Artigos Variados

Memórias de Um Sobrevivente da Revolta Comunista de 1935

A Revolta Comunista de 1935

Relato de Meneleu e Lourdinha sobre a prisão

MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE

Hoje senti vontade de falar sobre as injustiças contra mim cometidas pelos algozes mandantes do governo do Rio Grande do Norte e do Brasil no ano de 1935. Na época com 17 anos, sem ser político e nem tampouco entender de política, fui jogado nas masmorras da ditadura Vargas, juntamente com vários colegas operários assim como eu, pelo simples motivo de ter composto e impresso um jornal da revolução comunista deflagrada naquele ano. Deixe-me contar-lhes primeiro como tudo começou:

Minha odisséia começou em 1934. No começo deste ano, fui considerado por intermédio do meu amigo Chico Assis (já falecido), pessoa ideal para dirigir uma gráfica de propriedade do Sr. Antunes, em Macau, Rio Grande do Norte. Para minha ida a essa cidade e para meu transporte, mandaram-me 200 mil reis por intermédio de Dix-Neuf Rosado.

Trabalhei somente seis meses, tendo voltado a Mossoró no meado do ano, pois tinha recebido convite do jornalista João Café Filho (que após o governo ditatorial de Getúlio Vargas, assumiu a presidência da republica, quando de seu suicídio) para trabalhar em seu jornal O Jornal na capital do estado.

Fui para Natal no começo do ano de 1935, tomando um ônibus para a cidade de Angicos, onde tomei o trem da Great Western, companhia ferroviária da época, e chegado à capital. Já me aguardava, a mando de João Café, o meu amigo Gumercindo Saraiva, que, nesse tempo trabalhava como gráfico do jornal. Fui direto para o parque gráfico e Gumercindo me apresentou a todos os gráficos, repórteres e outros que constituíam a família jornalística de O Jornal.

Logo fiquei conhecido no meio gráfico da cidade, pois era muito profissional, não faltando por conta disso, biscates para complementar nas minhas despesas. Ressalto que também por trabalhar em O Jornal, jornal que não era bem visto pela elite da terra, fiquei também conhecido como gráfico comunista. Trabalhei poucos meses, o bastante para ser considerado como tal, pois quem era Cafeista ou trabalhava no jornal, assim era pechado.

A minha política era ganhar o meu sustento, que naquela época também já era difícil. Para completar meu orçamento, era obrigado pelas circunstâncias a fazer serões (horas extras) na A República, órgão oficial do estado ou na A Ordem, jornal católico.

Trabalhei de meados de 1934 a junho de 1935, quando me desliguei do O Jornal, e ingressado na Tipografia Comercial, por meio de teste onde obtive o 1º lugar, ficando logo trabalhando no corpo gráfico daquele estabelecimento de propriedade do Major José Pinto, localizado na Av. Tavares Lira.

O Major logo ficou meu amigo, apesar de sua aparência carrancuda. Era uma criatura boníssima e nada me faltava, pois sempre procurava zelar pelo bom nome da gráfica, apresentando bons serviços à sua clientela. Apesar de minha pouca idade, 17 anos na época, tudo na gráfica era resolvido por mim, espécie de gerente na tipografia. Quando se dirigiam a ele, mandava que falassem com o "Senhor Francisco", que era eu. E eu resolvia tudo mesmo, porque sempre gostei do meu trabalho. Trabalhei alguns meses com o major na parte da gráfica durante o dia e à noite fazia serões em A República e , às vezes, no jornal A Ordem, jornal católico, onde tive a infelicidade de estar trabalhando, fazendo serão no dia 23 de novembro de 1935, onde tínhamos, eu e outros gráficos, passado a noite compondo o jornal e pela manhã fomos todos intimados a comparecer ao quartel do 21 BC.

Quando estourou a revolução, em um sábado, era o dia de receber dinheiro pela composição de matérias até aquele dia. Por sinal nem recebi. Sei que a culpa não foi da redação em não fazer o pagamento aos seus operários, porque ficaram todos presos no 21º BC.

Ali chegando, não sabíamos do que se tratava, todos nós recebemos fuzis e todos dissemos que não sabíamos manejar aquela arma. Fomos então designados, depois de nos identificarmos como tipógrafos, para confeccionar o jornal oficial da revolução A Liberdade. Falarei pormenorizadamente desse fato no subtítulo Fábrica de Comunistas.

