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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Houvesse "Justiça" não haveria Lampião...

 

Esse relato da história de Virgulino Ferreira da Silva, é um relato comum até os dias de hoje, onde infelizmente não progredimos como é desejado por todo homem e toda mulher que vive nesse país. Infelizmente ainda impera o poderio da riqueza, muitas vezes amealhada pela injustiça de alguns ao povo pobre e sofrido, principalmente ainda no sertão dos poderosos e ainda vivos coronéis, vestidos com o manto de políticos.
Foi-nos relatada por um dos maiores estudiosos do cangaço, em especial a Lampião, mostrando-nos que se tivesse havido justiça naquela época, não haveria Lampião. Que não nos enganemos em achar que ele era um herói, ou um bandido. A meu ver era uma mistura desses dois adjetivos, pois quando leio os livros de pesquisadores honestos em expor o cotidiano de lampião e os atores de sua vida, admiro-o pelo senso de justiça e ao mesmo tempo, critico-o pela selvageria e falta de respeito em determinadas ocasiões de sua vida.
Esse é um relato bem próximo da vida de Lampião e como começou o 'emparedamento' para ele tornar-se um fora-da-lei, para que seu principal inimigo, o primeiro, o número um, que começou tudo, completasse a sua vingança. Por mais que se tente desculpar ou mesmo aliviar a inimizade deles, nós poderemos ver que a inveja é a mãe da injustiça e pela história vemos sua perversa perseguição a esta família de pobres trabalhadores, acuados no sertão pernambucano.
Tomemos a pesquisa feita pelo Padre Maciel, autor de uma das maiores obras sobre o cangaceiro. Não irei tecer comentários finais do artigo do Padre Maciel, para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.
E nós neófitos, aprofundemos nosso conhecimento dos fatos pesquisados por 30 anos pelo autor de 'LAMPIÃO, Seu Tempo e Seu Reinado - As Origens' em seu livro Um, da sextologia no capítulo 7: 

ZÉ SATURNINO, O INIMIGO № 1 (1915-1917)
Os atores

Ao pé da Serra Vermelha, distendiam-se, outrora, três fazendas homônimas, que se distinguiam pelo nome de seus proprietários* 1: Serra Vermelha de Manuel Ferreira de Lima, Serra Vermelha de João Nogueira e Serra Vermelha de Cândido Martins José.

A do primeiro crescia nas vistas e se avantajava das mais em toda a ribeira: mais de oitocentas cabeças de gado, criações sem conta, engenho de madeira, moente e corrente, para o fabrico de rapadura. Manuel Ferreira de Lima, vulgo "Ferreira Catendo", era fazendeiro incansável e empreendedor. Comprara muitos chãos aos Pereiras, já em decadência por razões de lutas com os Carvalhos (cfr. cap. 6, Adendo 1, A, 4, b). Evidentes suas qualidades morais de honestidades e honradez. Casou-se em segundas núpcias com D. Joana Lopes, "D. Joaninha", tia pelo lado materno dos irmãos Ferreiras. Vizinhos seus, de um lado - João Nogueira. Homem completamente diferente do primeiro. Soberbo e ambicioso: queria Ser o maior fazendeiro daquela ribeira e com pretensões à chefança política da mesma. Daí por que, criminoso, mandara matar o Padre Pereira que lhe frustrara os intentos (cfr. cap. 4 e 5). E se mordia de inveja e despeito diante da crescente prosperidade de seu vizinho, com quem jamais pôde brigar, dado o bom senso e tenência do próprio Manuel Ferreira de Lima.
* A fazenda Serra Vermelha, de Manuel Ferreira de Lima, media 400 braças de largura por uma légua e meia de comprimento. As fazendas Serra Vermelha, de João Nogueira (400 braças x 11/2 légua), a Pedreira, de Saturnino Alves de Barros (400 braças x 1 légua), contavam para mais de mil cabeças de gado. José Ferreira possuía na Ingazeira apenas umas trinta reses. Seu forte era a elmocrevia.
É de se notar que nessa inveja e nesse despeito de João Nogueira se encontram as raízes ocultas que estimularam Zé Saturnino a abrir questão e fazer sustança dela com os Ferreiras. O vizinho do outro lado, ao nascente — José Ferreira da Silva, ou simplesmente "Zé Ferreira", da fazenda Ingazeira. Com trabalho e esforço seu e a ajuda de Manuel Ferreira de Lima, botou nela prosperação: umas trinta reses, alguns animais, abastança de miunça, roçados de algodão-mocó e de legume, e sobretudo uma tropa de doze fortes burros, bem arreados, de almocrevar. Tudo isso dava mantença, aumentação e melhoração a uma família de onze pessoas, marido, mulher e nove filhos.

