Raul Meneleu
Até os homens mais bárbaros da
história da humanidade tinham religiosidade. Talvez não fossem homens frequentadores
de templos, mas detinham em suas mentes crença em situações com relações de
causa e efeito que não se podem mostrar de forma racional ou empírica. Tinham
alguma forma de superstição. Alguns estudiosos da Bíblia afirmam que a
superstição infringe as leis ali descritas e está portanto em contradição com
sua religião. No entanto a própria Bíblia aceita as superstições do povo judeu,
uma vez que é um texto produzido por aquele ambiente cultural. Entre elas estão
a questão da pureza no comportamento sexual, a recusa em consumir alimentos
considerados impuros, o não contato com cadáveres, o próprio entendimento do
que é pecado, a observância do sábado entre outras. Muitos destes conceitos
culturais foram herdados pelo cristianismo que assimilou a crença em demônios,
no juízo final, no arrebatamento ao final dos tempos.
Nesse pequeno artigo,
faremos uma análise comentada das páginas 28 a 34 do livro de Nertan Macêdo “Lampião”,
onde disserta sobre a religiosidade do Capitão Virgulino onde diz que tal religiosidade
era a do “... sertão, a das Missões antigas, um catolicismo velho, feito de
lendas, superstições, ladainhas, rosários, encomendações, ofícios de trevas,
horas marianas, missões abreviadas e Lunário Perpétuo. A mesma dos seus
antepassados que oravam no meio da noite e ao meio-dia, horas em que o Diabo se
solta para perder o mundo. Sentimento de fundas raízes, no espaço e no tempo.
No seu viver de perseguido, rezou sempre.”
A fé se manifesta de várias
maneiras e pode estar vinculada a questões emocionais tais como reconforto em
momentos de aflição desprovidos de sinais de futura melhora, relacionando-se
com esperança e a motivos considerados moralmente nobres ou estritamente
pessoais e egoístas. Pode estar direcionada a alguma razão específica que a
justifique ou mesmo existir sem razão definida. E, também não carece
absolutamente de qualquer tipo de argumento racional.
Em referência continuando nas
palavras do escritor Nertan Macêdo "Quando o sol se empina e lhe vai em
raios verticais sobre a cabeça, a sombra minguada aos pés, nos pousos, nas
estradas, nos combates, ele verga os joelhos, genuflexo, no chão duro, pende a
cabeça humilhada e, contrito, com a grande mão ossuda e escura a bater no
peito, reza com fervor. Os companheiros, em torno, fitam-no cheios de respeito
estranho. Se a cavalo perlustra erma
estrada, quando o seu relógio marca
as doze horas, ele se
apeia e, genuflexo na areia quente do caminho, curva a cabeça a se comunicar com as misteriosas forças do
Além. Mesmo no mais renhido tiroteio, abandona o fuzil e suplica a não sei que
santos ou diabos lhe continuem a conservar o corpo fechado".
Era um homem cismado e mantinha
suas crenças pessoais, talvez adquiridas em sua formação religiosa, assim como
tantos sertanejos possuíam. Era também sectário enquanto não aceitava a
religião africana. Dentre as muitas estórias do Capitão, conta-se que, numa
noite, quando descansava da caminhada, ouviu toadas de candomblé no meio do
mato. Não via aquela a sua religião. Aproximou-se de mansinho, surpreendendo
alguns fiéis em torno de um pai-de-santo, um negro. Espantou-se, obrigando o
feiticeiro a comer a galinha sacrificada, expulsou-os dos seus domínios, em
nome da Virgem Maria e do Padre Cícero Romão Batista. No entanto, de uma feita,
na povoação de Novo Amparo, arranchou-se numa casinha. Enquanto comia o almoço,
fez arder nos cantos da sala quatro velas. Acreditava nas rezas-fortes que
tornam o corpo imune às balas e perigos. Quem sabe se isso é verdade? Tantas
estórias existem da vida do Capitão!
“A formação da gente sertaneja é
baseada no início do descobrimento do Brasil e o Diabo veio nas caravelas de
Cabral, trazendo o frade capelão Henrique de Coimbra. Com o frade desembarcou
no Brasil um personagem até então desconhecido dos nativos — o Diabo — naquele
longínquo ano de 1500 do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Numerosos
disfarces, Lúcifer, Asmodeu ou que outro nome tenha, a réplica de Deus
distribuiu-se pelos litorais da nova terra, repartindo-se, mais tarde, entre os
bandos de penetração, com os quais chegou aos sertões do nordeste, nos tempos
do povoamento. Conheceram-no, escamoso, repelente, indesejável, os índios e os
negros, pela pregação terrificante dos missionários europeus, pela tradição
verbal dos colonizadores lusitanos. Daí concluir Luiz da Câmara Cascudo: o
Diabo brasileiro é o velho demônio português, "com os mesmos processos,
seduções e pavores".