Interessante que o jornal dito "de comunistas" era O Jornal e no entanto fomos mandados e conduzidos às oficinas de A República, órgão oficial do estado, onde encontramos vários elementos de tal órgão oficial, compondo o jornal revolucionário, tendo então nos agregado aos mesmos, dando a nossa colaboração, onde como costume meu, desempenhei como profissional que era, todo o meu esforço para a tiragem do jornal. Concluída a minha tarefa, fiquei bastante conhecido profissionalmente por outros gráficos, o que me causou mais tarde, sérias acusações contra mim pois soube mais tarde, pela documentação do processo, que esses colegas de profissão, para se defenderem perante o famigerado Tribunal de Segurança Nacional, tribunal de exceção, criado então pelo ditador Vargas, acusaram-me de tudo, para salvar a pele que era igual à minha. Fui condenado à revelia, porque nunca pensei que existisse tanta maldade nos pronunciamentos de meus ex-colegas de profissão. Acusaram-me de Ter dado guarda aos tipógrafos.

Como poderia dar guarda, compor e paginar o jornal ao mesmo tempo?

Interessante que as acusações não tinham nenhum fundamento, pois quando cheguei às oficinas de A República, os meus colegas de arte Paulo Melo, Loiola Barata, Rodolfo, Pacífico e outros, já nas caixetas compondo se encontravam, não sendo verdade que os tinha conduzido à força para as oficinas, nem dado guarda aos mesmos, porque eu não poderia trabalhar e dar guarda ao mesmo tempo. Mas para salvarem suas peles, tudo valia, principalmente para acusar um "vermelho", acusação essa muito bem aceita na época.

Acusaram-me de tudo para conseguirem uma penalidade de 6 anos e seis meses que foi cumprida integralmente, apenas aliviada de vez em quando por pessoas bondosas que ainda existiam naquela época, como o Capitão Carvalho, Capitão José Medeiros, Capitão Severino Elias, Tenente José Bastos e outros que me falha a memória.

Entre os civis destaco em primeiro plano, o meu grande amigo Dr. Raul Caldas que fez de tudo para me proteger contra os perseguidores de então, que não eram poucos. Esses perseguidores nada tinham contra mim pessoalmente, mas quando perseguiam um elemento, eu entrava no meio "de tabela".

Voltando a falar de meu "crime", fui preso, primeiramente por elementos da revolução, conduzido para o quartel do 21º BC. Lá chegando, entregaram-me um fuzil, embora nunca tivesse pegado em armas, tinha apenas dezessete anos, jovem e inexperiente. Mas fiz ver a meus captores que não sabia manejar tal arma e me identifiquei como gráfico. Daí então me designaram para trabalhar na confecção do jornal A Liberdade, onde fiz de tudo, composição, paginação etc., não tendo obrigado ninguém a colaborar comigo na feitura "do órgão" como me acusaram no processo julgado pelo famigerado Tribunal de Segurança Nacional, tribunal fascista da época nefanda da ditadura Vargas.

Não tive direito a defesa por me encontrar fora da capital, em Mossoró, para onde fui logo que me deram liberdade no inicio do processo, talvez por ser menor de idade. Quando completei 21 anos, fui condenado e preso em seguida pela polícia do governo Rafael Fernandes, fabricante de comunista, para esconder a má administração, mostrando que perseguindo comunistas e prendendo inocentes, ficava com as simpatias do ditador Vargas.

No período compreendido entre dezembro de 1935 até meados de 1938, fiquei em minha cidade, Mossoró, quando servi o exército, no Tiro de Guerra 42, quando aí sim, aprendi a manejar um fuzil.

No livro de autoria do Dr. João Medeiros Filho, "82 Horas de Subversão", encontra-se nas páginas 136 e 168, uma contradição, e que, por nunca ter sido consultado pelo autor, faço agora neste instante minha defesa. Na primeira, dou guarda, armado, juntamente com outros, e na página 168, diz que participei da impressão do jornal revolucionário; a Segunda é verdade, mas a primeira não podia ser pois estava ocupado na confecção e impressão do jornal.

Todos os tipógrafos trabalharam na confecção do jornal, só que na "hora da onça beber água", fugiram das responsabilidades, acusando um jovem de dezessete anos, que por conta da inexperiência de conhecimento da índole humana, afastou-se para o interior do estado, para seguir sua vida profissional.