Pegada com a Ingazeira, pelo lado do norte, a fazenda Pedreira, acrescida com a fazenda Maniçoba. Pertencera ao finado Saturnino Alves de Barros, ou "Saturnino da Pedreira", casado com D. Alexandrina, "D. Xanda". De seus dois filhos, um se tornaria célebre — José Alves de Barros, conhecido por Zé Saturnino.* Alto, magro, esperto, trabalhador. Mas, segundo testemunhos fidedignos de familiares seus e de quem com ele lidaram, era "prepotente e arreliado", "gostava de provocar e afrontar os mais", "de pisar no cangote". "De maus bofes", era "odiento e vingativo", "jamais lhe conseguindo a própria mãe moderação nas contendas e dificuldades mais comuns". Inda hoje, encanecido e pisado pelo tempo e pelas lutas, por remorsos e pavores, se trai no ódio sopitado e insatisfeito contra os irmãos Ferreiras, apesar de mais de trinta anos já mortos! Indubitavelmente, servindo também de instrumento à inveja e ambição de seu sogro, João Nogueira, foi ele, como se verá, o causador da transformação do vaqueiro-almocreve Virgulino no cangaceiro Lampião.

* Rodrigues de Carvalho, natural de Carnaíba, na ribeira do Pajeú, no seu livro "Serrote Preto", p. 99, escreve: "José Saturnino era um indivíduo de instinto perverso, espírito tacanho... Desde que viu o vizinho (José Ferreira da Silva) prosperando, não pôde mais esconder o seu despeito, demonstrando a propósito de tudo a mais sórdida inveja". Nertan Macedo, em "Capitão Virgulino Ferreira Lampião", primeira edição, p. 160, transcrevendo o trecho supramencionado do "Serrote Preto", endossa, com muitas testemunhas de vista e contemporâneas, o conceito geral da personalidade negativa de Zé Saturnino, que José inhamuns chama de "maldito homem". Cedo adquiriu Zé Saturnino o apelido de Zé Muié, confirmado por seu cunhado Vicente Moreira (cfr. cap. 10, Diário de Guerra e nota 14), no episódio da Favela, em Floresta (cfr. cap. 32) e pela voz geral de soldados, de cangaceiros e até de autoridades, segundo Davi Jurubeba e outros entrevistados.
A afoiteza de Zé Saturnino estava antes na cobertura que lhe davam os cabras que possuía: Zé Guedes e seu irmão Antônio Guedes, vulgo "Batoque", Tibúrcio, os três Beneditos (Olímpio, Manuel e José), Zé Caboclo... e mais que todos, os dois, Zé Cipriano e Vicente Moreira, cangaceiros (vindo o primeiro do grupo de Sinhô Pereira) e, depois, cunhados seus pelo casamento com suas irmãs, respectivamente Sinhá e Mariquinha.

O drama
A questão, começada e sustentada por Zé Saturnino contra 'os irmãos Ferreiras, não se originou de uma causa única, de um "chocalho", como simploriamente houve quem dissesse. Mas de uma longa série de causas ou co-causas que se encadearam num entrecho crescente até o rompimento definitivo, com suas funestas consequências para toda a região do Nordeste.

Já conhecida a causa oculta, íntima e estimulante — a inveja e ambição de João Nogueira. Resta saber agora as causas manifestas, ou melhor especifi-cando:
— Qual a causa primeira?
— Quais as causas subsequentes?
— Qual a causa determinante?

É o que se verá daqui por diante, a modo de três atos apresentados dentro de uma seqüência cronológica. De primeiro, eram muito cordiais as relações entre os Ferreiras e Zé Saturnino. Chegou mesmo José Ferreira a escolher D. Xanda para madrinha de apresentação no batizado de Virgulino. E, quando rapazes, Virgulino e Zé Saturnino compareceram juntos, em São Francisco, como testemunhas do casamento de Amélia (filha de Salvador) com o moço Emídio Germano, feitor das terras de Manuel Ferreira de Lima.
Cercas das divisas
Infalivelmente zonas de atrito os limites de terras. Entre nações por causa de contrabandos, entre propriedades por invasão de animais, até de quintal- para quintal por qualquer nada.