Oficialmente, todavia, a presença do Cão no Brasil só
foi reconhecida e proclamada muitos anos depois da Descoberta. Cascudo, com razão,
assinala tal reconhecimento e proclamação oficiais, no “Documentário da
Visitação do Santo Ofício” — dois volumes da Bahia, um de Pernambuco —, os
quais registram as comunicações do Tinhoso com amigas bruxas — "algumas
sabendo até criá-los em vidrinhos, como filhinhos, tornando-se o familiar,
espécie de diabinho doméstico, servo da feiticeira".
No país de Lampião, a figura
clássica, a imagem tradicional do Diabo é mesmo aquela descrita pelo escritor
potiguar: negra, magra, chifruda, de rabo, casco, espeto, assumindo tanto as
formas de um bode, como as de um morcego, as de um porco, as de uma mosca, de
um cachorro grande ou de um gato. Só não pode assumir, no universo nordestino,
as formas dos animais abençoados, historicamente ligados ao nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo: o boi, o jumento, a ovelha, o galo.
Lampião sabia que a hora da
aparição do Diabo era na meia-noite, pelas encruzilhadas desertas. Sabia que,
para afugentá-lo, de nada valiam os rifles e punhais. As armas eram outras: a
cruz, a oração, a água benta. Ruim e perverso se lhe afigurava o Tinhoso. Era ele
quem procurava arrebanhar as almas do outro mundo às profundas do seu reino
abismal, o que obrigava, também, a vigília constante de São Miguel Arcanjo,
guardião celeste, juntamente com Nossa Senhora e todos os Santos do Céu.
Os avós de Lampião conheciam o
Diabo de longa data. O Diabo que tem, em Portugal e no Brasil, tantos nomes
quantas são as suas ciladas: tanso, carocho, enguiço, azango, onzoneiro,
diacho, nica, careca, tição negro, coisa má, caipira, mafarrico, demo, malasartes,
tatro, trado, porco sujo imundo, cão tinhoso, tisnado, sarapelho, fusco,
cornudo, barzebu, satanás, mulambudo, esmulambado, cambito, dedo, moleque,
fute, pé de meia, dêbo, pé prêto, pé de pato, futrico, figura, bode, capa
verde, gato prêto, malino, sapucaio, pêro botelho, bicho, rapaz, tinhoso,
capeta, capiroto, coxo, coisa suja, maioral, ele, maldito, demo, cafute, droga,
excomungado drale, bode sujo, inimigo, mofino, maldito não sei quê diga, tição,
taneco, temba, sarnento, encapetado, dianho...
Alguns títulos do Capiroto soam
como apelidos de cangaceiros que as diabruras do cangaço apareciam aos olhos do
povo nordestino como artes do Demo. Lampião, ele próprio, encarnava segundo alguns sertanejos, o Demônio em figura de gente.
Gustavo Barroso sintetiza bem a
imagem do Tinhoso na alma sertaneja, com as seguintes palavras: “Geralmente, o demônio sertanejo, como o de
todos os povos, é criado a sua imagem e semelhança. Anda, por isso, encourado
como os vaqueiros, monta a cavalo, é especialista em velhacadas de cigano,
gosta de cachaça, come picadinho de bode com jerimum, dança nos sambas, campeia
o gado, faz a côrte às moças, e desaparece sempre com um estouro e um fedor
terrível de enxofre ou de chifre queimado.”
O sertanejo herdou do português a
velha crença nas chamadas horas abertas, meio-dia, meia-noite, fim da noite,
fim do dia. Tão forte é a presença do Diabo na vida do sertão que até em sonho
cangaceiro tinha mêdo dele. Assim foi o
Capitão Lampião. Chei de crenças e pavores herdados nas heranças missionárias
dos jesuítas, onde escreve Euclides da Cunha, mostrando que "O povoamento do Brasil fêz-se, intenso,
com dom João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio mental,
quando todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo
peninsular".
Nertan Macêdo liricamente disserta “Esse
catolicismo peninsular transplantou o Diabo ao mundo da solidão sertaneja e,
anjo caído nas trevas, entrou de rijo na poesia cantadoresca, com suas gestas
de bichos e cangaceiros. Afirmou-se como um participante ativo da ordem moral
dos confinados, do caráter mesmo daquelas gentes, de quem o cronista admirável
escreveu, certa vez: "Caldeadas a índole do colono e a impulsividade do
indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou,
pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente
modificados apenas consoante as novas exigências da vida. E ali estão com as
suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às
tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até ao fanatismo, e o
seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três
séculos..."