Voltando aos acontecimentos da revolução, terminada a composição e impressão do jornal, todos nós fomos para casa. Foi aí que no dia 27 de Novembro fui novamente preso por uma patrulha do exército e conduzido novamente ao quartel do 21 BC. Só que dessa vez era para responder o por quê de ter participado na confecção do jornal da revolução. Lá já encontravam-se várias pessoas detidas. Interrogado por um oficial do exército, não neguei minha participação, como tipógrafo, dizendo mais: que era empregado da Tipografia Comercial, de propriedade do Major José Pinto, pai do Desembargador Lauro Adamastor e José Pinto; o citado oficial era o então Capitão Aloisio Moura, genro do Major, conforme soube depois, mandou me soltar, dizendo que eu fosse para casa. Isto feito fui diretamente para a "republica" que morava, à rua Frei Miguelino.

Por volta das 18 horas, apareceu uma patrulha da polícia, que invadiu os meus aposentos e, na busca que fez de meus pertences, roubaram-me cerca de 30 mil de reis, calças e camisas novas que tinha comprado recentemente.

Conduziram-me até o quartel da polícia, onde fiquei até às 22 horas, quando em companhia de vários presos, saímos em coluna por um, passando por um "corredor polonês" de vários soldados de polícia, todos de "rabo-de-galo" na mão, espancando na passagem até o "tintureiro" – carro que conduzia presos, que estava estacionado no portão da entrada do quartel. Todas aquelas criaturas desafortunadas foram barbaramente espancadas e quando chegou a minha vez, trinquei os dentes para agüentar as "bordoadas". Tive melhor sorte que meus companheiros de infortúnio que passaram na frente, pois não fui tocado nem de leve, não sei se por piedade dos algozes (se é que algoz tem piedade) talvez vendo um jovem imberbe, com pouca idade e jeito de menino, ou se foi no ato de subir o sabre para descer nas minhas costas eu já estava longe deles.

Embarquei no "tintureiro", sem saber o destino. Quando esse parou na frente da Detenção, onde dei entrada, ficando vários dias ali, quando fui transferido para a Escola de Artífice, na Av. Rio Branco, prédio que serviu de presídio por vários dias. Ali o ambiente era bom, e não sei porque me botaram no meio de presos instruídos tais como médicos, dentistas, engenheiros, funcionários de alta categoria e outras boas pessoas. Fiquei detido por quase um mês, tempo esse em que meu pai veio de Mossoró para Natal, solicitar de um parente nosso, o Coronel Solon, para interceder junto ao Chefe de Polícia, Dr. João Medeiros a minha liberdade, o que aconteceu nos últimos dias de dezembro quando dei meu depoimento a um juiz, contando tudo o que tinha se passado comigo e, poucos dias depois, fui posto em liberdade e segui para minha cidade, Mossoró. Não tenho nada a agradecer (pensando melhor hoje), o gesto do Chefe de Polícia que auto se elogiou em seu livro "82 horas..." em me soltar, pois prejudicou-me na minha defesa, que seria feito oportunamente, pois tendo ficado em Mossoró, pela minha inexperiência, fiquei sem notícias do processo que corria a revelia até o ano de 1938 quando o Tribunal de Segurança Nacional sentenciou-me a 6 anos e seis meses de reclusão, sem apelo.

Meses depois de Ter chegado a Mossoró, e por está fazendo dezoito anos, tive que me alistar no Tiro-de-Guerra – TG 42, onde aprendi a manejar e atirar de fuzil, coisa que não aprendi em Natal com a revolução da Intentona Comunista de 1935.

Passados alguns anos, já com 21 anos de idade, fui surpreendido com a condenação, à revelia, por parte do fascista Tribunal de Segurança Nacional, órgão repressor do governo da ditadura Vargas, naquela época, fabricante de comunistas e torturador de pessoas que nunca entenderam o que era comunismo.

Já sabendo que me encontrava condenado a 6 anos e seis meses de reclusão, não tentei fugir, sendo apoiado pelo meu melhor amigo, Raul Caldas, que me deu coragem para suportar a injustiça da pena aplicada sem nenhuma defesa por aquele Tribunal de Exceção da ditadura Getulista.

Os meus companheiros que trabalhavam comigo, fazendo as mesmas tarefas, foram absorvidos, mesmo que para isso tenham usado de mentiras contra mim, acusando-me. Pois por não ter sido comunicado pelas autoridades para está ali em Natal, para me defender, disseram o que talvez tenham sido instruídos a dizerem . Graças ao Capitão Severino Elias, que era muito amigo do Dr. Raul Caldas, fui poupado de ser detido por vários meses até que não pode mais o referido Capitão, segurar a situação pois fora determinado pela Chefatura de Polícia, recolher-me, o que foi feito.