O arame farpado, fator de direitos (delimitando as propriedades), do segurança (evitando depredações e estragos) e de paz social, era desconhecido. Apareceu no sertão somente a partir de 1920. Antes, as propriedades eram cercadas somente com paus e varas. Uso, aliás, continuado até os dias que são hoje pela facilidade de matéria-prima disponível no próprio terreno e economia de mão-de-obra.
Na variedade da tessitura dos tipos de cercas*, condicionados à segurança e duração requeridas, mostram-se os cerqueiros extremamente hábeis, exibindo interessante arte rústica nos quadros rurais da paisagem sertaneja. Com o tempo, porém, a madeira, ressequida ou apodrecida, torna a cerca vulnerável, especialmente aos terríveis caprinos. O bode fura, a ovelha pe-netra, a rês derruba, o animal entra, destiorando semeaduras e roçados. Coisas justificáveis por parte dos proprietários da Ingazeira e Pedreira, compreensivos e amigos. E, no caso de sério prejuízo, as compensações se realizavam dentro do clímax das boas relações existentes. "Oxente! O diaga é bicho. Ninguém pode dá juízo a bicho..."

* Há vários tipos de cercas: — de pau-a-pique: vertical, de madeira grossa ou varas; — de faxina: varas finas e flexíveis entrecruzando com outras mais grossas; — deitada: com varas horizontais; — de ramo: horizontal entrelaçada de garranchos; — de pedra: onde abundam pedras soltas; — meia-cerca: metade inferior de pau-a-pique ou pedra, completada com arame farpado; — de arame: arame farpado. O arame farpado foi introduzido no sertão em 1920. Dado o seu custo, não é acessível senão a bolsas privilegiadas. Faz-se, essa última cerca, de nove arames para não deixar passar nada. Os primeiros quatro arames de 15 em 15 centímetros, para não passar bode, ovelha e miunça; o quinto arame com 20 centímetros; o sexto com 25; e os três últimos a 30 centímetros para o gado não meter a cabeça. Usam-se para estacas de sustento do arame esticado: aroeira, angico, catinga de porco, imburana... Sousa Barros, no seu livro "Cercas Sertanejas", apresenta 25 tipos.
Origem da questão: um romance de amor (1915)

O velho Terto de Inajá costumava contar*, na sua feitura de sertanejo probo, que fora uma questão de amor que dera origem às divergências entre os Ferreiras e Zé Saturnino. Quando no viço de seus dezessete anos, gostara Virgulino de uma jovem, Santina Lopes da Silva, a quem chamaria — "sua prenda querida" e "flor mimosa do sertão", em famosos versos de fina sensibilidade amorosa (cfr. cap. 6). O porém da história foi ter aparecido uma avança, da mesma idade de Virgulino e parente de Zé Saturnino, o qual se tomou de paixão encegueirada pela mesma donzela, apesar de não correspondido e até mesmo de ter levado vários cortes de repulsão. Num dia de sol ipiaça, arado pela roedeira do ciúme, foi ele esperar Virgulino, que ia desprecatado em caminho do bebedouro da fazenda. Todo raposeiro, fez-lhe perguntas ciumentas e, por que tal e por que vira, arrepiou-se amolestado para dar-lhe. Não foi de sorte nem de sustança na empreitada, apanhou muito de incoiar de queda e de arroxear no tapa-olho.
Por esse motivo, ficaram os parentes do moço apanhado (e provavelmente o próprio Zé Saturnino) queixosos, ressentidos, abafados. Os recalques nos sertanejos se acentuam, com o isolamento em que vivem. Seu campo de imagens é- reduzido ao pequeno e invariável mundo que os cerca. Donde a facilidade de fixação de lembranças, principalmente de fatos quentes. Não esquecem, seja o bem, seja o mal. De uma faúlha tudo pode ser fatível: Mesmo de dentro da cinza pode gerarem incêndios. Questão apenas de oportunidade, somente.
A imagem dessa jovem de tal modo se fixou durante quinze anos no coração de Virgulino que jamais, todo esse tempo, amou nenhuma das tantas mulheres, machão que ele era, com quem palpitava até deixando filhos. Somente em 1930 iria encontrar em Maria Bonita a réplica de sua Santina numa identidade de beleza com a imagem estereotipada no seu espírito que o desconcertaria no momento da primeira impressão. Para se ligar a ela chegou a modificar a estrutura do cangaço! E dedicou-lhe sinceramente fidelidade de amor a toda a prova (cfr. cap. 45).
* Esse fato foi também relatado por Pedro Rosa de Morais, conhecedor da vida de Lampião, o qual se hospedava em sua casa toda a vez que passava pelo Espírito Santo. Nasceu ele, Pedro, nessa vila, criou-se em Olho D'água do Coxo, situada perto da fazenda Beldroega. Assassinado, em dias do carnaval, no mês de fevereiro de 1938, em Pão de Açúcar, AL.

