ver se tinha vendido e, se não, pegar os sapatos de volta. Fui embora desgostoso porque chegar em casa sem dinheiro é ruim, né?, lembra ele.
Durante a semana, continuou a produção dos pares coloridos com o que restou do couro que tinha. Até que na segunda-feira, voltou na loja.
- Pronto, seu Pedro, vim buscar meu sapato.
- Não, rapaz, pois eu vendi foi tudo. E quero mais 50 pares, respondeu o comerciante.
Com a pequena oficina, ele não conseguiu atender o pedido, mas foi vendendo para seu Pedro as que conseguia fazer. Foi nesse período que as sandálias multicoloridas de Lampião começaram a fazer sucesso. Alemberg também ajudou a promover o produto, calçando os sapatos em entrevistas para a televisão. Artistas começaram a procurar os calçados e Espedito resolveu diversificar: começou a produzir sandálias da Maria Bonita, um modelo mais delicado em homenagem à mulher do rei do cangaço, bolsas, carteiras, cintos, botas, cadeiras, molduras para espelhos e até luminárias, tudo no couro colorido vivo que virou a marca registrada do seleiro.
A família, unida em uma associação com 22 pessoas que formam o corpo de funcionários, produz entre 200 e 300 pares de sandálias por mês.
Em 2006, ele foi convidado para fazer os calçados que a grife Cavalera usou no desfile de verão da São Paulo Fashion Week e causou burburinho no mundo da moda. Virou queridinho também entre os figurinistas de novelas e filmes, onde se tornou referência quando se retrata o cangaço. Às vezes, um ou outro artista famoso aparece de surpresa na oficina e a loja que ele abriu do outro lado da rua para organizar as vendas virou parada obrigatória dos guias turísticos da região, que trazem carros cheios, inclusive com estrangeiros.
O sucesso, no entanto, não o deslumbra. Apesar das reiteradas propostas que recebeu para montar uma fábrica de sapatos, ele não quer abandonar a manufatura. Muito menos Nova Olinda. No próximo mês de outubro, Espedito inaugurará em um anexo da oficina o Museu do Couro, que contará a história dos vaqueiros, da cultura nordestina e das peças usadas na região, incluindo a primeira sandália feita para Alemberg e a máquina de costura manual, que era do avó dele, onde o pai teria feito a peça para Lampião.
“O que eu acho bom na vida é isso aqui. É por isso que eu tenho 74 anos, mas só tenho mesmo é 18. Porque eu só faço o que eu gosto. Se der para eu ganhar 1.000 reais eu ganho. Se não der, eu ganho 100. Eu quero ficar do jeito que eu comecei. A vida só é boa quando você se conforma com ela.”
Artigo escrito por Talita Bedinelli para o El País