Depois de 30 dias preso, fui libertado por conta e risco do Capitão Severino, para trabalhar fora do presídio, no escritório da Empresa de Óleos Brasileiros Ltda., - EDOB, com o Dr. Raul Caldas, meu gerente naquela empresa de extração de óleos vegetais.

Trabalhei com o Dr. Raul Caldas até o ano de 1939, quando o mesmo foi substituído pelo Sr. Miguel Arcanjo de Arantes Nogueira, de Minas Gerais, que me denunciou à matriz, que por sua vez mandou me demitir por me encontrar condenado pela justiça (?). Voltei então ao presídio em Mossoró e numa denúncia feita a outros sentenciados políticos, entrei novamente de roldão no meio e fomos todos transferidos para a capital Natal, em 1941, onde fiquei passando as piores privações, além da falta de liberdade.

Na detenção da capital, procurei me adaptar ao ambiente, tendo angariado entre presos políticos e autoridades policiais, boas amizades, pois por minha conduta excelente, fui solicitado para ser datilógrafo da diretoria do presídio, na gestão do Capitão Carvalho, um militar digno dos melhores encômios.

Na prisão, conheci várias pessoas que não eram como diziam fora das prisões, maus elementos; todos eram pessoas de responsabilidade, bons pais de família, que tiveram a infelicidade de participar de um movimento derrotado.

As autoridades da época, tiveram o cuidado de reunir presos políticos e presos comuns (assassinos, ladrões e outros malfeitores) em um mesmo ambiente, para facilitar talvez a eliminação de alguns considerados "vermelhos demais". Como a cultura de vários desses "vermelhos" suplantava a dos "carcereiros" não foi difícil angariar a simpatia e confiança dos detentos que encontramos na Detenção de Petrópolis, para a insatisfação dos "heróis" que "lutaram" "bravamente" para derrubar as "82 Horas de Subversão".

Na detenção de Natal, passei por muitos sofrimentos morais, sem poder sustentar minha companheira que ficara em Mossoró com meus familiares. O pouco que ganhava mal dava para complementar a alimentação que era dada pelo governo em dinheiro, era muito pouco.

Foi muito difícil tirar esses 6 anos e seis meses de minha existência. Até hoje fazem falta em minha vida, pena aplicada por tiranos fantasiados de "anjinhos de procissão".

Na prisão, não encontrei nenhum tipógrafo que trabalhou comigo na feitura do jornal revolucionário, parecendo até que tinha sido o único a compor, paginar e imprimir o órgão. Todos que fizeram o jornal junto comigo, acovardaram-se, pois não suportaram o peso da repressão policial e empurraram para mim, que estava em Mossoró, sem saber o que estava ocorrendo, todo o peso, aliviando assim os seus costados.

Não tiveram a hombridade de avisar-me que o processo estava em andamento e que as "autoridades" estavam deixando o processo correr à revelia, onde uma sentença injusta, bem aos moldes fascistas que existia na época, estava a esperar-me, pois como trabalhador gráfico que era e trabalhando em um jornal que não era bem visto pela situação, naturalmente pesou contra mim a fama de comunista..

FÁBRICA DE COMUNISTAS

O Rio Grande do Norte serviu de palco para a maior fábrica de comunistas do Brasil, pois a política de João Café Filho, ilustre norte-rio-grandense para quem trabalhei como operário na composição de seu jornal O Jornal fazia que seus desafetos, irritados com as críticas veementes de seu editor, taxassem todos os que trabalhavam para ele, como sendo comunista e perseguidos como tal. Basta lembrar os "comunistas" de Mossoró, cidadãos como Raimundo Jovino, Amancio Leite, Martins de Vasconcelos, Pedro Leite e outros, para se Ter uma idéia do que foi a perseguição política comandada por elementos do governo da ditadura de 1935, satisfazendo seus instintos malfazejos do governo pró-nazista de Getúlio Vargas.

Como trabalhador gráfico que era, trabalhando em um jornal que não era bem visto pela situação, naturalmente pesou sobre mim a pecha de comunista, mais um produto da fábrica montada.