Prisão do morador de Zé Saturnino
O tio materno dos irmãos Ferreiras, Manuel Lopes, ainda moço e muito disposto, fora nomeado inspetor de quarteirão, cargo equivalente hoje ao de comissário de polícia. Autoridade sem vantagem financeira. Estendia-se sua jurisdição pelas fazendas daquela ribeira: Matinha, Pedreira, São Miguel... Sua função: dirimir questões de terra, resolver problemas por causa de cacimbas, de cerca fora dos limites... E, também, repressiva contra malfeitores, principalmente ladrões de bode, apelidados de "onças de dois pés". Vez por outra, saía em diligência, sempre por iniciativa própria, em face de denúncias, ou para proteção de sua propriedade e família. Não dispondo de milicianos, fazia-se acompanhar de um ou mais sobrinhos seus, armados de rifles calibre 44, muito comuns. Corria o mês de agosto dessa era de 15 de grande seca. Um solão brabo vigorando no céu escampo, diáfano, sem azul, esturricando as cacimbas e secando os pés de pau. Os bichos berrando de desespero nos apertados da fome e da morte.

Levas de retirantes, esmulambados e famélicos, no arrasto penoso da vida, varando o sertão, sem destino e sem um derréis, o coração desarriado das esperanças e o olhar parado ante a visagem apavorante da seca. Começaram os Ferreiras a estranhar o sumiço danado de bodes e cabras. Supondo tratar-se, não de necessitados por fome, que eram sempre acolhidos e atendidos, mas de aproveitadores do alheio, Manuel Lopes, valendo-se de sua autoridade e na qualidade de também prejudicado, resolveu, acompanhado de seu sobrinho Virgulino e dois cabras, fazer uma diligência à cata dos possíveis ladrões e dos caprinos.
Após infrutíferas batidas pelas redondezas e atendendo a várias denúncias de outros também prejudicados, incursionou pela fazenda Pedreira, dando um cerco num grupo de casebres de moradores de Zé Saturnino. Na de Zé Caboclo, depois de acurada busca, Virgulino deu de fé que a terra, sob um enorme pilão de braúna, na cozinha, estava revolvida de fresco. Retirando, com um ferro de cova, ou cavador, as primeiras camadas de terra, encontrou grande quantidade de peles de bode enterradas, verificando pelo sinal das orelhas tratar-se de animais desaparecidos da sua fazenda e pertencentes a seu pai e a seu tio.
Manuel Lopes prendeu Zé Caboclo e o negro criminoso, de nariz achamurrado, chamado Tibúrcio* indigitados responsáveis, conduzindo-os sob escolta para a Ingazeira. Onde os manteve detidos e amarrados no tronco por um ou dois dias, ao cabo do que, a pedido de José Ferreira, os mandou embora, advertindo-os de que, no caso de fazerem por onde, de reincidência, tomaria medidas severas.
* Esso negro Tibúrcio, mais tarde, juntamente com outros dois, Batoque e Zé Guedes, todos os três moradores de Zé Saturnino, foram à fazenda Serra Vermelha, da viúva 1), Joaninha Ferreira, e roubaram o paiol de milho, juntas de bois mansos, queijos... o lovarion para a fazenda Pedreira! (Lampião deu fim a ele — cfr. cap. 20).