Sim, como até hoje, missionários
religiosos com sua autoridade imensa, continuam agora a desenhar em países
atrasados na África e continuam nos rincões sertanejos, principalmente ainda
nos cafundós do nordeste brasileiro, a montar suas teses de domínio da mente
humana, com seus ensinos da imaginação, a figura do Diabo.
No Brasil, as Missões Católicas no
sertão — as Santas Missões, assim como se deu no estado americano do norte, a
California, envolvendo os índios, a derramar suas ladainhas a respeito do diabo
e sua morada o inferno de fogo.
Tudo isso veio a alucinar o
sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o. Conta-nos Nertan Macêdo
que o ilustre sergipano Gilberto Amado, quando menino, no tempo da Guerra de
Canudos, assistiu a uma dessas Missões na sua cidadezinha de Itaporanga da
Ajuda. O relato é admirável: "Os frades engrolavam um vocabulário
restritíssimo. Suas guturais rasgavam os ouvidos. Dom Amando, o chefe, o
maioral, esguio, o nariz adunco, as faces cavernosas, os olhos fundos, tipo de
monge tenebroso, movia-se com algo de espectral e quando, ao deixar a latada na
sombra, chamava o capuz sobre a cabeça e tomava o ar de uma grande ave noturna.”
- Fazia mêdo. Tudo isso era para amedrontar mesmo, pois a forma de trazer o
povo crédulo para os átrios das igrejas era essa e foi aprendida pelos
protestantes, que agora usam esse mesmo método para trazer seus crentes à fé.
Luís Cristóvão dos Santos, cronista
do sertão pernambucano, natural de Pesqueira, conta-nos que ainda menino foi
morar em Custódia, para onde se mudou a família, e que em uma Missão pregada
polo famoso Frei Damião, ouviu o sermão do frade e narra o fato: "A
princípio o taumaturgo. descreveu as delícias do céu, os querubins tocando
harpa e uma nuvem de incenso vagando no azul, entre anjos e santos.
A multidão
ouvia em silêncio, maravilhada e boquiaberta. Então, de repente, o frade mudou.
Sacudiu os braços e soltou a. maldição terrível: — Homens sem Deus, mergulhados
na lama do pecado. Amancebados! Mentirosos! Adúlteros! Arrependei-vos de vossos
pecados. E passou a descrever as torturas do inferno. labaredas subiam, tochas
ardendo, um relógio marcando: Sempre! Sempre! Nunca! Nunca!, que são as horas
da Eternidade. E no meio da fornalha, o suplício do fumaceiro de enxôfre
sufocando tudo.
Aí a multidão se abateu, lábios ciciavam. "Eu pecador, me
confesso a Deus", almas tremendo de pavor, como corpos sacudidos de
maleita. Junto de mim um matuto de Quitimbu tinha os olhos esgazeados. Cheguei
mesmo a ver o suor lhe empastando a fronte morena. Uma velha traçou o xale com
fôrça, cobrindo a cabeça tôda, temendo a baforada do Satanás. E ao meu lado, um
soldado desatou o lenço que trazia ao pescoço, como se a coisa lhe abafasse a
respiração. E, voltando-se para um companheiro, avisou que ia tomar uma
"bicada" pois o cheiro do enxofre estava lhe sufocando a garganta.
Depois frei Damião baixou os braços, serenou a voz. Nunca, na minha vida, vi
silêncio maior. A praça parada, o povo de lábios chumbados, olhos fitos no
frade. Só o vento inocente agitava de leve as bandeirinhas de papel de seda,
que drapejavam acima das cabeças e do fogo do inferno. Então o frade rezou. E a
multidão respondeu, contrita e imóvel, como, se ao invés de milhares de vozes,
ali estivesse apenas uma só pessoa, postada diante do pregador famoso, na hora
aguda do juízo final, prestando contas ao Altíssimo. Aquilo não era Custódia.
Era o vale de Josafá"...
Essa foi a maneira que o sertanejo nordestino foi
catequisado. O Capitão Virgulino Lampião, veio desse meio, onde o domínio
religioso usava o Diabo e por isso a proteção contra ele teria que ser nas
fortes rezas, nos escapulários com papeis escritos e costurados, como se
costurado à alma do suplicante e usuário dos mesmos, fechando seus corpos de
faca e bala, doenças, pobreza, contra injustiças, contra mau-olhado e inveja.
Esse foi e ainda é o sertão de Lampião.