Não viram o outro lado das minhas atividades que era a de trabalhador avulso de A Ordem, onde fazia serões para completar o orçamento que naquela época já era de fome.

No dia 23 de novembro de 1935, Sábado, estava eu trabalhando, puxando linha, como se dizia no ramo tipográfico, cada linha ao valor de 20 reis , quando fui surpreendido, juntamente com meus colegas, por um tiroteio na Cidade Alta, deixando-nos acordados durante toda a noite e, pela manhã, surpreendidos por soldados do 21ºBC que nos deram ordem de prisão, conduzindo-nos para o quartel daquela unidade do Exército para receber armas para combater o quartel da polícia, que tinha ficado do lado da situação.

Como não sabíamos manejar um fuzil, deixamos aquelas armas de lado e fizemos ver a nossos captores, que só trabalhávamos no ramo gráfico. Logo fomos designados para as oficinas de A República para compor e imprimir o jornal A Liberdade, órgão oficial da revolução. Como profissional que era, fui logo arregaçando as mangas e me dedicando com ardor na feitura do jornal. Não porque fosse jornal comunista e sim porque gostava de minha profissão, e com zelo dava tudo de mim, para que ficasse um jornal tipograficamente bem feito.

OS AMIGOS

Vivíamos na detenção juntos com presos comuns, apesar de sermos considerados presos políticos; entretanto sabíamos nos respeitar sem atritos. A ociosidade tomava mais tempo de todos nós. Para preencher o tempo livre, aprendi a movimentar todas as peças de xadrez. Não digo que aprendi a jogar mas aprendi os movimento com meu "professor", o advogado rábula Miguel Moreira, famoso guerrilheiro, ... (aqui tem a seguinte citação que não entendi e que precisa de esclarecimento: ...companheiro de Miguel Torquato, Feliciano (assassino de Manoel Torquato), Raimundo Tavares, Herculano e outros.) Miguel Moreira era um homem culto, bom companheiro, amigo de todos nós que, como ele, participávamos dos mesmos sofrimentos.

Passávamos o dia jogando xadrez para esquecer as injustiças contra nós, que para o governo da época, era justiça.

Lembrando outro amigo que, como eu foi preso injustamente como comunista, no entanto por ser muito inteligente e um oficial brilhante, foi invejado por suas atitudes de líder em seu batalhão, sofreu perseguições, Mário Cabral soube, com dignidade suportou as atrocidades dos que se diziam democratas e que eram na verdade fascistas tupiniquins, impregnados de baba virulenta do fascismo Getulista. Mário antes de ser absorvido pelo famigerado Tribunal de Segurança Nacional, aprendeu o ofício de "barbeiro", para ajudar com pequeno ganho, as despesas de sua família. Bom companheiro, já falecido na cidade de Natal.

Outro colega de cela era o Zé Paulo, muito míope, protestante da Igreja Batista, passava o dia lendo a Bíblia e pregando, a seu modo a religião que abraçara. Lembro-me que quando os companheiros estavam a contar anedotas apimentadas, ele tapava os ouvidos apenas pela metade, dando-nos a impressão de puritano. Bom companheiro, figura bondosa e alegre.

Também lembro-me de Coutinho, um "jovem" de setenta anos que foi preso injustamente, talvez por falar demais. Malcriado, no bom sentido, e talvez por isso, prenderam o pobre velho, castigando-lhe com uma pena injusta, encomendada pelos inimigos do jornalista Café Filho.

Outro amigo, Israel Pedrosa, colega de profissão, sofreu tanto que ficou tuberculoso, vindo a falecer depois da minha vinda para Mossoró. Trabalhara comigo na confecção do A Liberdade e fora condenado a também 6 anos e seis meses de reclusão, sem apelo, tendo tal pena sido cumprida integralmente por nós.

Fiz muitos amigos no período da carceragem, homens rudes, outros educados, e quando transferido para tirar a pena em Mossoró, até mesmo militares tornaram-se amigos, chegando a me conduzirem para divertimentos à noite. Jogávamos baralho, tomávamos cerveja etc. um dos carcereiros, o Sargento José Agripino era um desses meus amigos, certa vez ele e o Tenente José Bastos, outro amigo, entenderam de arrancar uma botija enterrada na casa de meus pais; sonho tido por um dos dois, não sei qual, mas que indicava que o "tesouro" estava em um canto do quarto, e todos nós fomos, com o consentimento de minha mãe, explorar a "mina". Foi cavado um enorme buraco e nada foi encontrado. Depois da decepção, fomos todos embora, eles para as suas casas e eu para o xilindró, onde "morava" cumprindo uma pena pelo grande "mal" que fiz à pátria.