Com dias, numa feira, em Vila Bela, comunicou Manuel Lopes, pessoalmente, o ocorrido a Zé Saturnino e pediu-lhe expulsasse elementos tão indesejáveis. Zé Saturnino manifestou, de logo, o seu desagrado em torno do acontecido, negou expulsar seus "homens de confiança", achando se efetivara uma "invasão indébita" de sua propriedade com prisão de moradores sem sua licença; coisa que implicava em grave ofensa à sua reputação e à sua honra. Manuel Lopes recusou essa interpretação errônea. dos fatos, havendo entre os dois forte alteração, terminando, porém, sem maiores consequências em face da intervenção de pessoas amigas. Todos em casa dos Ferreiras, no entanto, acharam que o incidente não estava encerrado.
Realmente, desse fato inicial outros foram se sucedendo e somando até chegar a resultados trágicos. Socorrendo-se da política, conseguira Zé Saturnino a demissão de Manuel Lopes do cargo de inspetor de quarteirão. E, em consequência da falta de autoridade, estabeleceu-se, para começar, a má vizinhança. De quando em vez, apareciam cabras surradas, bodes de orelhas cortadas, ovelhas com perna quebrada, carneiros de roncolho....

Era o bicho de uma propriedade penetrar na outra adversa e acontecer tudo isso, de parte a parte; sem que ninguém visse, mas se sabia e adivinhava quem.
A primeira briga

A 8 de setembro, véspera da tradicional festa da Padroeira de Vila Bela, Nossa Senhora da Penha, todo engangento desprecatado, fora Antônio Ferreira, no seu esquiparador melado de estampa, buscar um parelho que mandara costurar por Anízia Novais (casada com João Araújo Cavalcanti, conhecida por Anízia da Ipueira, sítio localizado na mel sido do caminho entre Pico e Nazaré.
De volta, numa curva do caminho, ainda perto da casa costureira, vinha, em sentido contrário, o cabra Zé Cabloco, também a cavalo. Assim que viu Antônio, deu um urro medonho e partiu a galope para cima dele, se atracando os dois, mesmo amontados, descendo agarrados e rebolando pele numa luta feroz. Em dado momento, Zé Cabloco conseguiu sujicar Antônio, montando-lhe em cima.

E quando deu de garra da pajeuzeira  para sangrar Antônio, este, reunindo, num esforço supremo, as forças todas juntas do instinto de conservação, danou um supetão , no cabra, que, despregado, caiu ao lado, de borco, afocinhando o chão e quebrando-se a faca numa pedra. Antes que tivesse dado tempo a Antônio de puxar de sua faca, e alarmado, também com os gritos de mulheres ali chegados, Zé Caboclo, num de repente, pulou feito gato, no osso de seu cavalo e correu, embrenhando-se na catinga.

Antônio pegou a roupa e pisou para casa. Em chegando, avoou o liforme em cima da mesa e disse não ir mais à festa. Entrou no quarto e saiu limpando o rifle e botando bala. A mãe interrogou a causa e o por que daquilo tudo. O filho lhe contou apressado o acontecido e saiu vexado no rumo da casa da avó para ver o irmão Virgulino, modo de pegar o cabra. Em vão esgravetaram e fizeram indagação por todos os cantos.

— "Sujeito chia e titica! Se encafedeu!" — gritava Antônio.
José Ferreira, ao chegar, tratou de abrandar o ânimo afuleimado de Antônio, dizendo e convencendo não ter havido desfeita. E resolveu que naquele ano ninguém iria à festa. Essa a primeira briga que um dos irmãos Ferreiras tivera. Contava Antônio vinte anos de idade.

A política no meio
Sempre juntas no sertão: seca, questões e política. Deflagrada a campanha para sucessão ao governo do Estado. No páreo: Dantas Barreto para reeleição e Manuel Borba na oposição. Os Carvalhos de cima, no situacionismo. Seguidos por João Nogueira e Zé Saturnino. Os irmãos Ferreiras, com seu pai José Ferreira e seu tio Manuel Lopes, acompanhavam Mário Alves Pereira Lira* votando na chapa borbista. Aliás, era a primeira vez que Virgulino, Antônio e Livino votavam, exercendo assim um direito civil de cidadãos. Zé Saturnino e seu sogro não viram com bons olhos essa votação dos Ferreiras no partido oposicionista. Assim, não deixou de haver motivação política na questão entre os dois adversários.**

* Mário Alves Pereira Lira, de Recife, fixou-se em Vila Bela, casando-se com uma Carvalho. Político influente, eleito prefeito municipal no período 1916-1920.
** Antes de Manuel Lopes, Luis do Tiú (Tiú localidade entre Vila Bela e Serra Vermelha) fora nomeado inspetor de quarteirão; instigado e acompanhado por seus correligionários, os Nogueiras, da política dos Carvalho, esteve em diligência através das propriedades dos Ferreiras, prendendo moradores, apreendendo armas, ocasião em que Manuel Ferreira Lima foi conduzido à casa do velho João Nogueira.