OS OPRESSORES

Deixo de falar nos meus opressores, perseguidores baratos e capachos do governo do ditador Vargas, para não ferir a suscetibilidade de seus familiares que ainda vivem e que são completamente diferentes, tanto nos pensamentos como nas atitudes, frutos que são de uma época mais civilizada.

UM SOBREVIVENTE

Hoje seria muito fácil dizer e confirmar se as acusações sofridas tivessem sido verdade. Nada me aconteceria, pois faz mais 60 anos (precisamente 63 anos) da revolução comunista. Nosso regime atual (1998) é democrático, sem nenhum "ato institucional" para me prender. Mas todas as acusações foram inverdade daqueles meus companheiros de profissão, foram fraquezas que levaram por toda suas existências. Foram fracos quando acusaram-me juntamente com muitos outros colegas que fugiram de Natal para várias cidades, para não serem presos nem torturados, como aconteceu a vários taxados e fabricados como comunistas, para servirem, de saco de pancadas para a satisfação dos governantes da época e satisfazer o desejo de vingança por terem passado "82 horas..." acovardados, com medo de meia dúzia de elementos que se apoderaram do poder. Nenhum elemento do governo morreu na revolução, a não ser um pobre louco que se meteu no meio do tiroteio do Quartel de Polícia, tendo sido mais tarde, considerado da corporação e como tal "promovido" a cabo e herói combatente(?).

Pobres companheiros meus que tiveram de levar por toda uma vida, em suas consciências, o peso da delação, o peso da traição. Todos já tiveram o seu castigo; não determinado por mim e sim pela justiça Divina.

Deles todos, o único sobrevivente sou eu, poupado talvez por não Ter ofendido a nenhum deles.

Custou muito caro o que fiz, mas serviu de experiência e ainda serve hoje, o que aprendi na convivência com seres humanos bons e ruins, durante minha prisão: Políticos, médicos, advogados, dentistas, jornalistas, sapateiros, religiosos, funcionários públicos e outras profissões que me escapam da memória. Até com assassinos e ladrões tive minha convivência, uns bons outros menos, mas todos pessoas humanas que tinham o que contar de suas vidas, uns presos injustamente, outros por culpa da sociedade em que viviam.

Fiz boas amizades, tanto na delegacia em Natal como na cadeia pública de Mossoró. Tudo isso me serviu de experiência de vida.

OS ESQUECIDOS

Em novembro de 1988, o ex-presidente Sarney voou de Brasília juntamente com seus ministros militares, em avião diretamente para o Rio de Janeiro, e lá no Aterro do Flamengo fazer a chamada pelos nomes, dos militares mortos na revolução de 35. Faz exatamente 54 anos que esse ato é comemorado e eu não sei porque, pois hoje vejo que não houve ato de bravura de ninguém, apenas tolice de poucos para salvar a pele de Getúlio Vargas e o país continuar na ditadura.

Do outro lado morreu muito mais, "remember" Serra do Doutor Rio Grande do Norte (Favor explicar=====), não se fala, entretanto são tão bravos quanto os que morreram na Praia Vermelha.

Esqueceram os que foram torturados na Ilha Grande, nos quartéis da aeronáutica em Natal, onde o Dr. Vulpiano teve seus dedos quebrados para que não pudesse mais operar os pobres a quem ajudava. Seus tímpanos quase estourados por suportar sons estridentes de um alto-falante colado em seus ouvidos.

Pancadas de fuzil no "pé" do ouvido de vários que não conseguiam levantar com facilidade por causa de torturas.

Pergunto: A troco de que, tudo isso? A troco de permanecermos na ditadura, respondo. A troco do poder voltar às mãos dos muitos que não tinham competência para serem governos eleitos. Fizeram isso por recalque, tentando descontar em torturas e perseguições. Muitos "heróis de meia tigela" apareceram, valentes, prepotentes, aproveitando-se de uma situação que lhes era favorável para expandir seus recalques. Uns por sadismo, outros por pensarem que, humilhando, maltratando um ser humano, conquistariam as graças da ditadura Vargas.

A CORRUPÇAO

Depois que a justiça (?) apareceu, melhorou um pouco, para afastar dos que tinham alguns "trocados" da tortura e poder manobrar com as "autoridades" até diminuição de pena, pois eram arranjadas por qualquer 200 mil réis nas delegacias onde estavam os prontuários. "Liberdades condicionais", saídas por alguns dias e outros "benefícios" eram conseguidas com os corruptos de então (nunca deixou de existir essa praga) que levavam os tostões minguados dos presos políticos. Gente sem entranhas que não queriam saber se tínhamos mulher e filhos, só viam na frente cifrões . Fui uma grande vítima desses elementos, passando várias privações, humilhações, comendo mal e dormindo quase ao relento, dentro das celas imundas do porão da ditadura Getulista, com frio, pois nas celas não tinham portas, só grades, e o pior de tudo, sujeito a qualquer atentado por parte de presos criminosos que misturaram com os políticos, e tudo por não compactuar com propinas para ganhar condições de melhoria. Só os mais fortes resistiam. E hoje vejo que eu era forte por enfrentar tudo aquilo.

CÁRCERE EM MOSSORÓ

A vida carcerária em Mossoró não diferenciara da que tinha em Natal; apenas melhorara um pouco por eu ser da terra. Com meu curso primário feito, aprendi várias modalidades de aplica-lo no auxílio da administração carcerária, para obter algumas regalias em troco. Uma das regalias (imagine...) que eu queria ter, era não conduzir o lixo de dentro da cadeia para um aterro existente na época onde fica hoje a Cobal. Eu achava aquilo humilhante perante meus amigos de fora. Felizmente arranjaram um substituto. Dentro da cadeia, não tinha importância o que fizéssemos. Cada ala tinha uma lata dessas de querosene com uma alça de arame de um lado para outro; quando éramos recolhidos à cela, passávamos a noite urinando e pela manhah conforme escala estipulada democraticamente, saía um de nós com a lata na mão, com uns 5 ou 6 litros de urina para depositar na bacia da latrina, voltar com a lata limpa na torneira e deixar em um lugar para apanhar sol e voltar novamente com ela à noite para outras xixizadas. Tudo isso era até divertido, apesar de humilhante.

Na cadeia de Mossoró até que eu gozava de algumas regalias pois autoridades amigas, que me conheciam desde menino e sabiam de minha índole calma e pacífica, confiavam tudo em mim, sem que eu abusasse jamais dessa confiança. Saí muitas vezes sem escolta e voltava na hora certa para me apresentar ao carcereiro que era um velho amigo, de nome Francisco Lucas (Chico Lucas) irmão de Hermígenes Lucas, alfaiate e clarinetista da banda do Mestre Ribeiro, pais de meus amigos, Nogueira, José e Dalva Stela Nogueira Freire, maestrina e professora da Universidade Federal do Ceará.

Na cadeia de Mossoró era preciso ter muito cuidado com elementos perversos que apareciam de outras cadeias para ter uma segurança maior, mas com o tempo iam ficando pacatos devido a convivência com os outros presidiários de bom comportamento, fazendo parte dos "todos por um e um por todos".

MULHERES NO MOVIMENTO

Carta dirigida em resposta ao escritor Raimundo Brito de Mossoró:

Fortaleza, 25 de junho de 1990

Meu prezado R. Brito.

Antes de ler a revista "OESTE" apresso-me em responder à sua solicitação a respeito de algumas mulheres que tomaram parte da revolução de 35 em Natal. Como "perigoso revolucionário" que fui, não conheci as "façanhas" de nenhuma dessas mulheres citadas por você a não ser Leonília Félix que vi trabalhando na confecção do jornal da revolução, passando pela oficinas. Soube que era companheira de Epifânio Guilhermino; aliás não sei porque fui envolvido numa denúncia de algum "companheiro", talvez para botar os "quartos de fora", que eu teria participado de um saque de brim de encadernação juntamente com Leonília. Só faltaram dizer que eu era o "comandante em chefe da revolução".

Na prisão conheci Epifânio, não era o que foi pintado no livro "82 horas de subversão"; era um homem pacato, fala mansa e não era boçal como diz o apaixonado livro. Tratava seus companheiros de infortúnio com boas maneiras e sabia conversar; não era o que disse o "82...". No processo disseram que Leonília e eu estávamos fardados e com pesadas armas dando guarda ao pessoal das oficinas; que maldade, como era que daria guarda e ao mesmo tempo compor, paginar e imprimir o jornal?