Fatos subseqüentes (1916-1917).
Cada dia mais aumentando a tensão entre as partes adver-sas, passando as hostilidades a ter um caráter ostensivo, de atritos pessoais.

a) Ninguém no Pajeú como Antônio Ferreira para mestrar cavalo e botar passo de esquipa, de baixo, de meio, de trote, de galope 'em animais. Certa vez, botava ele pisada ou carrego no seu bonito cavalo, quando, de passagem, Zé Saturnino, pilhérico e ofensivo, lhe fez indagação:
— "Quanto quê pela grélha?" Antônio, abodegado, respondeu ao insulto:
— "Grélha é a mãe!"

b) Ocultamente, Neneco Nogueira, solteirão, filho de João Nogueira fez capação-de-volta numas grelhas de escancho deixando-lhes os culodinos, atrofiados. Os animais pertenciam à Ingazeira. Os Ferreiras descontaram cortando pelo cotó as caudas e crinas dos cavalos da Pedreira.
c) De novo eleições. Desta vez para prefeito do município. Saindo eleito Mário Alves Pereira Lira para o período de 1916 a 1920.

Pela segunda vez os irmãos Ferreiras votaram acompanhando o candidato vencedor.
d) 1917.

Zé Saturnino tirou uns chocalhos dos burros dos Ferreiras. Estes, notando a falta, tiraram chocalhos das vacas e cabras dele. Voltou Zé Saturnino, retirou os seus chocalhos e saiu amassando quanto chocalho encontrava nos animais dos Ferreiras.
Desta vez houve discussão forte e quase se pegavam. E como resposta à sua reclamação acusando aos Ferreiras pelo desaparecimento de chocalhos, Zé Saturnino, sofreado e estarrecido, ouviu de Virgulino:

— "Ladrão é você que roubou os chocalhos de nossos burros!"
e) Não foi difícil a Zé Saturnino arranjar sua nomeação para o ambicionado cargo de inspetor de quarteirão. Tendo conhecimento de que os irmãos Ferreiras estavam ausentes, aproveitou a ocasião para, acompanhado de cachimbos, correr e desarmar o velho Zé Ferreira. Encontrou apenas um bacamarte ou clavinote de festejar São João, uma espingarda lazarina de caçar e um facão de usar no mato. Era dia de São Pedro.

E assim por diante, numa progressão perigosa e imprevisível de consequências. O certo é que ninguém queria ficar por baixo. E a situação não explodiu, mais cedo, em graves hostilidades por viverem os Ferreiras muito por fora, carguejando.
Fundação de Nazaré

Resolvera o velho professor Domingos Lopes Soriano de Sousa criar um povoado na chã de sua fazenda Algodões, à margem esquerda do riacho Carqueja, assim chamado o riacho da Ema naquele trecho.
Lugar bem assentado, mesmo na confluência do dito com o seu afluente Ipueira e favorecido pelo caminho que liga Vila Bela a Floresta, ausente de oito léguas exatamente entre as duas.

A moradia-escola da fazenda, construída ao sul do local escolhido, serviria de esquadro, na direção norte, para o riscado das duas linhas perpendiculares, longas de cento e vinte metros, e paralelas, separadas por vinte metros, que formariam o arruado. No fim do traçado, ficaria a capela com a porta da rua olhando para a casa do professor. Entusiasmado com a iniciativa e sendo solicitado, o vigário de Vila, Bela, então regendo Floresta, Padre Zacarias Paiva, batizou a futura localidade com o nome de Nazaré.*
* O Padre José Kehrle, vigário de Floresta, levou da Matriz para a capela de Nazaré uma imagem de. Nossa Senhora das Dores. Diante dos protestos dos florestanos -n imagem voltou e em seu lugar foi comprada a de Nossa Senhora da Saúde, que lá está.

O professor sabia o que queria. Por isso, valendo-se de seu tato e respeitável prestígio de mestre-escola, conseguiu interessar os amigos no projeto. Assim, Antônio Gomes Jurubeba, da fazenda Jenipapo, Pedro Tomás, da Lagoa do Mato, Raimundo Nogueira, do Pico e outros, logo no início de agosto, começaram a construir suas casas no cordeamento, muito embora nelas não residissem e as ocupassem somente nos dias de feira e de Missa.

A família Ferreira, de pronto, aceitou o convite do professor, seu grande amigo, tornando-se co-fundadora de Nazaré. Vieram fixar-se no incipiente arruado: João Ferreira, da fazenda Batata, Cândido Ferreira, da fazenda Caibros e D. Joaninha, da fazenda Serra Vermelha, assim que, em fins de novembro de 1917, enviuvara de Manuel Ferreira de Lima.*
A minúscula feira estabelecida em 1919, sem paga de imposto, às quartas-feiras, funcionava, debaixo da latada de mato junto da quixabeira em frente à casa de Florisbela, da fazenda Olhões, chamada vulgarmente Zolhões. Com a feira vieram os comerciantes de Floresta, João Novais e João Gominho, se estabelecer com pequenas lojas filiais de fazendas e miudezas.

* Quem primeiro se transferiu para Nazaré foi D. Joaninha (Nanã). Seguida, sucessivamente, de Cândido, Noberto e João.
Nazaré ia crescendo devagarinho e tranquila.

Causa determinante (12 a 15 de outubro de 1917)
Enquanto isso, na ribeira do São Domingos, a questão levantada e conduzida por Zé Saturnino chegava ao desfecho. Mandara fazer Zé Saturnino em sua propriedade uma broca no mato, cercando-a para situar um roçado. O caso, porém, é que, na construção da cerca, foram sobraçados bons tacos de terra da Ingazeira — o primeiro passo da invasão para a predeterminada tomada da fazenda.

Os Ferreiras, certos de seu direito de propriedade, desmancharam a cerca, encoivararam a madeira e tocaram fogo. O gado da Ingazeira, pastoreando por essa fronteira aberta, invadiu a broca de Zé Saturnino. Isso, na terça-feira, 12 de outubro.
Zé Saturnino tendo ido ao campo vaquejar notou as reses dos Ferreiras. De volta, todo arrebatado e no seu modo ríspido de falar, recomendou ao cabra, seu morador, Olímpio Benedito: — "Quando os Ferreira vinhé juntá o gado na broca, chame o Chico Morais Arves (outro morador) e infinque bala neles. O rifle tá aqui no canto cum a cartucheira". No dia seguinte, 13, pelas seis da manhã, os três Ferreiras, encourados em trajes de vaqueiro e desarmados, chegaram para rever o gado.

Olímpio, que estava trabalhando de foice na broca, correu, deu garra do rifle e chamou Chico Morais, que não quis ir. Olímpio deu três tiros, de mesmo, com o objetivo de atingir os rapazes, não acontecendo porque era a primeira vez que atirava de rifle.
No outro dia, 14, os Ferreiras, desta vez armados, vieram vaquejar. Ao avistarem alguns moradores de Zé Saturnino, meteram fogo neles, que saíram correndo.