O livro "82 horas...." foi escrito com muita sede, deixando certos detalhes para trás. Encontrei no livro várias contradições que mostra a baba peçonhenta dos acusadores para escaparem da "JUSTIÇA" dos homens; da justiça de Deus ninguém escapa. A justiça dos homens me tirou 6 anos e seis meses da minha existência, mas a de Deus está repondo aquele tempo perdido e já estou com 73 esperando ultrapassar o século, como diz a juventude de hoje NUMA BOA. (Nota: Meneleu hoje, fevereiro de 1999, encontra-se com 82 anos)

Amélia Reginaldo não tive o prazer de conhecer, sei que era filha do professor Raimundo Reginaldo e desempenhou o seu papel de revolucionária com bravura, não se submetendo aos caprichos dos "vencedores".

Chica da Gaveta (?) e Chica Pinote (?) não conheci nenhuma dessas "super-Women" que pegaram em "armas pesadas", acusadas com tanto rigor por elementos do governo da época, gente suja, sem escrúpulos que disseram tudo com maldade contra os vencidos, sem contestação, à revelia, pois eram os donos da situação e além de tudo, covardes opressores que se acobertavam com as mantas manchadas de sangue da ditadura getuliana protegidos por um tribunal de exceção, cheio de juizes fascistas.

Quando voltei para Mossoró fiquei completamente isolado de notícias sobre o processo em andamento e a revelia, o que me impossibilitou de me defender perante o TSN, ficando o campo limpo para ser acusado pelos meus colegas, para se livrarem da participação comigo na tiragem do órgão revolucionário.

Aí está meu caro R. Brito o que posso lhe enviar a respeito de Leonília Félix, das Chicas Pinote e Gaveta e Amélia Reginaldo. Amélia, acredito que esteja viva pois era mais nova do que eu na época, não sei dizer onde mora e nem com quem se casou.

Acredito que as informações que você precisa, poderão ser encontradas nos processos arquivados na Secretaria de Policia em Natal que tem tudo a respeito dos envolvidos na revolução de 35.

Um abração do

Meneleu

REVOLTA CALADA

A ditadura de Getúlio fez de mim um revoltado calado, para suportar a maldade imposta por um tribunal fascista criado por ele a nível do que era mais odiado na Itália. Esse mesmo TSN como todos nós sabemos, fez os piores julgamentos, mandando pessoas inocentes para as masmorras daqui e da Alemanha (Olga Benário Prestes).

Em seu livro "82 horas...", o Sr. Medeiros valorizou muito os seus atos, mas teve um crédito quando disse:

"Reconheço que houve injustiças nas primeiras providências tomadas para a captura dos rebeldes. De cambulhada com os verdadeiros culpados, encheram-se as prisões de pessoas inocentes." – o grifo é meu.

Não digo que fui inocente, porque como profissional nas artes gráficas, fui designado para trabalhar no jornal A Liberdade e fui de livre e expontânea vontade juntamente com outros colegas que não tiveram a dignidade de assumir os seus atos quando foram para a justiça denunciar um colega que se encontrava ausente de Natal, sem poder se defender. Tudo passou; não guardei rancor de nenhum deles; fizeram para salvar a pele mesmo sendo as custas do sacrifício de um companheiro que trabalhou junto, nas mesmas condições de "subversivo".

Nunca tive conhecimento que estava sendo acusado pelos meus companheiros; fiquei em Mossoró até 1938 sem nenhuma notícia a respeito, quando numa certa manha, me deparei com a noticia impressa em um jornal de Natal, que o TSN me condenara por participação na revolução de 1935. Não saí de Mossoró, fiquei aguardando a ordem de recolhimento à prisão, o que aconteceu 2 meses depois. Preso, fui logo tratando de me adaptar à nova vida que iria enfrentar durante 6 anos e seis meses.

Naqueles dias da ditadura getuliana tinha tanta gente que merecia até o fuzilamento e nada se fazia contra tais, enquanto eu e outros pagamos caro o atrevimento de querer dias melhores para o povo.

NOTA: Francisco Meneleu dos Santos, foi o último sobrevivente da Revolta Comunista de 1935 no Brasil. Sua participação foi na cidade de Natal no Rio Grande do Norte, onde confeccionou o jornal Comunista " A Liberdade".

Por conta disso passou 6,5 anos preso nas prisões de Natal e da cidade de Mossoró-RN.

Faleceu em Fortaleza-CE em 16 de janeiro de 2008