No dia 15 de outubro, sexta-feira, os três Ferreiras, agora seguidos de um seu agregado, Luís Gameleira, vieram, na mesma hora, seis da manhã, de novo armados e prevenidos, para a faina diária de recolher o gado. Foram vistos, de longe, ao passarem o aceiro da broca, por um morador da Pedreira, que correu a avisar Zé Saturnino, o qual estava batendo tijolo para sua casa. Zé Saturnino disse a seus cabras: — "Vamos dá uns tiro naqueles mocó?" (chamara os Ferreiras de mocós). Entrou em casa e retirou armamento com munição para Zé Caboclo, os três Beneditos (Olímpio, Manuel e José), 'Paizinho e Dionísio vaqueiro.
Aos quais se uniram João Nogueira e seu filho Zé Nogueira, presentes na ocasião. Emboscaram-se num serrote da Lagoa D'Agua Branca, ao pé da serra Vermelha, nos limites da Pedreira com a Ingazeira. Quando os Ferreiras estavam na mira de suas armas, fizeram fogo de surpresa, ficando, de início, Antônio Ferreira ferido com um balaço, que lhe pegou na região do apêndice e saiu na reata da calça, na altura dos rins. O tiroteio rompeu violento e rápido, durante apenas dez a quinze minutos, retirando-se os Ferreiras sem que os inimigos tivessem coragem de lhes seguir no encalço.
Pela primeira vez na vida, os irmãos Ferreiras atiraram em gente! Antônio com vinte e dois anos de idade, Livino com vinte e um e Virgulino com dezenove. Enquanto Livino, com o agregado, voltava para casa, Virgulino levava seu irmão ferido para a residência do tio Manuel Ferreira de Lima, na fazenda Serra Vermelha. Adonde, o genro deste e tio daqueles, Antônio Matilde Ferreira, entendido de ferimento, cuidou do sobrinho durante vinte dias, tempo que levou para ficar bom.* Nisto foi ajudado pelo jovem. de quinze anos João, irmão do baleado, que ensinava a carta de abe a seus primos, filhos do dono da Serra Vermelha.
* Antônio chegou todo melado de sangue na fazenda Serra Vermelha. Seu "tio" Ferreira Catendo, inteirado do ocorrido, mandou imediatamente chamar Antônio Matilde, na Mutuca. Este desinfetou a ferida com álcool e ácido fênico; com uma navalha flambada cortou a ferida em cruz: queimou um sacatrapo (rosca da vareta de espingarda) e com ele retirou a bala. Para sarar: fez uma papa 'de azeite doce com a baba (selva) do cipó de cobra ou tripa de galinha; melou essa mistura em uns fiapos do linho; xiringou (seringou) água fenicada no orifício; introduziu no furo os fiapos melados até o fim, deixando-os aí; diariamente a mesma operação; limpa a ferida vai ela sarando de dentro para fora até fechar sem necessidade de pontos.

Nesse ínterim, José Ferreira tomou um burro e foi à Vila Bela dar parte e instaurar processo contra as sucessivas provocações e ameaças de Zé Saturnino, culminadas com o baleamento de seu filho. Ora, o delegado regional tinha um irmão querendo se casar com uma irmã de Zé Saturnino. Por isso, todo abusado, mal ouviu o queixoso, e terminou dizendo, com sarcasmo e menoscabo, que não se metia na encrenca, pois, conforme o ditado, "entre duas pedras catolé".
A justiça, subalterna ao mais forte, também fugira de atender a um justo reclamo de sua alçada e que poderia dar cabo de tais malquerenças e estabelecer paz em definitivo.* Diante do fracasso, voltou José Ferreira para casa, humilhado, desfazido, sofrido, e sem tino para encontrar solução.

"A besta-fera se soltou" — exclamava D. Jacosa.
É quando os Ferreiras compreenderam que tinham diante de si um "terrível inimigo" — o inimigo número 1 — Zé Saturnino!"**

Numa estrofe, sincera e sentida, Lampião lamentou as imposições do destino:

"Mas, o destino impiedoso,
Foi cruel para comigo.
E a sorte caprichosa
Me impôs este castigo.
Quando eu não esperava
Nem em tal coisa pensava
Tinha terrível inimigo!"

* "A Paz é Fruto da Justiça" (Pio XII). Houvesse "Justiça" e não haveria Lampião... Das instituições humanas a mais falha, quando deveria ser a mais perfeita, porque básica. — "A lei a gente espicha como quer!" — dizia certo juiz de direito. A justiça — sempre com letra minúscula, porque maiúscula só a divina, — é jogo de esgrima: vence o advogado mais atilado. Para libertar o criminoso, a que chamam de "constituinte", não tem escrúpulo o causídico de empregar a mentira. Isto porque a falta de consciência não lhe traz remorsos. A corrupção e subserviência de certos "íntegros", escudados na intocabilidade, transformam o título das peças e processados jurídicos em farsa. Se não se justifica a atitude de Lampião ao fazer justiça pelas próprias mãos, a carência de justiça, entretanto, a explica.
** Zé Saturnino é chamado de "inimigo n. 1" porque foi o "primeiro" e não o "maior", nem o mais importante. Entre os maiores contam-se José Lucena, que assassinou seu pai, levando-o daí ao cangaço, João Nogueira com sua ambição, Manuel Neto, por sua tenacidade e crueldade, José Pereira, de Princesa, que ele chamava de "perverso, falso o desonesto"...